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ENCADERNAÇÃO
ALHARES, L.DA
R. Almirante Pessanha, 11
LISBOA
Digitized by the Internet Archive
in 2012 with funding from
University of Toronto
http://archive.org/details/paleoethnologi01veig
ANTIGUIDADES M0HUM1TAES DO ALGARVE
PALEOETHNOLOGIA
ANTIGUIDADES lillfflS DO MI
TEMPOS PREHISTORICOS
POR
SEBASTIÃO PHILIPPES MARTINS ESTACIO DA VEIGA
Sócio correspondente da academia real das sciencias
e da sociedade de geographia de Lisboa, do instituto e da sociedade broteriana de Coimbra,
do imperial instituto archeologico germânico de Roma, da sociedade franceza
de archeologia, da real academia da historia de Madrid, da sociedade económica de Málaga,
da academia de archeologia da Bélgica,
do instituto archpologico e geographico pernambucano, collector
e fundador do museu archeologico do Algarve
VOLUME I
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1886
Cu
11
1 1
;% \
ADVERTÊNCIA
No programma geral d'esta obra estavam destinados todos
os assumptos concernentes ao período neolithico para consti-
tuírem o primeiro volume, suppondo que não excederiam o nu-
mero de paginas que cada livro deve ter, em vista da terceira
condição1 do contracto que o governo commigo celebrou para eu
descrever em cinco ou seis volumes as Antiguidades monumentaes
do Algarve; e, com effeito, se me houvesse limitado aos desco-
brimentos provenientes do reconhecimento que me foi incum-
bido para a elaboração da carta archeologica d'aquella província,
o calculo não falharia.
Succedendo porém haver noticia de terem posteriormente
apparecido outras muitas antiguidades, que deixavam perceber
a existência de importantes estações não ainda conhecidas, de-
terminou o governo que fossem estudadas, a fim de serem sym-
bolisadas na carta archeologica e descriptas na obra contractada.
Feita uma exploração complementar, ganhou a carta mais
cincoenta e sete logares com antiguidades prehistoricas ; mas
ainda assim pensei que accresceníando umas cem paginas ás
que o« volume devera conter, poderia abrangel-as, e com este
intuito começou o trabalho da composição.
1 «Condição 3.a Cada volume não conterá menos de trezentas paginas de texto de
corpo 12 n.° 2, entrelinhado, formato 8.° lranccz grande, a fora as estampas e desenhos
correspondentes.»
VI
Quando, porém, estando já impressas mais de quatrocentas
paginas, se calculou faltarem ainda umas duzentas, e que nu-
merosas estampas tinham de ser addicionadas, notou-se que o
livro attingiria extraordinária grossura, de que resultariam di-
versos e simultâneos inconvenientes ; pois ficaria assim em des-
harmoniosa desproporção com o formato; a brochura seria assaz
trabalhosa, demorada, de muito despendio e pouco consistente;
subordinado a uma taxa bastante elevada, que de certo impedi-
ria o consumo; seria sensivelmente incommodo para a leitura;
estragar-se-hia com facilidade, obrigando logo o possuidor á in-
evitável despeza da encadernação; e o peso, que ficaria tendo,
causaria muito embaraço e avultado custo para poder ser trans-
portado por via postal.
Todas estas considerações, praticamente suscitadas pelo des-
envolvimento do livro, logo que chegou aos dois terços da sua
composição typographica, me obrigaram a reduzil-o, sem com-
tudo interromper ou alterar a numeração ordinal dos capitulos e
da paginação, emquanto não chegasse ao seu termo final o estudo
respectivo a todos os característicos pertencentes ao período
neolithico, os quacs forçadamente tiveram de ser repartidos, e
concluídos no segundo volume, já em grande parte impresso
para em breve tempo ser levado á publicidade.
Nenhum prefacio, poucas explicações e vários agradecimentos
O prefacio, que competia a este livro, ja não pode ler ca-
bimento, porque foi escripto numa conjunctura em que algumas
illusões animavam ainda os intuitos verdadeiramente bons e ge-
nerosos com que desejei empenhar os meus mais decididos esforços
para firmar um programma, que, em razão da sua proficuidade,
regesse methodicamente o descobrimento, o estudo e a represen-
tação do riquíssimo thesouro, sempre mal comprehendido e mal
estimado, das mui complexas antiguidades paleoethnologicas e
históricas, que todos os entendimentos illustrados deviam presu-
mir que existisse largamente ramificado em todo este reino; e,
com effeito, aquellas illusões, emquanto não fui compellido a
transferir o museu archeologico do Algarve para uma apertada
e sombria arrecadação da academia de bellas artes, não deixa-
vam de ser alimentadas com algum fundamento, visto que até
então nunca me tinham sido recusados os auxílios de que care-
cia aquella nascente e mui esperançosa instituição.
As causas, porém, que promoveram o encerramento do mu-
seu, produziram outros adversos resultados, que aqui me abste-
nho de relatar, comquanto indispensavelmente julgue dever
declarar, que o retardamento nesta publicação não me pode ser
attribuido, porque tendo o governo contractado a primeira edição
da minha obra em cinco ou seis volumes, e obrigando-se por
VIII
uma cscriplura de contracto a fornecer para cada um as respe-
ctivas estampas, somente em 30 de março de 1886 acabei de
receber as que havia muito tempo impediam a impressão d'este
primeiro tomo; o que me levou, para as intercalar na ordem
geral dos assumptos, a alterar em grande parte o manuscripto
que desde agosto de 1885, embora por este motivo forçadamente
incompleto, já tinha apresentado; e se a composição não começou
logo, mas muitos mezes depois, foi por haver numerosos traba-
lhos accumulados nas oíficinas typographicas da imprensa na-
cional, e não por falta de texto preparado ; pois até ao fim do
quarto capitulo não havia estampas.
Dadas estas explicações a todas as pessoas que vagamente
me tenham julgado em falta, reservo as que por emquanto ficam
em silencio para um escripto de outra Índole, se a tanto for obri-
gado.
Antes porém de dar logar n'este livro ao primeiro capitulo,
cumpre-me registrar algumas palavras de respeitosa lembrança,
de que me confesso devedor a muitas pessoas ainda existentes e
á memoria de outras já fallecidas, que .me honraram com o seu
efficaz adjulorio desde que a meu cargo tomei o estudo geral das
antiguidades do Algarve.
N'estes termos e com estes intuitos, cabe a primasia ao go-
verno que em 1877, certamente por informações ou conceitos de
que eu não era merecedor, me preferiu entre os sócios da aca-
demia real das sciencias de Lisboa para a elaboração da carta
archeologica do Algarve, havendo na academia sapientes archeo-
logos, que muito melhor teriam sabido corresponder a um tão
difficil emprehendimcnto.
A este respeito posso afoulameníe declarar, que não me of-
fereci, não me fiz- lembrado, e que não foi sem grande hesitação
que annui ao convite do governo, como se me fora dado presa-
giar a impagável perda da minha anterior traquillidade e as ruí-
nas que um mesquinho antagonismo desde então me foi prepa-
rando.
Ao actual sr. ministro do reino, que, sendo-o igualmente
IX
em 1880, se dignou incumbir-mc da organisação do museu ar-
cheologico do Algarve, porque o julgou ião indispensável para a
comprovação authentica da caria archeologica, como de publica
utilidade scientifica, envio o meu mais respeitoso agradecimento,
por baver-me confiado a direcção de um serviço sobremaneira
importante e honroso, sentindo porém que s. ex.a não tenha
ainda podido examinar a verdadeira c assaz injustificável causa
que originou o encerramento d'esse museu, para o restaurar
agora, que pode ser em maior escala ampliado e enriquecido
com preciosas collecções ultimamente organisadas, e mantel-o
com os mesmos fundamentos de reconhecido préstimo que o le-
varam a determinar a sua fundação.
Com mui valiosa cooperação concorreu o sr. conselheiro
António Maria de Amorim, director geral de instrucção publica,
tanto para eu poder levar a effeito os trabalhos respectivos a
carta archeologica, como para os da organisação do museu, e
ainda posteriormente para os da exploração complementar que
fiz em 1882.
Ficando pois todos estes serviços, e bem assim os que são
relativos á publicação d'esta obra, subordinados á sua superior
direcção, cabe-me o dever de manifestar-lhe o meu reconheci-
mento pela benevolência com que os tem auxiliado, esperando
porém que queira empregar a sua mais vigorosa iniciativa, como
ao seu cargo compete, para qu^ o museu archeologico do Al-
garve, onde estão depositadas as minhas antigas collecções e de-
vem estar outras muitas ainda ignoradas, seja promptamente
reorganisado, sem dependência de pretenciosas intrusões, a fim
de que readquira o valor scientifico, que ninguém lhe pode ne-
gar, e a^consideração com que taes instituições estão sendo alta-
mente estimadas e mantidas nos paizes de mais adiantada civili-
sação.
Foi assaz melindrosa a situação em que me achei no Algar-
ve, tendo a meu cargo reconhecer as antiguidades que deviam
ser symbolisadas na carta archeologica, pela maior parte concen-
tradas em terrenos de dominio particular. Era pois mister solici-
X
lar licença aos proprietários para por meio de excavações chegar
a classiíical-as.
Numerosas licenças foram pedidas e nenhuma recusada.
Não lendo o direito de lançar mão dos monumentos descober-
tos em propriedade alheia, mas receando que ficassem dispersos
e em risco inevitável de se perderem, a todos os proprietários
propuz oficiosamente tomar eu conta dos que fossem achados
para com elles organisar um museu, que ficasse representando
as antiguidades da nossa bella província. A idéa agradou geral-
mente, porque era o inicio fundamental de uma instituição útil
e honrosa para o Algarve.
Alguns parentes e amigos, querendo porém levar os seus
obséquios a um maior grau de primor, preferiram offerecer para
as minhas collecções particulares numerosos monumentos e arte-
factos que tinham antecedentemente encontrado nos seus traba-
lhos ruraes, e d'este modo, assim como comprando todos os obje-
ctos antigos que me eram apresentados, consegui dar ás minhas
antigas collecções grande desenvolvimento.
Ricos e pobres me receberam sempre com a mais mimosa
affabilidade, e por isso não acho termos bastante significativos
para testemunhar a esses meus prezadíssimos conterrâneos os
agradecimentos de que me considero devedor á bizarria e cava-
lheirosa franqueza com que se dignaram tratar-me. A todos fiquei
devendo mui(o favor, e se não aggrego aqui a extensa relação de
tantos nomes sympathicos, é porque a tenho n'esta occasião a
muita distancia das minhas vistas. Nos diversos capítulos d'este
livro citarei porém vários nomes, que julgo associados a este tra-
balho pela elevada significação dos serviços auxiliares que repre-
sentam.
Não posso deixar em esquecimento as attenções e a coadju-
vação que encontrei em todas as auetoridades nas diversas occa-
siões em que necessitei recorrer á sua intervenção, assim como
os espontâneos obséquios com que numerosas pessoas particula-
res se dignaram receber-me em varias terras do meu transito.
Desde o começo dos trabalhos da exploração até uma data
XI
posterior á do encerramento do museu archeologico do Algarve,
alguns periódicos políticos e litlerarios quizeram dislinguir-me
com a sua benevolência, engrandecendo os meus modestos ser-
viços.
Longe de poder corresponder condignamente a esses bene-
méritos do progresso, porque nunca chegam a ser sufficientemente
retribuídas estas dividas bonrosissimas, dividas que crescem
como decorrer dos tempos, sendo animadoras companheiras da
vida e títulos que sempre ficam ennobrecendo o devedor, compe-
te-me comtudo, endereçar aos auetores de tantos conceitos pri-
morosos, embora immerecidos, o meu mais confraternal protesto
de grato reconhecimento, deixando aqui estas poucas palavras
para o manterem e memorarem.
Em igual obrigação me julgo também para com alguns sábios
estrangeiros, signatários de valiosos escriptos, em que o museu do
Algarve e o meu humilde nome ficaram lembrados. Refiro-me prin-
cipalmente aos srs. Virchow, Cartailhac, de Laurière, de Ceuleneer
e Henri Martin, auetores dos relatórios respectivos aos trabalhos
do congresso de anthropologia e de archeologia prehistorica, cele-
brado em Lisboa no mez de setembro de 1880, e bem assim aos
preciosos escriptos, que o dr. Emilio Hiibner tem publicado rela-
tivamente aos monumentos com que organisei a secção epigra-
phica.
Ás pessoas que não visitaram o museu e áquellas que, podendo
e devendo promover a sua reorganisação, agora muito mais am-
pla, o toem deixado ha tantos annos em lamentável abandono,
seja-me permittido solicitar a leitura d'esses relatórios, não para
que tomem em consideração os mal cabidos louvores de que fiquei
devedor á cortezia desses respeitáveis cultores e propagadores
da sciencia, mas para que não levem a sua negligencia até o
ponto de desprezarem o único museu que em Portugal foi metho-
dicamente organisado para representar por epochas distinctas e
em ordem geographica as antiguidades de uma província inteira.
Dando pois o maior apreço a esses títulos de subida importância
com que ficou memorado o museu por mim instituído, compete-me
Xll
neste logar agradecel-os a esses sábios distinetissimos, que tanto
me têem honrado.
Ao sr. Cartailhac devo ainda muito mais, porque, parecendo
não ter julgado sufíicientes os benévolos louvores com que me
havia distinguido no relatório que dirigiu ao ministério de in-
strucção publica de França, quiz de novo confirmar e desenvolver
as suas anteriores asserções no esplendido livro intitulado Les
ages préhistoriques de ÍEspagne et du Portugal, onde representa,
descreve e recommenda numerosos caracteristicos das antiguida-
des paleoethnologicas mais typicas do museu do Algarve, con-
trastando por este modo com o systematico desfavor dos que
deviam engrandecer, em vez de amesquinhar, a incontestável
significação scientifica d'aquelle conjuncto de padrões monumen-
taes.
Envio portanto ao sr. Cartailhac as affirmações do meu mais
expressivo agradecimento.
Em vários capítulos d'este livro serei mui gostosamente obri-
gado a referir-me aos serviços com que fui auxiliado pelo meu
mui presladio conterrâneo o sr. Joaquim José Júdice dos Santos,
mas não é demasiado lembral-os desde já !
Logo que o governo me incumbiu de organisar o museu, o
sr. Júdice dos Sanios, a meu convite, enviou-me immedialamente
as suas famosas collecções de instrumentos prehistoricos, acom-
panhadas de monumentos e numerosos objectos caracteristicos
de varias nacionalidades históricas, que durante muitos annos
tinha colligido no Algarve; com essas collecções, methodicamente
distribuídas, representei muitos logares indicados na carta ar-
cheologica e augmenlei os grupos destinados a comprovação das
antiguidades de outros ainda necessitados de bons exemplares.
Emquanto o museu esteve aberto ao publico, o sr. Júdice
dos Santos reforçou as suas collecções, enviando-me os objectos
que ia adquirindo, e somente retirou tudo, também a meu pe-
dido, na occasião em que o museu foi transferido e arrecadado
a instancias do inspector da academia de bellas artes sob o pre-
texto de carecer do espaço que oceupava!
XIII
Esla prova de confiança com que o sr. Júdice dos Santos
quiz distinguir-me, não posso eu deixar de lembrar com muita
consideração, assim como o espontâneo offerecimento que me fez
num artigo publicado no Districto de Faro, de poder de novo
contar com as suas collecções logo que se trate da reorganisação
do museu.
Comquanto por vezes haja de referir-me n'este livro a outros
bons conterrâneos, a quem fiquei devedor de importantes obsé-
quios, cumpre-me deixar já aqui indicados os nomes dos que
mais contribuíram para o desenvolvimento das minhas collecções
e com maior pecúlio para a organisação do museu.
Refiro-me aos cavalheiros, meus distinctos amigos, os srs.
Manuel José de Sarrea Tavares Garfias e Torres (de Portimão),
João Lúcio Pereira (de Olhão), Sebastião Fernandes Estacio da
Veiga (de Tavira), António José Nunes da Gloria, prior de Ben-
safrim, e José da Costa Serrão, administrador do concelho de
Aljezur.
Já não posso directamente agradecer á ex.ma sr.a D. Maria do
Carmo Estacio da Veiga eTello uma selecta collecção de antigui-
dades históricas que reuniu na quinta da Torre de Ares, nem ao
sr. Francisco Simão da Cunha a collecção, que me legou, de excel-
lentes objectos antigos, descobertos na sua quinta do Arroio,
perto de Tavira, porque aos que cessaram de existir, só me é
licito registrar aqui um preito de respeitosa homenagem em sua
memoria.
Compete-me também especialisar o nome do sr. António de
Paulo Serpa, hábil empregado na direcção das obras publicas do
districto de Faro, pela intelligencia e acerto com que desempe-
nhou todos os trabalhos de que o incumbi entre Alcoutim e Al-
bufeira, como bem o exemplificam as plantas que levantou e
sobre todas as das minas de Ossonoba, e bem assim pela zelosa
circumspecção com que dirigiu o serviço da contabilidade, mui
intimamente aggregado ao da fiscalisação das explorações.
Para os trabalhos de plantas e desenhos muito concorreu
igualmente o sr. João Tavares Bello, a cjuem confiei a direcção
XIV
dcf desenho das estampas que no museu estão coordenadas em
pasla reservada; e porque Irato de recordar-mc dos homens mais
prestadios que me acompanharam nas minhas Ímprobas excur-
sões, não estranhem os meus leitores, que entre tantos nomes dis-
tinctos, inclua o de um pobre marítimo de Faro, José Viegas,
porque foi elle o descobridor dos jazigos da idade do bronze
no Monte da Zambujeira, perto de Castro Marim, um dos mais
vigilantes apontadores dos meus trabalhos, e activo empre-
gado de inexcedivel probidade; o que me deixou praticamente
mais um exemplo de que a honra portugueza é ainda um dos
mais immaculados brazões da classe popular d'esta nação.
Não posso deixar em esquecimento os serviços com que me
auxiliou o sr. João Nunes Faria, canteiro que reside na freguezia
de Santa Barbara de Nexe, a quem incumbi o descobrimento e
compra de todos os objectos antigos que podesse adquirir, con-
fiando na sua intelligente actividade e no conhecimento que tinha
de todo o território da província. Foram muitos os logares com
antiguidades que descobriu e numerosas as suas acquisições, mas
as que obteve por obsequio de amigos e conhecidos, assim mesmo
m'as transmittiu, não me permittindo a minima retribuição,
Os monumentos epigraphicos da Fonte de Apra, da Silveira
e do Colmeal, assim como diversos objectos, que em seus logares
serão descriptos, são offerecimentos seus para as minhas colle-
cções. Comprazo-me pois de poder memorar n'estes termos a
honradez e o préstimo de um modesto operário. Outros similhan-
tes serviços me fez o sr. António Marcellino Madeira, descobrindo
muitos logares com apreciáveis antiguidades na freguezia de Ca-
cella, onde vive modestamente do trabalho da sua lavoura, e
adquirindo para as minhas collecções excellentes objectos antigos
que existiam esparsos em poder de ignaros possuidores.
Em alguns museus de Lisboa achei auxílios mui valiosos.
No museu zoológico da escola polytechnica francamente me
permittiu o sr. conselheiro Barbosa du Bocage os estudos que
precisei fazer, e no museu mineralógico da mesma escola, onde
me foi mister proceder a classificação de vários exemplares pa-
XY
leontologicos e de alguns instrumentos do pedra de mui difficil
reconhecimento apparente, encontrei sempre os mais profícuos
auxílios no seu sábio director, o sr. conselheiro Pereira da
Gosta, e no meritissimo naturalista adjunto, engenheiro de mi-
nas, o sr. Jacintho Pedro Gomes, a quem a sciencia e aquella
nobilíssima escola devem já mui importantes serviços.
No museu da secção geológica lambem o seu distincto dire-
ctor, o sr. Nery Delgado, auclor de preciosas publicações scien-
ti ficas, me permiltiu observar os interessantes característicos pa-
leoethnologicos alli grupados sob a epigraphe de cada uma das
estações exploradas, e tomei varias notas, que hão de ver-se des-
envolvidas em alguns capítulos d'esta obra, sendo-me fornecidos
apreciáveis esclarecimentos pelo sábio professor da universidade
de Zurich, o sr. Paulo Choffat, a quem este paiz deve estudos e
publicações da mais elevada importância scientifica, e pelo mui
festejado anthropologista, o sr. F. de Paula e Oliveira, ao passo
que o insigne mineralogista, o sr. Alfredo Bensaude, procedia
com delicada precisão á analyse chimica de alguns dos meus
instrumentos de pedra, que á simples vista ninguém poderia clas-
sificar.
No museu do Carmo permittiu-me o seu presidente e funda-
dor, o sr. Narciso da Silva, que copiasse três placas de schisto
gravadas, e de outras placas similhantes, existentes no museu
de Évora, me mandou excellentes copias o sr. Gabriel Pereira,
erudito archeologo, tão conhecido e estimado no paiz, como bem
considerado no conceito de sábios estrangeiros.
Os apreciáveis resultados de valiosíssimos estudos anthropo-
logicos com que o sr. dr. Francisco Ferraz de Macedo muito me
auxiliou, vão enumerados num capitulo do segundo volume.
Finalmente, um outro serviço importantíssimo, de que carece
o terceiro volume d'esta obra, embora não me fosse ainda confiado,
julgo poder esperar do meu illustradissimo conterrâneo, o sr. João
Bonança, auetor de uma obra de grandioso theor que vae come-
çar a ser impressa sob o titulo de « Historia da Luzitania e da
Ibéria», com tão extraordinária complexidade de assumptos alta-
XVI
mente scientificos e litterarios. que me faz anciosamente desejar
a sua publicidade.- Refiro-me á interpretação dos celebre^ monu-
mentos da necropole da Fonte Velha de Bensafrim com inscri-
pções 'gravadas em caracteres paleographicos peninsulares, que
até hoje ainda ninguém tinha decifrado, mas cujo alphabeto e pro-
cessos de applicação á leitura d'esses venerandos padrões da pre-
historia da península o sr. João Bonança affirma ter descoberto
á custa de muitos annos de aturado estudo e de uma perseve-
rança inabalável.
D'este modo, aquelles monumentos, que depositei no museu
do Algarve, assim como toda a nummaria celtiberica, as rochas
in situ e os artefactos que restam com taes legendas até agora
mysteriosas, readquirirão a rediviva expressão de uma linguagem
de ha muito emmudecida, que foi fallada e ficou escripta n'esta
ultima plaga do Occidente desde tempos remotíssimos, e passa-
rão a ser os mais authenticos documentos históricos, geographi-
cos, numismáticos e linguisticos, d'essas civilisações quasi igno-
radas; e por isso aqui anlicipo os tributos de admiração, que
possam ser devidos a um tão corajoso operário do progresso.
Ficam reservados muitos mais nomes para serem inscriptos
noutras paginas d'esta obra, em que o meu, de todo o ponto hu-
milde, melhor fora que houvesse sido substituído por algum de
mais abonada idoneidade.
SUMMARIOS
1 — As cartas archeologicas e a sua significação. — Conveniência de serem di-
vididas em cartas paleoethnologicas ou de archeologia prehistorica, em
cartas de archeologia histórica e em cartas monographicas especiacs,
tanto de archeologia prehistorica, como de archeologia histórica. — Car-
tas que podem servir-lhes de base. —Processo mais seguro para a
sua elaboração.— Indispensável classificação e ordenação dos critérios
locaes que devem representar. — Utilidade e deducçòes que se derivam
(Testas cartas. — Citam-se as que já estavam publicadas quando teve prin-
cipio a do Algarve, muitas que em seguida foram tendo publicidade e
algumas que estão sendo coordenadas. — Legenda internacional que ficou
determinada para as cartas paleoethnologicas ou prehistoricas em substi-
tuição dos anteriores symbolos arbitrários de convenção. — É esta legenda
internacional empregada pela primeira vez em Portugal na carta prehi-
storica do Algarve. — Occorrencias que retardaram a publicação d'esta
carta. — Como devem ser comprovadas estas cartas e como o foi em 1880
a do Algarve? — Prevenções respectivas á carta chorographica que a esta
serviu de base. — Elementos geographicos existentes nos outros paizes para
este género de trabalhos. — Desenvolvimento que teve esta carta prehisto-
rica após os resultados práticos de uma exploração complementar effeituada
em 1882. — Mostra-se que com a publicação d'esta carta, dos dois pri-
meiros livros que representam e descrevem as antiguidades prehistoricas
que symbolisa e com a reorganisação scientifica do museu archeologico
do Algarve, fica estabelecido o systema a que deve ser subordinado o es-
tudo e a representação das antiguidades prehistoricas e históricas do terri-
tório nacional . — Iniciativa do auclor, levada a vários congressos estrangei-
ros para o regulamento definitivo dos signaesde convenção internacional,
que deve ser adoptado nas cartas de archeologia histórica. — Instrucçòes
que acerca d'estas cartas devem ter-se em vista. — Observem-se na carta
prehistorica os signaes, referentes ás idades que representa, o ináice dos
caracteristicos que são descriptos nos dois primeiros tomos d'esta obra e
as listas das terras em que cada um foi verificado la 32
1
II — Cavernas. — Outros vocábulos com que são designadas no Algarve. —
Abysmos, hydrophilacios, ou marmitas de gigantes. — Sua formação. —
Como começou modernamente o estudo scientifico das cavernas. — Affir-
mações deduzidas d'este estudo com relação á geologia, á paleontologia e
á archeolôgia prehistorica. — Comprovações do synehronismo das raças
humanas com os grandes mammiferos extinctos da fauna antiga, verifi-
cadas em varias cavernas de Inglaterra, da França e da Bélgica. — Ca-
vernas da região sul-oriental da Hispanha. — Probabilidades de se acha-
rem cavernas ossiferas no Algarve, ou contendo artefactos da industria
humana. — Mostra-se que n'um limitado numero de cavernas exploradas
em Portugal se têcm encontrado abundantes confirmações directas e in-
directas de haverem sido habitadas em diversos tempos prehistoricos. —
Excellentes monographias publicadas acerca d'este assumpto. — Insufi-
ciência d'estes trabalhos para deixarem reconhecer as raças humanas que
viveram rfeste território, a feição paleontologica eas phases por que pas-
sou a industria desde as suas mais remotas manifestações. — Impossibi-
lidade de se inquirir por emquanto a ordem ethnographica das estações
troglodytieâs e de se mostrarem as ligações d'essas estações com as de
outros territórios. — Lamentável falta de estudos fundamentaes. — Ra-
zões que levaram o auctor d'esta obra a querer emprebender o exame das
numerosíssimas cavernas do Algarve e motivos que o impediram. — Sim-
ples indicação na carta prehistorica de alguns pontos em que ha cavernas
. n'esta zona geographica. — Noticias concernentes a cada uma das caver-
nas indicadas - 33 a 86
III — Monumentos megalithicos da architectura paleoethnologica. — Me-
nhirs. — Alinhamentos. — Cromlecks. — Antas ou dolmens, synonymos
de aras ou altares. — Discute-se se o dolmen apparente esteve sempre
descoberto ou primitivamente sob tumulus. — Opiniões e presumpcões
acerca d'este assumpto. — Cistos, ou pequenos dolmens. — Fundamentos
que permittem suppor-se ter havido no Algarve cinco logares em que
existiram antas ou dolmens apparentes. — Descrevem-se as condições
geographicas d'esses logares e indicam-se na carta prehistorica, 2.*
colurnna, sob a epigraphe: «Antas ou dolmens que presumptivamente
existiram sobre o solo» 87 a 108
IV — Critérios neolithicos esparsos, deixando presumir a existência de monu-
mentos do mesmo período. — Intuitos suscitados por esta presumpção,
relativamente aos typos ethnicos que deviam achar-se nas estações pa-
leoethnologicas até então não descobertas. — Notável facto contradictorio
com referencia á emigração de uma raça brachycephala, que se diz ha-
ver invadido a Europa. — Mostra-se que a raça dolichocephala mantinha
na zona do Algarve o seu quasi absoluto predomínio. — Reconhece-se
que os depósitos até ha pouco considerados quaternários, em que se jul-
2
gou serem paleolitliico-s e dolirhocephalos os eraneos que continham, são
simplesmente pertencentes aos tempos geologicamence denominados actuaes
e neolithieos. — Sob o predomínio da velha raça surge ò sentimento reli-
gioso.— O homem julga-se superior á matéria e reconhece em si pró-
prio um espirito que o domina; esse espirito" crê ser immortal; concebe
a morte como temporária ausência do espirito; e vae mais longe ainda,
instaurando o dogma da resurreição. — O respeito e a veneração que de-
dicou aos mortos abonam a existência d'essas crenças. — Indieam-se os
jazigos preparados em honra dos mortos e bem assim as habitações dos
vivos. — As ambições promovem ao mesmo tempo o antagpnisino. — Do
antagonismo nasce a guerra. — As armas de caça são ao mesmo tempo
a divisa do guerreiro. — A ponta de frecha, o machado de pedra e a adaga
de silex substituem todos os argumentos. — O mais forte é o vencedor. —
Muitos ossos depositados em estações neolithicas attestam terem sido pe-
netrados por esses instrumentos de guerra. — Da necessidade de segu-
rança contra os inimigos veiu mui provavelmente a invenção dos legares
fortificados, e a das palafittas nas regiões em que havia lagos. — Dá-se
noticia da lagoa do Boinho entre Tavira e Villa Real, sem se poder affir-
mar se foi ou não habitada. — Mostra-se que as palafittas já existiam an-
tes da idade do bronze. — Aptidões manifestadas pelo homem neolithico. —
Origem da agricultura na Europa. — Cereaes que eram cultivados. —
Aproveitamento dos fruetos espontâneos. — Pedras para a moagem dos
cereaes ; fabricação e cozedura do pão. — Desenvolvimento dos meios
de alimentação protestando contra a calumnia, que attribue o vicio da
anthropophagia áqcelles verdadeiros sectários do trabalho e do progresso. —
Géneros de alimentação. — Bebidas alcoólicas. — Industria manufa-
ctora. — A pedra é a principal matéria prima. — O homem faz-se mi-
neiro, procurando os jazigos do silex. — Olíicinas de trabalho. — Ausên-
cia de alguns característicos achados n'outras regiões 109 a 142
- Os monumentos. — Antas ou dolmens sub tumuli com galerias cober-
tas.— Sua distribuição geographica. — Falta que faz o museu archeolo-
gico do Algarve, reorganisado com os últimos monumentos. — Estação
mortuária de Aljezur. — Planta e perfis. — Descripção. — Habitações sub-;
terraneas adjacentes. — Ossos humanos que continha o deposito. — Es-
caços característicos paleontologicos. — Rochas utilisadas em toda a re-
gião.— Instrumentos e utensílios de trabalho. — Armas de caça e de
guerra. — Placas de schisto com gravuras. — Amuletos, contas e alfine-
tes de osso. — Urnas funerárias e vasos de suspensão. — Monte Amarel-
lo. — Dolmen coberto não explorado. — Artefactos alli achados. — Vestígios
de habitações terrestres. — Carência de explorações entre o Monte Ama-
rello e Aljezur e entre Aljezur e o rio Odeceixe. — Serro Grande. —
Dolmen coberto destruído. — O que ainda manifestou. — Alcalá. — Dol-
men coberto sob tumuli. — Razões por que a planta geral da necrópole
3
de Alcalá passa a ter cabimento no tomo 11. — Planta da primeira ex-
ploração.— Instrumentos de formas inéditas. — Estampas figurando os
característicos principaes. — Planta c prodactos da segunda exploração. —
Gracs de pedra e tintas mineraes. — Vasos crivados de orifícios. —
Placa de schisto. — Contas de calaítc, de schisto e serpentina. — Varias
louças. — Palmeirinha, Cerca Nova e outros sitios próximos com muitos
instrumentos ncolithicos. — Monte Canellas, mostrando ser sédc de vários
monumentos. — Instrumentos de pedra alli achados. — Monte da Rocha
(Lameira) com um dolmen destruido. — Objectos que continha. — Serro
das Pedras. — Dolmen destruido. — Desenho das ruinas e dos objectos
d'ellas extrahidos. — Monumento da Nora. — (Advertência a futuros ex-
ploradores.)— Planta e perfil. — Descreve-se o monumento e o que con-
tinha.— Monumento da Marcclla. — Planta. — Estado dos ossos. — In-
strumentos desilexede outras pedras. — Tintas mineraes. — Louças. —
Cacella. — Monumento descoberto ao norte da igreja — Objectos d'elle
extrahidos. — Planta. — Estações da Torre dos Frades. — Como foram
descobertas e o que continham. — Dois craneos dolichocephalos intei-
ros.— Cerâmica. — Vários caracteristicos. — Castro Marim. — Dolmen co-
berto, destruido. — Seus caracteristicos. — Serro do Castello. — Monu-
mento aberto, parcialmente destruido. — O que ainda manifestou. — Va-
queiros.— Instrumentos de pedra alli achados. — Considerações ge-
raes 143 a -305
índice das estampas
PAG.
Est. Carta paleoethnologica do Algarve 1
» A. Aljezur — Planta e perfis da estação neolithica e das habita-
ções subterrâneas adjacentes 145
» B. Aljezur — Facas, serras de silex e uma conta de steatite 162
» C. Aljezur — Enxós, machados, escopros e um amuleto 173
» D. Aljezur — Pontas de frecha e de lança de silex, dentes fosseis
de squaloides extinctos, e cabeças de alfinetes de osso 193
» E. Aljezur — Pontas de frecha, de lanças e lasca cortante de silex 195
» F. Aljezur — Vaso de suspensão e outras loucas 203
» I. Serro Grande (Lagos) — Característicos de silex e de osso de
um dolmen coberto destruído na quinta da Luz 211
» II. Alcalá — Planta, corte e accessorios de um dolmen coberto. . . 215
» IÍA. Alcalá — Planta e corte do monumento de Alcalá com rectifi-
cações , 218
Alcalá — Secções transversaes de vários ossos humanos do mo-
numento de Alcalá (no texto) 222
» III. Alcalá — Pontas de frecha, de lança e fragmentos de facas de
silex 225
» IV. Alcalá — Pontas de frecha e facas de silex, lança de schisto,
contas de calaíte, de schisto de serpentina, cryslal e rocha,
e fragmentos de alfinetes de osso 226
» V. Alcalá — Machado, enxó e escopro de pedra 226
» VI. Alcalá — Vários instrumentos de pedra 227
» VII. Alcalá — Graes de pedra 229
» VIII. Alcalá — Placa de schisto com gravuras 232
» IX. Alcalá — Fragmentos de louças com ornatos rudimentares. . . . 238
» X. Monte da Rocha (Lameira) — Instrumentos de pedra de um dol-
men destruído 243
» XI. Serro das Pedras — Perspectiva de um dolmen coberto destrui-
dn. (Vejam-se na estampa x os característicos <juc continha) 244
5
PAG.
Est. XII. Nora e Marcella — Plantas e perfis de dois dolmens cobertos . . . 249
» XIII. Nora — Instrumentos lascados de silex 251
h XIV. Nora — Pontas de frecha de silex, crystal de rocha, fragmen-
tos de placa de schisto com gravura, artefactos de marfim e
osso 253
» XV. Nora — Machados e enxós de pedra 255
» XVI. Marcella — Facas, serras e lascas cortantes de silex 261
» XVII. Marcella — Pontas de frecha e lanças triangulares de silex. . . 262
» XVIII. Marcella — Enxó de schisto amphibolico 202
» XIX. Marcella — Machado, escopros de pedra e núcleos de crystal de
rocha 263
» XX. Marcella — Placa de schisto com gravuras 267
» XXI. Marcella — Placa de marfim com ornatos, gorjal de suspensão,
e fragmentos de instrumentos de osso 268
» XXII. Marcella — Louças extrahidas do monumento 273
» XXIII. Marcella — Mais louças 274
» XXIIIA. Cacella — Planta que marca o logar de uma anta coberta ao
norte da igreja de Cacella 276
» XXIV. Cacella — Facas de silex e grande machado de schisto amphi-
bolico 276
)) • XXV. Cacella — Enxós de schisto amphibolico 276
» XXVI. Torre dos Frades — Planta de duas estações tumulares 281
Torre dos Frades — Estampa, no texto, de dois vasos cerâmi-
cos, sendo um de suspensão, extrahidos dos monumentos
figurados na estampa xxvi > 284
» XXVII. Torre dos Frades — Planta da anta coberta do Arrife 285
» XXVIII. Torre dos Frades — Pontas de frecha e facas de silex, machado
de diorite e pingente de osso perforado, pertencentes ao mo-
numento do Arrife 286
Serro do Castello (Azinhal) — Referencia a uma anta coberta 292
w XXIX. Vaqueiros — Machados de pedra, que se julga pertencerem a
um monumento ainda occulto 295
» XXX. Vaqueiros — Enxós, fragmento de machado de pedra e outro
de uma placa de schisto sem gravura 295
ERRATAS PRINCIPAES
PAGINA
LINHA
ERRO
EMENDA
1
6
arehcologia
archeologia
3
13
acrescentar
accrescentar
79
27
est. xi
est. n
120
28
extrahidos
extrahidas
133
10
Escapou a seguinte nota : — É a doutrina
corrente; mas em seu logar mostrarei
que o typo Lrachycephalo é anterior.
159
26
E
É
164
est. G
est. E
165
est. G
est. B
170
est. D, n.os 18 e 19
est. D, n.os 17 e 18
188
15
apox
após
209
14
duvida, alguma
duvida alg-uma,
225
3
artefactos, ha
artefactos, de que lia
240
35
instrumentos dcs
instrumentos de
241
35
agricela
agrícola
244
22
o de n. os
os de n.os
260
29
possivel
praticável
282
18
depostos
depósitos
I
CARTA ARCHEOLOGICA DO ALGARVE
Tempos prehistoricos
SUMMARIO
As cartas archeologicas e a sua significação. — Conveniência de serem divididas em car-
tas paleoethnologicas ou de archeologia prehistorica, em cartas de archeologia
histórica e em cartas monographicas especiaes, tanto de areheologia prehistorica,
como de archeologia histórica. — Cartas que podem servir-lhes de base. — Pro-
cesso mais seguro para a sua elaboração. — Indispensável classificação e ordena-
ção dos critérios locaes que devem representar. —Utilidade e deducções que se
derivam d'estas cartas. — Citam-se as que já estavam publicadas quando teve
principio a do Algarve, muitas que em seguida foram tendo publicidade e algumas
que estão sendo coordenadas. — Legenda internacional que ficou determinada para
as cartas paleoethnologicas ou prehistoricas em substituição dos anteriores sym-
bolos arbitrários de convenção. — É esta legenda internacional empregada pela
primeira vez em Portugal na carta prehistorica do Algarve. — Occorrencias que
retardaram a publicação d'esta carta. — Como devem ser comprovadas estas car-
tas e como o foi em 1880 a do Algarve? — Prevenções respectivas á carta choro-
graphica que a esta serviu de base. — Elementos geographicos existentes nos ou-
tros paizes para este género de trabalhos. — Desenvolvimento que teve esta carta
prehistorica após os resultados práticos de uma exploração complementar effei-
tuada em 1882. — Mostra-se que com a publicação d'esta carta, dos dois primeiros
livros que representam e descrevem as antiguidades prehistoricas que symbolisa
e com a reorganisação scientiíica do museu archeologico do Algarve, fica estabe-
lecido o systema a que deve ser subordinado o estudo e a representação das an-
tiguidades prehistoricas e históricas do território nacional. — Iniciativa do auctor,
levada a vários congressos estrangeiros para o regulamento definitivo dos signaes
de convenção internacional, que deve ser adoptado nas cartas de archeologia his-
tórica. — Instrucções que ácêrca d'estas cartas devem ter-se em vista. — Obser-
vem-se na carta prehistorica os signaes referentes ás idades que representa, o
indice dos característicos que são descriptos nos dois primeiros tomos d'esta obra
e as listas das terras em que cada um foi verificado.
As cartas archeologicas são a manifestação simplificada, o
resumo, ou indice figurado por signaes de convenção, das diver-
sas antiguidades de cada região geographica a que se referem.
Partindo da idéa iniciada pelas cartas de geographia antiga,
as cartas archeologicas são porém regidas por intuitos muito
mais vastos, abrangendo o máximo alcance possivel em relação
aos elementos que podem directa ou indirectamente confirmar as
1
mais remotas origens ethnicas, o seu desenvolvimento, e os gran-
des tractos de distribuição das espécies ou variedades do grupo
humano, assim como os mais apurados primórdios e progressos
concernentes á historia do trabalho.
Suppoz-se terem sido os sábios das nações scandinavas, Di-
namarca, Suécia e Noruega, e os suissos, que, seguindo os me-
thodos empregados na geologia e na paleontologia, conseguiram
verificar, por uma uniforme continuação de comprovações locaes,
a apagada existência de três idades distinctas, relativamente ás
origens humanas e a sua industria, caracterisadas por instrumen-
tos de pedra, de bronze e de ferro, todas anteriores ás datas dos
seus documentos históricos, ficando por isso denominadas pre-
historicas; mas esta mesma divisão, sem a minima discrepância,
já estava feita, escripta e proclamada havia quasi dois mil annos;
fizera-a o audacioso poeta latino Tito Lucrécio Garo no seu
poema De rerum natura, em seis livros, sem ostentar erudições,
nem explicar aonde e como tinha ido indagar os factos, que com
a mais restricta clareza e laconismo reduziu a poucos versos, já
por vezes repetidos, factos que estão. actualmente confirmados em
todos os paizes dedicados á cultura da sciencia, e que a própria
carta prehistorica do Algarve igualmente comprova na extrema
zona sul-occidental da Europa, symbolisando os monumentos
neolithicos, os da transição da ultima idade da pedra para a idade
do bronze, os da idade do bronze e os da primeira idade do ferro,
que também vou representar com suas plantas e perfis e com os
característicos mais typicos de cada uma d'essas até ha pouco
ignoradas construcções.
Assim, pois, admiravelmente se expressa o famoso poeta epi-
curista :
Arma antiqua, manus, ungues, dentesque fuerunt,
Et lapides, et item sylvarum fragmina, rami;
Et flammae atque ignes postquam sunt cognita primúm.
Posteriús ferris vis est, aerisque reperta.
Et prior aeris erat, quàm ferri cognitus usus:
Quò facilis magis est natura et copia major.1
1 Titi Lucretii Cari— De rerum natura — libros sex.— Lib. V, pag. 457— Paris, 1680.
Estas notabilissimas revelações, que Lucrécio tão acertada-
mente coordenou, são assim interpretadas pelo erudito doutor
Lima Leitão, traductor do poema: *
Antigamente
As mãos, as unhas e dentes foram armas,
As pedras e das arvores os ramos,
Flamma e fogo tão promptos conhecidos.
Foi então que a final pôde achar-se
O préstimo efíicaz do ferro e bronze :
Mas usou-se do bronze antes do ferro,
Porque mais fácil trabalhar se pôde,
E com mais farta, copia se mostrava.
E continuando a traducção do texto, acrescenta:
Era com bronze que se abria a terra.
Com bronze era que a guerra se fazia.
Podia-se espalhar feridas vastas,
Fazer mão baixa sobre greis e campos.
Promptamente cedia o nu e inerme
Aquelle que lhe apparecia armado.
Pouco a pouco depois foi convertido
O duro ferro em fulminante espada
E em desprezo caiu de bronze a foice.
Rasgou-se o campo desde então a ferro ;
Foi a ferro que a sorte das batalhas,
Que tão volúvel é, foi decidida.
Aos archeologos do norte não cabe portanto a prioridade
d'esta divisão já enunciada por Lucrécio, mas a sua mais cabal
confirmação scientifica, e por isso os nomes de Thomsen, Nilsson,
Forchhammer, Worsaae, Steenstrup e Keller, serão sempre citados
como tendo sido os principaes entre os primeiros inspirados
obreiros, que arrancaram ao âmago da terra os Íntimos segredos
que ella havia occultado á sabedoria antiga.
O engenhoso poeta latino guiou-se porventura pelas tradições
que ainda vagamente corriam no seu tempo e soube ordenal-as
A. J. de Lima Leitão — A natureza das cousas— tom. II, pag. 167 — 1853.
com atilada critica; mas as tradições, as lendas e os contos mais
ou menos fantasiosos, ou sagas, como se denominam entre aquelles
povos septentrionaes, já não attingiam tão longínquo alcance no
segundo quartel d'este século, porque não ultrapassavam as raias
dos tempos históricos, nem explicavam o significado correspon-
dente a tantos e tão diversos monumentos e relíquias das gera-
ções extinctas, cujas origens nunca ninguém tinha podido in-
quirir.
Foram aquelles athletas do progresso — os scandinavos e
suissos — que outorgaram a archeologia uma feição diversa e in-
tuitos de todo o ponto audaciosos, associando-a á geologia, á pa-
leontologia e á anthropologia, e levando-a como companheira já
inseparável d'essas sciencias até ás camadas sedimentares dos
tempos quaternários, onde jaziam as mais remotas origens da
arte, até então achadas, ou os primeiros instrumentos de silex,
como formando rochas brechiformes com os fosseis de faunas e
floras pela maior parte extinctas, para d'este modo poderem re-
ferir a industria humana, senão a uma data chronologica, a uma
epocha de contemporaneidade geológica com o que existia naquel-
les planos outr'ora habitados por tantas existências posteriormente
destruídas.
Foi então que nasceu, permitta-se-me assim dizel-o, a chro-
nologia geológica, a chronologia das referencias, a única que po-
derá deduzir-se das mysteriosas folhas do immenso archivo da
creação. Foi então que para cada facto de manifestação etimoló-
gica, directa ou indirecta, se pôde procurar uma nomenclatura,
e que para todos se conseguiu ordenar um regulamento de suc-
cessão. Foi então, finalmente, que o grupamento das comprova-
ções começou a ter organisação scientifica, e considerando-se que
tantos descobrimentos preciosíssimos exigiam ser authenticamente
registrados e terem a mais ampla propagação, foram logo con-
gregados em famosos museus. Thomsen cria na Dinamarca os
opulentos museus ethnographicos e archeologicos de Copenhague,
organisam-se na Suécia os de Stockholm e Upland, na Noruega
os de Christiania, e na Suissa, logo que Fernando Keller desço-
bre as habitações lacustres que povoaram os lagos d'aquella re-
gião, fundam-se os riquíssimos museus de Zurich, Genebra, Lau-
sanne, Berne e Neuchatel.
A França, a Inglaterra, a Allemanha, a Bélgica, a Áustria, a
Rússia, a Hollanda, a Itália, a Turquia, a Roumania e a Hispa-
nha, participam activamente do grande impulso scientifico que
partia do norte. A Hungria, já em 1875 tinha dezoito museus!
Chegou aquelle impulso animador até ao Egypto, e fundou-se
no Cairo um museu de antiguidades ; chegou á Austrália, e insti-
luiii-sc outro em Canterbury; chegou aos Estados Unidos, onde
em Worcester, Philadelphia e New-York também famosos museus
foram organisados; chegou á America austral, onde o governo
da republica argentina encarregou o sr. Moreno de fundar o rico
museu anthropologico e prehistorico de Buenos Ayres.
Em Portugal creou-se uma cadeira de geologia; foi regel-a o
sábio doutor Pereira da Costa, antigo lente de mineralogia na
escola polytechnica de Lisboa. Desde então até hoje tem elle sido
o mestre abalisado dos geólogos portuguezes, entre os quaes co-
meçaram logo a apparecer aptidões distinctissimas. Creou-se tam-
bém uma secção geológica, e sob a direcção de tão digno mestre,
emprehenderam-se trabalhos de subida importância. Foi elle o
iniciador proficiente da nova sciencia nesta plaga, e fez a sua
estreia perante o mundo scientifico, inquirindo e descrevendo
magistralmente, como geólogo e archeologo, os kjoekkenmoeddings
do Cabeço da Arruda, onde jaziam mais de quarenta indivíduos.
Appareceu depois Carlos Ribeiro proclamando a existência do
homem terciário com o testemunho dos sílices que descobriu no
valle do Tejo, e o sr. Nery Delgado descrevendo as grutas da
Cesareda, não sendo eu o ultimo a tomar parte n'esse movimento
quasi geral, porque de outubro del865 a abril do anno seguinte,
fiz o primeiro reconhecimento archeologico no Algarve, e na carta
chorographica a marcação das numerosas antiguidades prehistori-
cas e históricas, que tinha descoberto desde os campos balsenses
a leste de Tavira até á Foya de Monchique.
Faltava, porém, em cada região explorada, um registro que
pozesse em mutua communicação tantos descobrimentos effeitua-
dos, tantos elementos novos e os que a todo o passo estavam
tendo ingresso nos arraiaes da sciencia.
Surgiu então o famoso pensamento de serem symbolisados
em cartas geographicas ou chorographicas os diversíssimos desco-
brimentos effeituados em todos os paizes, passando essas cartas
a denominarem-se cartas archeologicas; mas logo se- reconheceu
a necessidade de serem divididas em cartas paleoethnologicas,1 ou
de archeologia prehistorica, em cartas de archeologia histórica, e
em cartas monographicas, de géneros especiaes de antiguidades,
tanto prehistoricas como históricas.
A multiplicidade de característicos, que em varias regiões se
accumulam n'uns certos grupos de logares extremamente próxi-
mos, mostrando a successiva occupação que tiveram desde tem-
pos remotíssimos até áquelles em que foram utilisados por na-
cionalidades mais ou menos modernas, a muito custo permitte,
quando não poucas vezes impede, a sua indicação symbolica em
cartas de minguada escala. Esta circumstancia, que não poucas
vezes suscita embaraços quasi invencíveis e promove uma inextri-
cável confusão, seria por si só suficiente para, com reconhecida
vantagem, se deverem fazer as referidas divisões. Alem d'isto,
havendo numerosos archeologos, que somente se dedicam aos es-
tudos paleoethnologicos, auxiliados pela geologia e pela paleon-
tologia zoológica e botânica, assim como outros muitos, que ape-
nas se occupam de archeologia histórica, a necessidade de serem
separadas as respectivas cartas era incontestável. Finalmente,
havendo especialistas em diversos ramos da sciencia, exclusiva-
mente applicados a estudos monographicos, como succede nos
paizes cuja feição archeologica predominante é caracterisada pela
caverna ossifera, pela construcção megalithica, pela palaíitta, pelo
1 Paleoeílinologia é termo novo, adoptado em 1865 no congresso de anthropologia
e de archeologia prehistorica, em Spezzia, como significando etimologia dos tempos
antigos, para substituir a designação, até então usada, de archeologia prehistorica; e
pôde definir-se como sendo « a sciencia que estuda as origens e desenvolvimentos da
humanidade até o começo dos tempos históricos ».
tumulas, ou por qualquer outra manifestação das sociedades
extinctas, a carta correspondente restringir-se-ha a indicar a dis-
tribuição geographica do característico estudado.
A base, pois, de qualquer d'estas cartas, tem de ser uma
carta geographica, chorographica, ou geológica, se não se poder
levantar especialmente uma, que satisfaça ás exigências do tra-
balho, cuja escala permitia as mais minuciosas indicações. Ad-
optada uma qualquer, em que possam ser inscriptos os signaes
de convenção respectivos á especialidade que deve representar, o
processo mais seguro será sempre o da investigação directa,
explorando-se todos os vestígios apparentes de oceupação antiga,
e feita a classificação dos característicos encontrados, cada logar
deve ser indicado na carta com o nome que tiver e o seu signal
symbolico. Succedendo porém que o descobrimento seja feito
num ponto não marcado, determinar-se-ha a sua situação pelas
orientações e distancias referidas aos dois mais próximos pontos
conhecidos, quando não se possa empregar o systema da trian-
gulação.
Designadas d'este modo as estações locaes de cada idade, de
cada período, e de cada epocha, só faltará achar a ligação d'essas
estações nos territórios confinantes, se já estiverem representadas
pelas suas competentes cartas. Chegará pois a haver um atlas
universal, porque para elle existem já muitos e preciosos ele-
mentos.
Quando cada nação tiver publicado a carta de archeologia
prehistorica do seu território, reunidas e ordenadas geographica-
mente todas essas cartas, ter-se-ha um atlas para cada uma das
grandes divisões da terra, que mui distinctamente mostrará qual
foi a distribuição de todos os grupos humanos que a povoaram
após as ultimas convulsões cósmicas que levantaram os actuaes
continentes submergindo outros que anteriormente formavam o
relevo orographico da crusta do globo, ou desde que as enormes
geleiras dos tempos geológicos foram abandonando ás faunas e
floras os amplíssimos espaços que chegaram a cobrir.
Serão essas grandes cartas que deixarão observar em toda a
parte a feição geral das povoações isochronas ou synchronicas
em cada idade ou período da vida humana; as condições da si-
tuação geographica em que cada uma surgiu dos regaços da na-
tureza, animada pelo supremo espirito creador, ou da selecção
a que foi levada por suas necessidades ou tendências ; os crité-
rios geológicos, ethnologicos, industriaes ou ethnographicos que
distinguem as estações; a definida idade geológica ou epocha ar-
cheologica que representam perante os princípios e regras que a
sciencia tem preceituado; as relações de identidade ou de simi-
lhança nos diversos territórios com referencia ao elemento ethnico
e á industria correlativa; se houve transmigrações derivadas dos
mais antigos centros de habitação ou de outras origens menos
remotas e por onde abriram e seguiram passagem, que orienta-
ções procuraram e que trajecto descreveram na sua marcha, onde
estacionaram e se desenvolveram, e onde, emfim, se extinguiram;
ao passo que outros assaz valiosos corollarios podem juntamente
deduzir-se do exame de taes circumstancias, relativos a pátria,
raça, usos e costumes d'essas civilisações, autocthones ou emi-
gradas, que tantas relíquias deixaram da sua aniquilada exis-
tência.
As cartas archeologicas parciaes são portanto os elementos
d'esses grandes atlas, que a sabedoria moderna está preparando
em todas as nações, em que a sciencia não se julga ser necessi-
dade secundaria, ou apparente compostura fictícia, mas uma ra-
dical affirmação de progresso.
Em Portugal, forçoso é dizer-se, nunca se tinham inquirido
e representado as suas antiguidades com taes intuitos, nem por
meio d'este processo fundamental, único á simples vista compre-
hensivel, facilmente transmissivo, e de immediata ligação com as
dos territórios limitrophes.
Este systema, porém, de representar os critérios archeologi-
cos de cada região, laborava, a meu ver, numa deficiência, que
era mister supprir-se para que podesse merecer inteiro conceito.
Quem olha para uma carta archeologica, não sabe até que
ponto pode ter sido exacta a classificação dos característicos que
symbolisa por signaes de convenção, quer esses signaes tenham
partido de uma compilação de noticias transmittidas, quer elles
representem o resultado de um estudo directo. No primeiro caso
é mister auctorisal-os com a citação dos textos descriptivos, e no
segundo compro val-os com os próprios característicos, coordena-
dos em museu rigorosamente archeologico.
Foi o que se começou logo a fazer, como já disse, e foi o
systema que formei e segui, applicando-o ao território, cujas an-
tiguidades tinham sido officialmente incumbidas ao meu desco-
brimento e exame, antes mesmo de conhecer as poucas cartas
archeologicas já anteriormente impressas.
O meu pensamento encontrou-se em plena congruência com
o que havia surgido ao norte e no centro da Europa.
Começou o trabalho das cartas archeologicas : foi a da Nor-
mandia a primeira de que tenho noticia; levantou-a o sr. Leroy de
Gany, sendo por este importante serviço premiado em 1859 com
uma medalha de oiro pela sociedade dos antiquários d'aquella
nação. Em França seguiu-se logo o exemplo, porque em 1860
publicava o sr. Ollier de Marichard a do Bas-Vivarais, e o ab-
bade Cochet a do Sena-Inferior em 1864. Como já fica dito, a
do Algarve, embora ainda sem titulo, foi começada em 1865, e
lentamente proseguida até 1877, em que o governo me incumbiu
da sua revisão, ficando concluída no anno seguinte e apresentada
em janeiro de 1879, sob o titulo de Caria archeologica do Al-
garve.
Desde 1865 até 1879 muitas outras cartas foram organisa-
das em diversas nações: duas appareceram em França no anno
de 1867, a do departamento de Tarn, pelo sr. Caraven, e a da
Gallia, desde os tempos mais remotos até á conquista de César,
levantada pela commissão da topographia das Gallias. Em 1869
publicou o sr. Edmond Bassac, na escala de 1 : 50:000, a sua
muito útil Carta hydrographica, topographica e archeologica do
golfo do Morbihan e do seu litoral. Em 1872 publicou o sr. barão
de Bonstetten a carta archeologica do departamento do Var.
A esta seguiu-se a dos dolmens do Lozère, publicada pelo dou-
10
tor Prunières em 1873, assim como em 1874 foi também le-
vada á publicidade, pelo sr. Boisse, a de Aveyron. Em 1874 e
1876 foram apresentadas aos congressos de anthropologia e de
archeologia prehistorica, reunidos em Stockholmo e Buda-Pesth,
as cartas da Suécia e da Hungria, apparecendo em 1875, na ex-
posição de geographia de Paris, as da Suécia, Bélgica e Suissa.
Em 1876 foi impressa em Lyon, sob os auspícios do ministério
de instrucção publica, a carta da distribuição geographica dos
productos da industria metallurgica em França e na Suissa, com
o titulo de Études paléoethnologiques dam le bassin du Rhône
— âge du bronze — , pelo sr. Ernesto Chantre, auctor de muitas
outras cartas e de grandes obras importantíssimas, referentes ás
idades do bronze e do ferro.
Na exposição universal de Paris em 1878, encorporadas na
galeria da arte antiga, foram expostas numerosas cartas archeo-
logicas, assim como nas salas do ministério de instrucção pu-
blica, figurando entre ellas as da Finlândia, Bulgária e ilha de
Minorca. Só a França apresentou dezenove, abrangendo as par-
ciaes de muitos departamentos e as geraes do seu território. So-
bresaía, porém, entre todas, a da commissão da topographia das
Galhas, com a indicação local dos dolniens e dos tumidi, das ca-
vernas, dos artefactos do bronze, dos cemitérios merovingianos,
etc, etc.
No congresso de Strasburgo em 1879, o sr. Troeltsch apre-
sentou a carta prehistorica do SO. da Allemanha e da Suissa.
0 mesmo auctor declarou em 1880, no congresso de Berlin, ter
para apresentar a carta prehistorica do Mecklembourg, do Lauen-
bourg e Lubeck, baseadas nos descobrimentos dos srs. Lisch,
Gross e Handelmann, segundo refere o sr. E. Cartailhac no tomo
xii (1881) do seu periódico Matériaux poar Vhistoire primitive
et naturelle de 1'homme.
Uma commissão de sábios occupa-se da carta prehistorica
de Allemanha. Em 1880, no congresso dos anthropologistas al-
lemães, reunido em Berlim, expoz o sr. Fraas o estado dos tra-
balhos d'aquella commissão.
11
São, emfim, numerosas as cartas archcologicas já impressas
e em via de publicação, ficando muitas por nomear.
Já se vê, pois, mesmo por esta incompleta resenha, a impor-
tância que nestes últimos vinte e cinco annos se tem dado a este
género de trabalhos, sobremaneira áridos, penosos e difíiceis,
principalmente quando as cartas são organisadas, como foi a do
Algarve, por investigação directa, no próprio território, de logar
em logar, e mediante o descobrimento e estudo especial de cada
um dos seus mui variados critérios monumentaes e artísticos,
sendo ao mesmo tempo levantadas as plantas das construcções,
os seus perfis, feito o desenho dos artefactos industriaes, colligi-
dos e organisados todos esses numerosíssimos característicos
documentaes para a sua authentica comprovação, como fiz com
o maior cuidado e mostrei com a fundação do museu archeolo-
gieo do Algarve, apresentado em 1880 ao congresso de anthro-
pologia e de archeologia prehistorica, e ao publico de Lisboa du-
rante oito mezes, sendo porém depois mandado arrecadar numas
casas inferiores da academia de bellas artes e num pateo infe-
cto e sombrio, que foi cemitério do ex-convento de S. Francisco,
onde também ficou sepultado ; o que por emquanto relato sem
os devidos commentarios, porque o facto basta para mostrar o
lamentoso atrazamento em que este género de estudos se acha
ainda neste paiz!
Estando já publicadas muitas cartas archeologicas, mas cada
uma indicando as antiguidades do seu respectivo território por
signaes arbitrários, que difficultavam a leitura e muito mais ainda
a sua confrontação, a secção archeologica da sociedade scienti-
fica de Cracóvia, propoz-se regularisar a coordenação das futuras
cartas, de modo que todas fossem subordinadas a uma legenda
internacional, sendo separadas as prehistoricas das históricas.
Com este fim nomeou uma commissão especial para tratar sim-
plesmente das cartas prehistoricas, sendo seu presidente o sábio
conde A. Przezdziecki, o qual deu conta dos trabalhos da com-
missão em 1871 ao congresso de Bolonha. Nomeou a assembléa
uma commissão para examinar e pôr em pratica o projecto dos
12
archeologos de Cracóvia; morrendo, porém, pouco depois, o seu
presidente, a commissão não chegou a funccionar.
Renovou este assumpto o sr. E. Chantre, a quem a sciencia
moderna deve numerosos serviços do mais alto apreço. O sr.
Chantre, reconhecendo os inconvenientes resultantes da falta de
um regulamento uniforme e geral para este género de trabalhos,
apresentou ao congresso de Stockholmo em 1874 um projecto de
legenda internacional para as cartas archeologicas prehistoricas,
e o congresso nomeou uma commissão para discutir este projecto
e adoptar uma legenda definitiva, composta dos srs. Capellini,
representando a Itália; Desor, a Suissa; Dupont, a Bélgica; En-
gelhardt, a Dinamarca; Evans, a Gran-Bretanha ; Hildebrand, a
Suécia; Léemans, a Hollanda; Lerch, a Rússia; G. de Mortillet,
a França; Romer, a Áustria; e Virchow, a Allemanha.
Portugal, já se vê, não tinha quem o representasse!
Esta notabilissima commissão, associando logo o auctor do
projecto e discutindo o assumpto, delegou os seus poderes numa
sub-commissão, unicamente composta dos srs. E. Chantre e G.
de Mortillet. Estes dois sábios, tendo em consideração as discus-
sões precedentes e as communicações por escripto, que lhes fo-
ram dirigidas pelos representantes da Dinamarca, da Gran-Bre-
tanha, da Hollanda, da Rússia, da Áustria e da Bélgica, com
umas notas do sr. Van der Maelen, auctor da carta archeologica
d'aquella nação, redigiram o seu trabalho, estabelecendo as con-
venções internacionaes que cada auctor deve adoptar, para
assim ficar uniformisada a leitura, ou interpretação das anti-
guidades de cada paiz, e deram-lhe publicidade em 1875 no
tomo vi da segunda serie da revista mensal, dirigida pelo sr.
Cartailhac com o titulo de Matériaux pour Vhistoire primitive et
naturelle de 1'homme, e em caderno supplementar impresso em
Toulouse.
Quando em 1878 conclui a carta archeologica do Algarve,
ignorava a existência dos signaes de convenção determinados
pelo congresso de Stockholmo e por isso foi apresentada em 1880
ao congresso de Lisboa com os signaes arbitrários, feitos a cores,
13
que tinha adoptado, assim como a carta prehistorica, deduzida
da carta geral, que submetti ao exame do congresso.
Notou-me então o sr. Cartailhac a conveniência de serem
substituídos os signaes de minha invenção pelos que estavam
sendo usados sob a legenda internacional, e regressando ao seu
paiz, teve o obsequioso cuidado de me enviar a respectiva ta-
beliã.
Já em agosto de 1881, tendo o governo mandado contratar
com uma empreza particular as estampas correspondentes ás
antiguidades prehistoricas do Algarve, o original da carta foi en-
tregue com a legenda internacional correspondente, e, com effeito,
assim chegou a ser desenhado e a serem-me remettidas as pro-
vas antes de findo aquelle anno. Vieram, porém, poucos dias
antes de ser auctorisado pelo governo para proceder a uma explo-
ração complementar em vários pontos da província, onde se
tinham casualmente manifestado importantes antiguidades pre-
historicas, e noutros onde apenas tinha conseguido fazer um
simples reconhecimento em 1878; e devendo a carta indicar to-
das as antiguidades descobertas até á data da sua publicação,
tive de reter as provas já impressas e esperar pelos resultados
práticos da exploração complementar, pensando que muitas alte-
rações haveria a fazer, por isso que os indícios, que precederam
aquella nova exploração, promettiam fartas acquisições. E com
effeito não me enganei, porque terminado aquelle trabalho em
novembro de 1882, consegui descobrir tudo quanto julguei dever
existir, e alem d'isto muitas outras antiguidades não esperadas,
taes como uma serie de monumentos de construcções typicas,
acompanhados de armas de guerra e de instrumentos de traba-
lho, de pedra e de bronze, de louças e de outros artefactos, que
permittiam estremar o typo tumular de construcção megalithica
da ultima idade da pedra, d'aquelles que visivelmente formavam
grupo separado, uns pelo seu género de construcção e outros
por seu revestimento interno, onde notáveis instrumentos de pe-
dra achei associados a outros metallicos de elevada significação
e importância. Só as plantas e perfis dos famosos monumentos
14
descobertos e o desenho dos artefactos mais característicos, que
cada um continha, produziram vinte e nove estampas.
Nos logares competentes, em que hão de figurar essas es-
tampas, relatarei o valioso auxilio, que recebi, na exploração de
Al cala e Aljezur, do meu prestantissimo amigo e conterrâneo, o
rev.d0 presbytero António José Nunes da Gloria, então prior
da Mexilhoeira Grande e actualmente de Bensafrim, porque foi
elle quem, á minha vista, levantou as plantas e fez os desenhos
dos descobrimentos effeituados nos dois referidos pontos, com
uma exactidão e nitidez inexcediveis, sendo sempre óptimo e
constante companheiro meu durante aquelles trabalhos.
Houve, pois, imperiosa necessidade de ampliar mui sensivel-
mente a carta e de reformar muitos dos seus signaes de conven-
ção, em vista dos critérios com que a necropole de Alcalá veiu
mostrar as typicas construcções monumentaes e os artefactos
que podem caracterisar a transição da ultima idade da pedra
para a primeira dos metaes; o que em parte alguma do reino se
tinha ainda achado.
A carta prehistorica teve portanto de passar por uma quasi
radical transformação ; mas tudo estava concluído e entregue em
março de 1883 á empreza que o governo incumbira do trabalho
artístico, e se não teve immediata publicidade, foi porque só em
30 de março de 1886, essa empreza acabou de entregar quinze
estampas pertencentes a este volume! E como ellas saíram, pela
maior parte !
Tudo quanto pertence ao período neolithico será descripto
n'este volume e o segundo completará a descripção de todos os
característicos até agora descobertos no Algarve, respectivos á
transição da ultima idade da pedra para a primeira dos metaes,
á idade do bronze e a primeira idade do ferro.
Se d'este modo fica comprehendida a mutua dependência
existente entre a carta prehistorica e a obra que deve descrever
as suas symbologias, consequentemente deverá também enten-
der-se que a authenticidade, tanto da carta como da obra, só
pôde ser comprovada pelo museu que colligi, e fundei em 1880,
15
addicionando-se-lhe, nos logares competentes, os característicos
posteriormente descobertos e os existentes em varias collecções
particulares.
A carta, a obra e o museu constituem portanto o quadro ge-
ral (Testes trabalhos, isto é, um todo homogéneo e inseparável,
e completam o systema, inteiramente novo neste paiz, que deve
racionalmente reger os futuros trabalhos archeologicos do reino,
em vez de se consentir que á concorrência publica se apresen-
tem quaesquer museus ou exposições de antiguidades, cujo pro-
gramma de organisação não seja scientificamente proposto e
competentemente approvado, a fim de que taes instituições, per-
manentes ou temporárias, não sirvam para ministrarem á sabe-
doria estrangeira, sobretudo, um grosseiro testemunho do atra-
zamento em que jaz aqui uma sciencia, que em todas as nações
civilisadas está continuamente progredindo.
Por isso, pois, ouso invocar a attenção dos poderes públicos
para o museu archeologico do Algarve, que o governo me in-
cumbiu de fundar, principalmente para a comprovação directa da
carta archeologica, assim como para terem publica exhibição as
antiguidades d'esta zona geographica.
E preciso reviver e manter esse museu, inutilmente escon-
dido, desde agosto de 1881, nas arrecadações da academia de
bellas artes; é mister não confundil-o com qualquer outra insti-
tuição, nem alterar a ordem systematica do seu organismo. Deve,
emfim, o governo ceder todas as antiguidades provenientes d'esta
província ao instituto archeologico do Algarve, que fundei em
1882 na cidade de Faro, porque somente alli poderá o museu ser
conservado intacto; só alli poderá manter-se congruente aos fins
da sua especial instituição; só alli poderá progredir, porque as
principaes collecções particulares, que já são muitas e valiosas
em toda a província, contribuirão para o seu enriquecimento ; só
alli se poderão addicionar-lhe os monumentos que com frequência
estão apparecendo em quasi todas as circumscripções municipaes,
e porque só alli reassumirá a feição geographica que lhe compete,
será mais sensível a sua significação e abrirá um novo horisonte
16
ao progresso da instrucção superior, de que tanto carece este
território, onde não faltam talentos e illustrações para honrarem
o paiz, tomando o logar que lhes compete nos grandes certames
scientificos próprios d'este século.
A publicação da carta paleoethnologica do Algarve será suf-
ficiente para mostrar esta necessidade a todos os entendimentos
despreoccupados, que souberem julgar com justo acerto a utili-
dade de uma tão conscienciosa reclamação; pois os signaes de
convenção internacional que indicam as antiguidades prehistori-
cas até hoje alli descobertas, exigem uma comprovação authen-
tica, e esta comprovação só a pode ministrar o museu com os
seus documentos monumentaes devidamente ordenados.
A conveniência que houve em 1880 para se ordenar a fun-
dação do museu do Algarve augmentou na razão directa do
grande accrescimo de descobrimentos, que a exploração comple-
mentar poz á vista. O que a boa razão aconselha, o que a con-
veniência scientifica reclama, é que esse museu, essencialmente
provincial, seja reorganisado, agora que está muito mais enri-
quecido, para ficar, onde deve estar, permanentemente aberto, e
apto para a comprovação das cartas prehistorica e histórica
d?esta província.
Nos outros paizes não se manda fechar os museus, manda-se
que estejam abertos e promove-se o seu progresso. Quem os
manda fechar, caminha certamente na vereda do retrocesso.
Terminando as considerações que ficam expendidas, relatarei
algumas circumstancias respectivas á coordenação da carta e aos
grandes embaraços que me suscitou.
Quando acceitei a incumbência de um serviço tão complexo e
dfficil, fui immediatamente indagar na direcção geral dos traba-
lhos geodésicos, se este território já estava representado na carta
chorographica, por ser esta a base que a todos os respeitos me
convinha preferir, tanto porque a sua exactidão devera inspirar
a maior confiança, como porque a escala de 1 : 100:000 era muito
sufficiente para abranger com clareza e precisão local todos os
signaes de convenção; mas no anno seguinte deveria começar a
17
triangulação de segunda ordem e só um anno depois poderia
dar-se principio ao trabalho chorographico, o qual ainda não fica-
ria terminado d'ahi a dois annos.
A maior carta do Algarve era a que tinha sido publicada em
1842 pelo conhecido escriptor João Baptista da Silva Lopes, e
que, segundo se diz, foi levantada em 1826 por um engenheiro
residente em Lagos, n uma escala dividida em léguas de 20 ao
grau, correspondente a 1 : 200:000 approximadamente, de modo
que ficou assim decomposta:
lm : 200:000m — 0,n,l : 20:000m — 0ra,01 : 2:000m —
0m.001 : 200m— 0m,0005 : 100m — O millimetro representa
portanto 200 metros.
Esta escala, parecendo á primeira vista assaz favorável para
a marcação dos signaes de convenção, não só nos trabalhos de
campo como nos do seu definitivo regulamento, por vezes me
deixou reconhecer a sua insuficiência, obrigando-me a um amon-
toamento diíficil de signaes nos pontos em que os vestígios ar-
cheologicos estavam em grande numero situados a curtas distan-
cias entre si, como principalmente os achei na freguezia da Me-
xilhoeira Grande.
A própria carta não é rigorosamente exacta quanto á distri-
buição das aguas e do relevo orographico, como praticamente al-
gumas vezes observei. Tencionando porém transferir para a carta
chorographica official a carta geral de archeologia prehistorica e
histórica, reservo para então as rectificações que julgue preciso
fazer.
Ninguém poderia recorrer á carta geographica do reino,
tendo de serem marcadas na zona do Algarve umas trezentas
estações archeologicas, tanto mais havendo muitas com caracte-
rísticos de diversas epochas, que de modo algum seria possível
indicarem-se na diminuta escala de 1 : 500:000.
Nos outros estados da Europa, em que aos estudos geogra-
phicos e archeologicos se tem dado a maior acceitação e activi-
dade, não se lueta com estas difficuldades fundamentaes, nem
com a falta de outros elementos indispensáveis. Com a nota junta
2
18
dou a este respeito um curioso exemplo, transcrevendo a lista,
colligida pelo sr. E. Chantre, das cartas de maior escala publi-
cadas até 1875 '.
Com relação a livros de sciencia, dá-se quasi o mesmo caso.
Procuram-se nas bibliotbecas publicas e apenas em pequeno nu-
mero se acham.
Por isso, pois, quando ousei acceitar o encargo de levantar a
carta archeologica do Algarve, não desconheci as difficuldades
que me estavam reservadas; confiei porém no conhecimento par-
cial que antecedentemente havia adquirido do solo d'esta pro-
1 Inglaterra — carta na escala de 1 : 063,360 em 1 10 folhas
Áustria 1 : 144,000 » 31
Mera 1:288,000 » 2
Idem 1:432,000 » 2
Baviera 1:050,000 » 112
Idem 1:500,000 » 3
Bélgica 1:020,000 » 450
Idem 1 : 040,000 » 72
Idem 1:160,000 » 4
Bohcmia 1:144,000 » 38
Idem , 1 : 288,000 » 4
Idem 1:432,000 » 1
Dinamarca ... 1:080,000 » 81
França 1:080,000 » 274
Idem 1 : 320,000 » 33
Idem 1 : 864,000 » 4
Hanover 1 : 100,000 » 67
Idem 1 : 250,000 » 4
Hungria 1:144,000 » 198
Idem 1:288,000 » 17
Idem 1:432,000 » 9
Itália central 1 : 086,400 » 52
Antigos estados Sardos 1:050,000 » 91
Idem 1:250,000 » 6
Paizes Baixos 1 : 050,000 » 62
Polónia 1:126,000 » 60
Prússia 1:100,000 » 319
Rússia 1:126,000 » 792
Saxe 1:100,000 » 28
Suécia 1:100,000 » 233
Idem 1 : 200,000 » 28
Suissa 1:100,000 » 26
Idem 1:250,000 » 4
Wurtemberg 1 : 050,000 » 55
Idem 1 : 200,000 » 4
Idem 1 : 400,000 » 1
19
vincia e nos estudos que já tinha feito, para as aiírontar e ven-
cer até onde podessem chegar os meus esforços.
Com effeito, a carta de archeologia histórica, ainda inédita,
e a prehistorica, embora no futuro possam ser mui ampliadas
em razão de novos descobrimentos, já mostram a grande riqueza
archeologica d'este território, alcançando até o período neolithico,
sem comtudo terem sido exploradas as suas numerosas cavernas
por onde devera ter-se começado a exploração geral.
Devo entretanto confessar, que muito sinto não ter podido
dispor de uma carta, que representasse com verdade a orogra-
phia d'esta accidentada região, a qual muito convinha indicar-se
para melhor deixar sobresaír umas certas leis de selecção na
distribuição das populações mais remotas e sobretudo as exce-
pções que encontrei, principalmente em referencia á idade do
bronze; pois que é caso observado noutros paizes, que a civili-
sação neolithica geralmente distribuiu o seu trajecto de occupa-
ção, preferindo os plan'altos e vertentes das serras, ao passo que
os vestígios da idade do bronze são mais frequentes junto das
antigas vias de communicação, na proximidade das collinas, nas
montanhas e nos flancos marginaes dos rios e ribeiras. Não con-
fiando, porém, na exacção do esboço que figura o relevo monta-
nhoso e as suas complicadas ramificações, resolvi omittil-o, não
só por este motivo, como porque na escala de 1 : 200:000, nos
tractos mais abundantes de vestígios archeologicos, as curvas de
nível poderiam confundir-se com os traços dos signaes de con-
venção, dificultando assim a leitura.
Teria também sido mui conveniente, que a carta prehistorica
se tivesse podido estampar sobre o plano da carta geológica.
Mais facilmente assim se reconheceria, que as cavernas e grutas
naturaes occupam sempre as rochas sedimentares, em maior es-
cala na serie mesozóica, principalmente na formação dos calcareos
jurássicos e em mais crescido numero no jurássico superior. No-
tar-se-ía que não só nas regiões jurássicas ha cavernas e ves-
tígios de occupação, mas também nos terrenos cretáceos, assim
como na serie cainozoica, tanto no terciário lacustre superior e
20
inferior, como no marino. Observar-se-ía igualmente, que al-
guns pontos prehistoricos, que occupam a zona do irias, estão
quasi sempre no contacto do jurássico superior, na proximidade
de grandes cavernas ou de correntes de agua. Do mesmo modo
se reconheceria, que na serie paleozóica, onde impera a maior ari-
dez e onde as aptidões do solo são espontaneamente menos pro-
ductoras, apenas no carbonífero inferior, mas somente nas mar-
gens das ribeiras, ou junto dos seus afíluentes, se acham critérios
prehistoricos. Por excepção, houve mui singularmente um dila-
tado tracto de rocha eruptiva, que, na serie paleozóica, rompendo
os schistos, attingiu nos seus pontos mais elevados as altitudes
de 903 e 755 metros sobre o nivel do mar, como foram as ser-
ras da Foya e da Picota de Monchique, cujo vall'alto, formado
pelas duas serras, apenas raros vestígios de occupação prehisto-
rica manifestou em cotas sempre superiores a 400 metros, pro-
ximamente ás nascentes das ribeiras de Arão e do Boina. Aos
selvagens d'esses tempos remotíssimos não escaparam pois aquel-
las encantadoras paragens, cuja orographia actual deve ser a
que já tinha na terceira idade da pedra, geologicamente ligada
á ultima epocha dos tempos quaternários. No capitulo respectivo
ás antas ou dolmens, que presumptivamente existiram sobre o
solo, expenderei algumas considerações que este caso excepcio-
nal parece suggerir.
São muitas e elucidativas as concepções e assaz significativos
os corollarios que a critica pode derivar das cartas archeologi-
cas. Foi o que me succedeu, observando a carta como ella era
após o reconhecimento geral concluído no fim do anno de 1878.
N'aquelle reconhecimento, feito a prasos contados, não me foi
possível emprehender minuciosas pesquizas em todos os pontos as-
signalados com apparentes indícios de occupação antiga, e muito
menos empregar continuamente o systema de procurar por tenta-
tiva o que a terra occultava aos olhos do observador insciente.
Para levar ao estado de máxima perfeição um tal trabalho,
seria indispensável empregar muitos annos de assíduas fadigas,
e mesmo despezas avultadas.
21
Naquella primeira exploração notei com estranheza, que as
extremas estações neolithicas occupassem ao poente o Serro
Grande, perto de Lagos, e ao nascente o sitio da Marcella, pouco
dislante de Cacella, havendo portanto uma grande distancia
d'esle ponto até á margem direita do Guadiana, e muito maior
ainda do Serro Grande até á extremidade norte Occidental da
provinda. Esta circumstancia me deixou presumir que outras
estações deviam ter existido além e áquem dos referidos pontos;
porquanto, no seguimento das orientações indicadas, era fre-
quente o apparecimento de instrumentos de feição neolithica, ge-
ralmente de rochas schistosas (predominando o schisto amphi-
bolico), mui similhantes aos d'aquellas ultimas estações e aos
das intermédias.
Todas estas reflexões fazia eu em presença da carta, quando
em novembro de 1881 o sr. José da Costa Serrão me partici-
pava de Aljezur ter alli descoberto a curta distancia da igreja
matriz umas covas, d'onde estava mandando extrahir pedra para
obras, em que havia muitos ossos humanos, numerosos instru-
mentos de pedra lascada, polida e gravada, louças e outros arte-
factos, com que em seguida engrandeceu mui bizarramente as
minhas novas collecções.
Com estes objectos á vista, notei predominar n'aquelle depo-
sito mortuário o característico de numerosas placas de schisto
negro, ou ardosiano, com gravuras geométricas, encontrado em
quasi todas as estações neolithicas do Algarve; que muitos in-
strumentos de pedra eram similhantes aos que tinha achado nos
monumentos da Nora e da Marcella, situados quasi na extremi-
dade sul oriental da província, que havia uma conta de steatite
polida, um tanto parecida com outra de serpentina pertencente
ao dolmen coberto de Alcalá, e um vaso de barro de suspensão
inteiramente idêntico na forma a outro, de maiores dimensões,
encontrado avulso entre Cacella e Villa Real, no sitio da Torre
dos Frades, o qual tinha sido achado em 1876 e me fora offere-
cido por António Marcellino Madeira, juntamente com três in-
strumentos pontagudos de pedra polida, de configuração approxi-
22
maciamente cónica. Analysando detidamente todas estas particu-
laridades locaes, e combinando as informações já obtidas com o
resultado da minha própria inspecção em vários pontos, formulei
logo, sem a minima hesitação, as seguintes peremptórias propo-
sições :
Que a linha central, que ligava as estações neolithicas, des-
cobertas até 1878, podia prolongar-se em sentidos oppostos e
representar todo o território da província com estações comple-
mentares, que mui presumptivamente deviam existir.
Que, sendo similhantes aos de Aljezur alguns característicos
ethnographicos encontrados na estação da Marcella e avulso no
sitio da Torre dos Frades, alguns kilometros mais próximo da
margem direita do Guadiana, nesse sitio devera achar-se uma
estação.
Que, existindo uma estação no sitio da Torre dos Frades, o
seu seguimento deveria prolongar-se pela orientação do norte,
acompanhando a margem do rio, ou haver passado á margem
opposta, occupando o litoral andaluz.
Que, sendo privativo do território de Portugal o mui singular
característico das placas de schisto gravadas, já manifestado em
quasi todas as estações neolithicas do Algarve, e mais copiosa-
mente na de Aljezur, o proseguimento d'este característico iso-
ladamente achado em vários pontos do reino já podia ser mar-
cado no Alemtejo, na Extremadura e na Beira, até á villa de
Ancião.
Gomo todas estas proposições só podiam ser demonstradas
com o descobrimento das presuppostas estações, com effeito as-
sim succedeu, mandando o governo fazer, neste sentido, uma
exploração complementar.
Tudo quanto havia aventurosamente dito dever existir, foi
achado, assim como outras muitas antiguidades, de que não
havia indicio já observado, appareceram em numerosos logares.
Os dois primeiros volumes d'esta obra, como já disse, des-
creverão na sua competente ordem todos os descobrimentos res-
pectivos á prehistoria do Algarve, apresentando as plantas e
23
perfis dos monumentos e figurados em estampas os característi-
cos principaes de cada um, assim como outros muitos que obtive,
achados avulso por trabalhadores do campo, nos logares que vão
indicados na carta para poderem ser pesquizados por futuros
exploradores, que certamente, guiados por este característico,
devem ainda encontrar numerosos monumentos. As grandes dif-
iculdades estão vencidas.
A carta ganhou com a demora na publicidade, porque se
engrandeceu com mais cincoenta e sete pontos archeologicos,
que a exploração complementar lhe ministrou.
A carta prehistorica de Allemanha, encarregada ha muitos
annos a uma commissâo de sábios, e mais outras que estão sendo
desejadas com geral interesse, ainda se estão organisando, e por
isso, sabendo-se que n'este paiz é quasi completa a ausência de
elementos para se poder levar de vencida um trabalho d'este gé-
nero, inteiramente novo pelo systema e pelos fins a que fora
destinado, não poderá estranhar-se o retardamento com que hoje
apparece, tanto mais que a principal demora provém de não es-
tarem logo promptas em 1883 as estampas pertencentes a este
livro, como deviam estar, mas só agora, que accrescento este
paragrapho, para poder declarar que as recebi no dia 30 de
março de 1886!
Com a publicação da carta prehistorica do Algarve ficaram
portanto estabelecidos, como já disse, os fundamentos e o sys-
tema, que deverão adoptar-se para o proseguimento do estudo e
comprovação das antiguidades existentes nas outras zonas geo-
graphicas do reino.
Os que por obstinado capricho ou ignorância quizerem afas-
tar-se d'este caminho, inutilisarão o effeito dos seus trabalhos,
ficando a meio aeculo de distancia das exigências da sciencia.
Os esforços que houverem de empregar para organisarem por
outra forma os estudos archeologicos do reino, sejam quaes forem
as suas supremacias académicas, scientificas, ou litterarias, fica-
rão transviados do único rumo que se deve seguir; e escusado é
tentarem engendrar inventários de monumentos nacionaes, que
24
nunca hão de conseguir o seu alistamento ; pois não é cousa que
se organise com circulares aos municípios, geralmente compostos
de individuos pouco versados em archeologia e architectura mo-
numental; não se elabora com informações inscientes e desorde-
nadas, e muito menos se pode fazer parodiando-se as grandes
commissões scientificas, que na França, na Allemanha e noutras
nações se occupam do apuramento dos seus padrões monumentaes.
Não foram as municipalidades, nem os informadores sem
critério, que apuraram para a grande carta archeologica da
França mil seiscentos trinta e oito menhirs isolados, distribuídos
por oitenta departamentos, e três mil quatrocentos e dez dolmens.
Estes trabalhos só se podem fazer quando haja quem os saiba
dirigir, tendo-se o bom senso de não se perguntar cousa alguma
a quem não possa responder.
O cadastro dos monumentos de uma nação é a carta archeo-
logica do seu território, levantada em devida regra e authentica-
mente comprovada!
Para a conclusão do meu programma falta-me a publicação
da carta de archeologia histórica do Algarve com as respectivas
antiguidades divididas em epochas distinctas.
A carta geral, de que deduzi a prehistorica, conserva ainda
os signaes arbitrários de minha invenção, esperando por uma
legenda internacional, que venha substituil-os. Essa legenda está
por mim proposta á sociedade franceza de archeologia.
Já em diversos congressos se tem alludido a este assumpto,
sem que se haja tratado do seu regulamento, como especialmente
se fez com relação ás cartas paleoethnologicas.
Cada auctor tem pois tido necessidade de inventar signaes
symbolicos para representar as antiguidades históricas que na
successão dos tempos ficaram vinculadas nos territórios submet-
tidos ao seu exame; o que certamente causa grande confusão e
impede a facilidade, que convém preparar para a prompta inter-
pretação dos característicos archeologicos de cada paiz.
O sr. Cazalis de Fondouce, publicando em 1879 a sua excel-
lente carta archeologica do departamento do Herault, indicou as
25
antiguidades prehistoricas até á idade do bronze com os signaes
da legenda internacional, e considerando como histórica, para o
seu paiz, a idade do ferro, que dividiu em três epochas, para
cada uma d'estas designou um signal, abrangendo na ultima a
dominação wisigothica. Em relação á historia de França, apenas
teve necessidade de accrescentar mais um symbolo para com elle
marcar as localidades habitadas no fim da epocha carlovingiana.
A falta de uma legenda universal para as cartas de archeo-
logia histórica ha muitos annos é sentida. Já em tempo do cele-
bre De Caumont este assumpto foi algumas vezes lembrado,
assim como posteriormente o tem sido por vários interessados.
Occorrendo-me, porém, que não podia haver melhor occasião
para renoval-o do que perante o congresso annual da sociedade
franceza de archeologia, a que tenho a honra de pertencer, ao
que em 1883 se reuniu em Gaen, enviei a minha proposta, diri-
gindo-a ao sábio secretario geral, o sr. Júlio de Laurière, que
tive a fortuna de conhecer em Lisboa, como fazendo parte do
congresso de anthropologia e de archeologia prehistorica.
O sr. Júlio de Laurière, distinctissimo archeologo, que tantas
vezes visitou o museu do Algarve, e tanto exaltou, por sua ex-
trema benevolência, os meus limitados serviços no seu famoso
relatório, publicado em 1881 pela referida sociedade, ficou en-
carregado por aquelle congresso, juntamente com o sr. conde de
Marsy, de incluir este assumpto no programma do congresso que
em 1884 se reuniu em Pamiers, no departamento do Ariège.
Os dois sábios acima referidos vão pois formular e propor
ao congresso, que ha de reunir-se em Nantes, no mez de julho
de 1886, o regulamento dos signaes de convenção para as cartas
parciaes e geraes de archeologia histórica. Relativamente a Por-
tugal, dignou-se o sr. de Laurière encarregar-me de propor as
epochas e os géneros de monumentos históricos, até o século xvi,
que se devem indicar por signaes de convenção.
Entendi, porém, não dever arrogar-me este encargo senão
com referencia aos descobrimentos e estudos de que fui ofíicial-
mente incumbido no Algarve. Para representar as antiguidades
^0
históricas (Testa província, formulei dois quadros com os signaes
symbolicos correspondentes aos géneros e epochas a que perten-
cem e dei publicidade a este assumpto no n.° 41.° (dezembro de
1885) do Jornal de sciencias mathematicas, physicas e naturaes,
pertencente á academia real das sciencias de Lisboa, sob o titulo
de projecto de legenda symbolica para a elaboração e interpretação
da carta de archeologia histórica do Algarve. Mandei em seguida
reproduzir esta publicação num opúsculo, que enviei a todos os
institutos scientificos e litterarios, que em Portugal se occupam
de estudos históricos, geographicos e archeologicos, a todos os
periódicos de Lisboa, Porto, Coimbra e de outras terras do reino
que me foram indicados, assim como particularmente a alguns
archeologos, a fim de que podessem indicar outras antiguidades
históricas já reconhecidas no reino, que não achassem nomeadas
e symbolisadas nos ditos dois quadros, para assim os poder com-
pletar e remetter á mencionada commissão franceza; mas ne-
nhuma communicação me foi dirigida, e por isso, quando nas
outras províncias houver quem se proponha levantar cartas de
archeologia histórica, ninguém poderá increpar-me por alguma
omissão, principalmente de signaes radicaes, que haja nos qua-
dros exclusivamente respectivos ao Algarve.
Ainda assim presumo não haver muitos mais géneros de an-
tiguidades históricas no reino, e por isso poderão servir os qua-
dros formulados para as do Algarve, addicionando-se-lhes arbi-
trariamente as designações e signaes com que seja mister indicar
os que forem privativos de algumas localidades.
Logo, pois, que tenha publicidade a lei das convenções inhe-
rentes á elaboração das cartas de archeologia histórica, terão os
archeologos, meus conterrâneos, os elementos mais precisos para
emprehenderem o levantamento de cartas parciaes das circum-
scripções que queiram estudar, tomando por base a carta choro-
graphica official, como sendo a única que por emquanto merece
preferencia em razão da confiança que deve inspirar e da sua
mui apropriada escala.
As cartas de archeologia histórica devem começar pela re-
n
presentação de todos os critérios referentes á epocha preromana,
a fim de poderem consignar as cidades que receberam o foro de
município, de colónia, ou algum outro privilegio, no primeiro sé-
culo do império, e bem assim os característicos archeologicos,
averiguadamente synchronicos, ou das populações que occupa-
vam esta zona occidental da península hispânica anteriormente
ao definitivo domínio romano.
Feito o reconhecimento geral da circumscripção territorial,
que se pretende representar na carta archeologica. convém ali-
star chronologicamente as nacionalidades que ahi ficaram caracte-
risadas, e indical-as na carta pelas suas designações, juntando-se
ao signal radical de cada característico o da epocha respectiva,
ou tantos signaes radicaes e de epocha em cada logar, quantas
foram as nacionalidades que nelle deixaram vestígios da sua
existência. Os monumentos totalmente destruídos, havendo noti-
cia escripta que os descreva, ou mesmo tradição local que os
designe, devem ser marcados na carta, comtanto que não haja
duvida relativamente á epocha da sua construcção. Os próprios
monumentos modernos de architectura religiosa, civil, ou militar
podem igualmente ser indicados.
Para que estas cartas não soffram objecções o possam ser
nuthenticamente comprovadas, porque só assim affirmarão a sua
verdade scientifica, devem ser colligidos todos os possíveis cara-
cterísticos, sendo levantadas as plantas e perfis das construcções
e figurados por qualquer forma os objectos não susceptíveis de
acquisição, e com tudo isso organisar-se um museu de compro-
vação.
Quando sueceda acharem -se algumas provas archeologicas
em logar não designado na carta chorographica ou geographica,
que se tenha adoptado, esse logar deve ser determinado por
triangulação sempre que seja possível, ou por approximação, to-
mando-se as orientações e distancias referidas aos dois pontos
mais próximos, que na carta estejam indicados.
Se num ponto qualquer da exploração apparecer algum ca-
racterístico isolado, cuja epocha não se possa precisamente cias-
28
sificar, mas simplesmente presumir, a sua marcação deve ser
acompanhada do signal de interrogação.
Tendo-se em vista todas estas prevenções, a carta ficará
sendo o cadastro das antiguidades históricas do território que
representa, e uma parcella já preparada para occupar o logar
que lhe competir na carta archeologica geral do reino.
Estes trabalhos parciaes serão portanto elementos de muita
utilidade, que os archeologos nacionaes podem ir coordenando
como collaboradores da grande obra, que deve um dia represen-
tar as antiguidades monumentaes d'este paiz, se ficarem compe-
tentemente comprovados e descriptos.
No terceiro tomo d'esta obra, a que pertence a carta de ar-
cheologia histórica do Algarve, tratarei este assumpto com o des-
envolvimento que reclama. Entretanto mais algumas noções se
podem desde já achar no trabalho preparatório, que publiquei
no mencionado Jornal das meneias mathematicas, physicas e na-
tnraes da academia real das sciencias.
Aos sábios archeologos portuguezes, aos meus illustrados
collegas nas sociedades scientificas, a que tenho a honra de per-
tencer, e a todas as mais pessoas competentes submetto o exame
consciencioso da carta paleoethnologica do Algarve, solicitando
os salutares reparos e amigáveis advertências, que julguem con-
veniente dirigir-me, para assim corrigir os erros ou supprir
as omissões que hajam de notar, a fim de poder aproveitar as
suas judiciosas indicações quando houver de passar a maior es-
cala, e sobre uma carta mais correcta, a representação geral das
antiguidades prehistoricas e históricas d'esta zona meridional do
nosso paiz.
Aos sábios, que forem sinceramente bem intencionados, bas-
tará olharem com alguma attenção para o primeiro trabalho que
neste género se publica em Portugal, representando as antigui-
dades prehistoricas até hoje verificadas numa província inteira,
para comprehenderem quantos descobrimentos significa, quão
aturadas fadigas e grandes difficuldades me foi mister empregar
e vencer jjara poder agora abandonal-o á luz da publicidade.
Este trabalho seria certamente muito mais perfeito, se hou-
vera sido encarregado a uma corporação scientifica, que entre os
seus mais abalisados especialistas repartisse a complexidade dos
assumptos, que abrange no seu conjuncto; muito mais substan-
cioso seria, muito maior auctoridade ficaria tendo. Fiz. porém, o
que me pareceu ser mais acertado, e para que não peccasse por
falia de authenticidade, recorri á comprovação directa, colligindo
e coordenando os critérios archeologicos locaes no museu que
fundei em 1880, para com elles comprovar os signaes da legenda
internacional.
Nada mais estava ao alcance dos meus limitados esforços.
Com a carta á vista, se observará que o período neolithico,
a idade do bronze e a primeira idade do ferro constituem os ca-
racterísticos paleoethnologicos d'esta região. A epocha de transi-
ção da ultima idade da pedra para a idade do bronze, admira-
velmente bem caracterisada em Alcalá, não vae indicada com
signal próprio, por não o haver no quadro geral da legenda in-
ternacional; o que deixa presumir que este característico ainda
não estava determinado na Europa quando em 1875 se for-
mulou a lei das convenções, auctorisada pelo congresso de Sto-
ckholmo.
Se alguns instrumentos de feição paleolithica existem no
museu do Algarve, devo declarar não haverem sido achados em
condições geológicas, e por isso não ousei indicar estações pre-
neolithicas. Poderão porventura mostrar que essas relíquias ainda
eram conservadas na idade da pedra polida, como recordação
veneranda da velha raça que foi testemunha paciente das enor-
mes convulsões que parcialmente modificaram o relevo da crusta
terrestre, que vira separar do continente europeu, a retalhos in-
sulados, o actual archipelago britannico, que assistira á porten-
tosa alliança do Atlântico com o Mediterrâneo pela submersão
da montanhosa ponte que ligava as columnas de Hercules e com-
municava a Africa com a Europa, e que ainda em meio d'essas
oscillações immensas pôde sobreviver e transmittir-se até os nos-
sos dias, sem que a nova raça brachycephala, que lhe succedeu,
30
como se pretende, e com ella se mesclou, podesse todavia ani-
quilal-a.
Ninguém sabia, e talvez ninguém suppunha, que a região
algarviense occultava preciosos thesouros de tempos tão remotos,
que nenhuma chronologia pode alcançal-os; mas julguei-o eu, e
julgo que outros ainda anteriores devem ser achados alli mesmo,
quando neste paiz houver mais dedicação pela sciencia, ou
quando o paiz tiver percebido que não hão de ser as sommas
despendidas no perenne combate das facções partidárias, que
chegarão a levantar o seu nivel intellectual ao ponto de poder
equiparar-se ao dos povos mais cultos, mas aquellas que forem
applicadas ao desenvolvimento da sciencia, porque só á sciencia
cabe essa transformadora missão, esse portentoso privilegio.
Pois com que racional fundamento poderia presumir-se que
esta derradeira região Occidental da terra, tendo sido inteira-
mente habitada na ultima idade da pedra, por um povo que foi
constructor dos dolmens monticulados de Aljezur, do Monte
Amarello, do Serro Grande, de Alcalá, do Monte Canellas, do
Monte da Rocha, do Serro da Pedra, da Nora, da Marcella, de
Cacella, da Torre dos Frades e do Serro do Gastello, não tivesse
tido um mais antigo habitador, um predecessor que surgisse do
mesmo supremo influxo, que outorgou á natureza a geradora fa-
culdade da creação de quantas faunas e floras já cobriram a su-
perfície do globo?
N'este tracto de terra, que as aguas banham por três lados,
não se acharam ainda, certamente, inconcussos vestigios das pri-
meiras gerações humanas em depósitos propriamente geológicos,
talvez porque ninguém se propoz procural-os aonde somente po-
dem ser achados!
O philologo, que emprehende reunir e ordenar as provas do-
cumentaes das sociedades modernas para escrever a sua histo-
ria, corre aos archivos, interpreta os códices, extracta e trans-
creve os padrões paleographicos.
Para porém se escrever a historia das sociedades extinctas,
não ha senão um só archivo, archivo immenso, que abrange
31
toclas as regiões da terra; archivo, cujos códices são as rochas
sedimentares accessiveis á observação, e as folhas d'esses códi-
ces, as camadas que constituem a sua formação. E, pois, n'essas
mysteriosas folhas, se escaparam ao metamorphismo produzido
pela acção plutonica ou a outros agentes de destruição, que fica-
ram registrados em rigorosa ordem os factos mais essenciaes para
o estudo critico da etimologia geológica. Não ha nessas folhas
nomes escriptos por signaes calligraphicos para exprimirem a
existência de todos os mimos da creação, mas os próprios seres
que foram creados, fazendo parle integrante da contextura des-
sas folhas, cá feição de hieroglyphicos que nellas ficaram estam-
pados, cuja interpretação cabe somente ao intimo concurso da
geologia, da paleontologia e da archeologia, desde que surgem
as primeiras manifestações da industria humana.
Mas não me foi licito inquirir testemunhos geológicos nesta
legião. Os próprios mais importantes critérios neolithicos julgo
não estarem ainda descobertos. Uns e outros achar-se-hão, mui
presumptivamente, na serie assaz extensa das cavernas jurássi-
cas. Procure-os quem os souber descobrir e conhecer, porque
deve achal-os, como se poderá deduzir do que vou relatar no
capitulo seguinte.
Ainda assim, são já numerosíssimos os pontos indicados na
carta paleoethnologica com vários característicos neolithicos. Es-
cusado é repetil-os aqui, estando todos figurados na carta e geo-
graphicamente ordenados nas columnas respectivas a cada epi-
graphe. E exclusivamente d'esse período que tem de occupar-se
este primeiro livro; o segundo, como já se pode julgar pelas epi-
graphes restantes, abrangendo mais variedade de assumptos,
suscitará porventura maior interesse.
II
CAVERNAS
SUMMARIO
Cavernas.— Outros vocábulos com que são designadas no Algarve.— Abysmos, hydrophi-
lacios, ou marmitas de gigantes.— Sua formação. — Como começou modernamente
o estudo scientifico das cavernas.— Affirmações deduzidas d'este estudo com rela-
ção á geologia, á paleontologia e á archeologia prehistorica.— Comprovações do
synclironismo das raças humanas com os grandes mammiferos extinctos da fauna
antiga, verificadas em varias cavernas de Inglaterra, da França e da Bélgica.— Ca-
vernas da região sul oriental da Hispanha.— Probabilidades de se acharem caver-
nas ossiferas no Algarve, ou contendo artefactos da industria humana.— Mostra-se
que n'um limitado numero de cavernas exploradas em Portugal se toem encontrado
abundantes confirmações directas e indirectas de haverem sido habitadas em di-
versos tempos prehistoricos. — Excellentes monographias publicadas ácêrca d'este
assumpto. — Insufficiencia d'estes trabalhos para deixarem reconhecer as raças
humanas que viveram n'este território, a feição paleontologica e as phases por que
passou a industria desde as suas mais remotas manifestações. — Impossibilidade
de se inquirir por emquanto a ordem ethnographica das estações troglodyticas e
de se mostrarem as ligações d'essas estações com as de outros territórios. — La-
mentável falta de estudos fundamentaes.— Razões que levaram o auctor d'esta obra
a querer emprehender o exame das numerosíssimas cavernas do Algarve e motivos
que o impediram. — Simples indicação na carta prehistorica de alguns pontos em
que ha cavernas n'esta zona geographica. — Noticias concernentes a cada uma das
cavernas indicadas.
Sob a denominação de caverna correm confundidos vários
termos de equivalente significação, laes como furna, algar, gruta
e lapa, que todavia poderiam ser estremados com restricção es-
pecial, tendo-se em apurada conta o sentido, mais popular que
li l (erário, com que a gente campesina emprega cada um d'esses
vocábulos.
Pela designação de furnas são assas conhecidas no Algarve
as cavernas da costa maritima, ao passo que na região sertaneja
ou serrana se denominam algares, sobretudo se as suas entradas
são abertas na rocha a feição de poço, se dão entrada ás torren-
tes pluviaes e medem grande profundidade.
3
34
Não é tão nomeada a gruta como o são a furna e o algar, e
comtudo os habitantes do campo sabem distinguil-a, applicando
o termo a certas cavidades de limitadas dimensões, que podem
ser utilisadas para abrigo de gados e pastores.
De todas as mencionadas palavras a menos vulgar é a lapa,
que mais geralmente se refere, não tanto a covas e nichos que
se acham em rampas de montes e n'outros logares, como a gran-
des chapas de rochas estratificadas, que se destacam das pedrei-
ras ou se encontram isoladas e dispersas.
Cabe neste logar, embora como simples curiosidade, que o
viajante pode admirar no tracto da raia marítima, comprehen-
dido entre a ponta de Sagres e a occidental de Albufeira, a no-
ticia de umas formações, de todo o ponto singulares, devidas á
acção erosiva das aguas e a outras causas ou agentes naturaes,
a que promiscuamente se dão os nomes de fojos, pegos e abysmos,
sendo este talvez o mais apropriado, se ao mesmo tempo se lhe
juntar o de precipícios, como de feito o são para os incautos e
desprevenidos, que percorrem os logares em que existem uns tão
pavorosos phenomenos da natureza.
No curso de geologia, regido na escola polytechnica de Lis-
boa pelo sábio decano d'aquelle illustradissimo professorado, o
sr. conselheiro dr. F. A. Pereira da Costa, abalisado mestre dos
geólogos portuguezes, a quem as sciencias physicas e naturaes,
e a archeologia prehistoríca devem serviços do mais elevado al-
cance, que em tempo algum, sejam quaes houverem de ser os
progressos d'essas sciencias neste paiz, poderão ficar em des-
lembrança, consta-me haver o mencionado sábio lente de mine-
ralogia e geologia, antigo director daquella escola e meu também
antigo e sempre respeitável mestre, feito referencia a essas con-
strucções naturaes da costa marítima do Algarve, dando-lhes
porém a denominação especial de marmitas de gigantes. Nunca
assisti ás prelecções em que o sapiente professor se tem occu-
pado d'este assumpto e por isso não estranharão os seus moder-
nos discípulos, se alguma vez honrarem os meus escriptos com
a sua leitura, de não o acharem aqui tratado com tanta profi-
35
ciência e lucidez como lhes foi ensinado, ficando advertidos de
que o meu principal intuito se limita simplesmente a registrar,
no género caverna, a marmita de gigantes, a que mais vulgar-
mente, como disse, ouvi dar a denominação de fojo, pego, ou
abysmo, mas que n'um documento official tem ainda outro nome.
As denominações de marmita de gigantes, de caldeira, ou
pot-holes dos inglezes, applica Beudant \ no seu curso elementar
de geologia, sob a epigraphe, Effets des chutes d'eau, não tanto
ás cavidades que no leito das ribeiras, e mui provavelmente no
de mares pouco fundos, são produzidas pelo redemoinho das
aguas que dão movimento giratório ás areias e calhaus que as
torrentes arrastam, e a que se dá geralmente o nome de turbi-
lhões ou de sorvedouros, porém mais especialmente áquellas cavi-
dades que se acham em terrenos elevados, e já fora da acção de
qualquer queda de agua; e com este fundamento, talvez, appli-
cou o sr. dr. Pereira da Costa a denominação de marmitas de
gigantes ás enormes caldeiras da praia elevada do Algarve já
constituídas, e para dar melhor idéa da causa que as produziu,
incluiria no grupo geral as que ainda estão em via de formação.
Uma diversa nomenclatura, hoje esquecida, ou antes desco-
nhecida, foi imposta a essas caprichosas construcções naturaes
no fim do século passado, quando o benemérito conde de Valle de
Reis, Nuno José Fulgencio de Mendoça e Moura, sendo gover-
nador e capitão general do Algarve, mandou levantar a planta
das fortificações de todo o litoral marítimo pelo tenente coronel
José de Sande e Vasconcellos. Este engenheiro, no seu trabalho
inédito, intitulado Mappa da configuração de todas as praças,
fortalezas e baterias do reino do Algarve2 representa a rocha de
Sagres para poder figurar a fortaleza, a praça, e a bateria, que
existe na extremidade propinqua ao oceano, e nesta planta marca
os logares em que ha dois d'esses famosos abysmos, dizendo
numa nota: «Bocas de dois hydrophilacios, que são uns vácuos sub-
terrâneos cheios de agua que respiram para a superfície da terra».
1 Beudant— Géologie—Cours Élèmentaire — ^ng. G9 e 70 — 18G5 — 1 le édition.
■ Existe, e por mim tem sido visto, no archivo do ministério da marinha.
36
A planta de Sagres não tem escala e por isso não posso de-
signar as distancias em que estão os hydrophilacios relativamente
á bateria da ponta de Sagres, de que mais se approximam do
que das muralhas da praça.
Na celebre obra do sr. Major, Vida do infante D. Henrique,
traduzida do inglez pelo sr. José António Ferreira Brandão, e
mandada publicar em 1876 pelo sr. duque de Palmella1, meu
antigo condiscípulo no primeiro e segundo anno de mathematica
na escola polytechnica, vem uma planta da península de Sagres
(pag. 107), em que é figurado a um quarto de milha ingleza
para o sul um d'esses pavorosos abysmos. Devo, porém, advertir
o viajante que visitar aquelles logares, que o primeiro hydrophi-
lacio ou abysmo, seguindo-se da praça para a bateria, acha-se á
esquerda, um tanto ao nascente, e o segundo muito mais perto
da bateria no lado opposto, e por isso pode passar entre elles e
observal-os com prudente cautela, quando não prefira levar um
guia, que o encaminhe por aquelle admirável isthmo2, que as
embravecidas ondas do oceano, em dias procellosos, parece
quererem subverter, não obstante estar sobre o nivel das aguas
em altura de 39 metros, como indicando o único ponto do
mundo que o brio nacional deve preferir a quantos hão sido
indicados para ser honrado e honrar-se com uma estatua de
bronze levantada em memoria do preclarissimo infante de Por-
tugal.
Os hydrophilacios ou marmitas de gigantes occupam na sec-
ção marginal e propinqua ao oceano, entre Sagres e Albufeira,
vários pontos da praia elevada, em que imperam as formações
do jurássico superior, do terciário marino e lacustre e do cretá-
ceo inferior. A sua configuração geral é approximadamente a de
um poço de larguíssimo diâmetro com abertura irregular na base,
1 0 sr. duque de Palmella fez-me a honra de obsequiar-me com um exemplar, que
aqui agradeço a s. ex.a
- A península de Sagres, do norte ao sul, partindo do antigo pedestal da cruz, mede
de extensão mais de 5 milhas inglezas e na maior largura, de oeste para Teste 2 y3 . Ve-
ja-se a planta publicada pelo sr. Major.
37
mais ou menos ampla, em communicação com o mar, variando a
sua profundidade, ou altura do eixo vertical, na razão directa da
cota de nivel do solo superficial com referencia á das aguas sal-
gadas.
Quando nas rochas, de que se compõem as praias altas, ha
fracturas naturaes ou accidentaes, provenientes de retracções, de
violentos abalos da terra ou de outras causas, em contacto com
o mar, bastam estas duas simultâneas circumstancias para se
operar a formação dos abysmos ou marmitas de gigantes. As on-
das, arremessando-se com impetuosa violência, invadem o âm-
bito d'essas anfractas fendas, produzindo na sua ascensão um
violento attrito, que necessariamente promove o alargamento gra-
dual do espaço em que é exercido. Não é porém a força impul-
siva que recebem as aguas invasoras o poderoso agente do alar-
gamento e muito menos ainda da configuração proximamente
circular, que manifestam esses amplos precipícios em cujo fundo
o incessante embate das ondas produz pavorosos estrondos, si-
milhantes a fortes detonações. Dada pois a simultaneidade das
preditas circumstancias num determinado logar, se a ascensão
da massa liquida, que invade as fendas das rochas até acima da
superfície do solo fracturado, é a causa que origina essas tão
singulares formações, a sua queda, obedecendo ás immutaveis
leis da attracção universal, descobertas por Newton e sancciona-
das por Cavendish, as desenvolve e acaba, porque essa queda é
determinada pela gravidade inherente a todos os corpos terre-
stres, ou força que incessantemente os attrahe para o centro da
terra, sendo n este caso os seus principaes elementos — a den-
sidade do corpo liquido que se elevou e a reacção da sua veloci-
dade adquirida — regidos pela força centrifuga no seu descente
movimento accelerado, da qual resulta uma poderosa acção ero-
siva de rotação contra as paredes das fendas e consequentemente
a configuração de taes formações.
Em resumo, póde-se portanto dizer, que o continuo trabalho
das ondas, determinado por leis e forças naturaes em todos os
seus movimentos, invadindo as fendas das rochas fracturadas,
38
propinquas ao oceano, é a causa que produz os abysmos deno-
minados hydrophilacios ou marmitas de gigantes.
No caminho que vae do apparatoso cabo Carvoeiro, massa
compacta de cretáceo inferior, para a ermida e bateria da Se-
nhora da Rocha, construída sobre uma extensa formação de ter-
ciário lacustre superior, existe um d'esses abysmos, assaz pro-
fundo, cujo diâmetro não medirá menos de 30 metros, e como
este se encontram outros muitos no rumo de poente até á ponta
de Sagres, como ficou dito. Convém pois não transitar por esses
togares, em que de repente o incauto viajante pode achar-se á
beira de um precipicio, sem levar um guia que o saiba encaminhar
com a precisa segurança. Alguns d'esses abysmos podem ser vi-
sitados pela praia sem grande difficuldade na hora de baixamar,
e não soprando ventos rijos dos quadrantes do sul; mas escusado
seria quererem-se procurar vestígios de aproveitamento humano
n'esse género de cavernas, que a natureza parece ter formado
para caprichoso respiradouro das tempestades do mar.
O estudo scientifico das cavernas occupa ha muitos annos a
actividade intellectual dos sábios mais dedicados ás sciencias na-
turaes, á historia da humanidade é da industria prehistorica, po-
dendo dizer-se que os resultados d'este estudo, tão complexo e
variado pelas suas intimas e mutuas dependências, vieram vin-
cular em nossos dias uma serie de affirmações importantíssimas,
que as gerações precedentes não poderam congregar.
Desde antigos tempos correm vagas noticias e tradições rela-
tivamente ás cavernas e não poucas se encontram dispersas em
obras de escriptores clássicos, gregos e latinos. Vários geogra-
phos, historiadores e poetas da antiguidade fallaram por vezes
d'esses mysteriosos edifícios, que a natureza construiu e escondeu
no âmago da terra; ficou porém como reservado para o presente
século o reconhecimento geológico, paleontologico e archeologico,
destinado á comprovação das epochas e das condições de jazida
em que n'esses recônditos depósitos se hão manifestado ossos
humanos, ou productos da industria do homem, associados aos
despojos dos grandes mammiferos extinctos, ás ossadas de ai-
39
guris ainda viventes, mas emigrados em regiões glaciaes desde
as modificantes evoluções por que passou a crusta do globo após
o período post-plioceno, e finalmente ás espécies da fauna actual;
o que veiu logo mostrar que as raças humanas, desde as suas
mais remotas manifestações, utilisaram as cavernas.
Pode, pois, affirmar-se, que ás cavernas devem poderosos
subsídios de elucidação a geologia, a paleontologia e a archeolo-
gia prehistorica. Se não fossem as suas tão significativas revela-
ções, a sciencia não teria attingido os complexos desenvolvimen-
tos que actualmente a constituem, ou antes a estão preparando
para ainda emprehender novas soluções sobre muitos assumptos
em discussão.
Em todas as regiões da terra ha cavernas naturaes, devidas
a diversas causas, que promoveram e promovem a sua formação
e desenvolvimento, bem como uma multiplicidade de modifica-
ções em harmonia com as oscillações e movimentos que os agen-
tes dynamicos ou forças motrizes e as acções chimicas continua-
mente exercem no interior da crusta, composta de muitos e di-
versos elementos.
Até ha poucos annos julgou-se que as cavernas somente se
podiam formar nas montanhas jurássicas, porque nessas rochas
são mais frequentes, com effeito, as grandes cavidades, desloca-
ções, abatimentos locaes e fracturas mais ou menos consideráveis,
como resultado da natureza especial d'essa formação, das acções
plutonicas, da retracção e exsicação dos stractos e da erosão;
mas a observação tem verificado a sua existência nas series sedi-
mentares, principalmente na mesozóica e cainozoica, comquanto
nas regiões propriamente calcareas sejam mais vastas e muito
mais abundantes.
E o facto que também se verifica no Algarve e se mostra,
posto que em minguada escala, com a indicação, feita na carta
prehistorica, de algumas cavernas mais conhecidas n'esta zona
geographica.
Não será mui difficil ao leitor instruído reconhecer a natureza
dos terrenos em que vão marcadas as cavernas a que me refiro,
40
lendo á vista a carta geológica do reino e reduzindo á sua escala
de 1 : 500:000 a do Algarve, que está approximadamente na
proporção de 1 : 200:000. l
D'este modo se observará, pois, que algumas cavernas do
litoral marítimo estão abertas em rochas diversas daquellas em
que se acham as da região central, e que, exceptuando as rochas
eruptivas, e a maioria (talvez a totalidade) das da serie paleo-
zóica, nas outras duas series sedimentares ha mais ou menos
cavernas e grutas. Faça-se um estudo especial neste sentido,
que as confirmações não tardarão.
Foi no primeiro quartel d'este século, que em Inglaterra ap-
pareceu uma obra intitulada Reliquice diluviaria?. N'esta obra,
publicada em 1823, reuniu o dr. W. Buckland os elementos até
então mais averiguados, e negou absolutamente o synchronismo
da vida humana com a dos grandes carnívoros e pachy dermes
da fauna antiga. Produziram geral sensação na Europa as afir-
mações do rev.d0 Buckland, e em Inglaterra, arraigando convic-
ções profundas, dispozeram de tal arte os espíritos, que qualquer
facto com que alguém pretendesse provar o contrario do que
ficara escripto, com todos os foros apparentes de uma auctori-
dade ecuménica, era immediatamente repellido com a mais formal
impugnação.
A França meridional reagiu, porém, pouco depois contra o
positivismo biicldandiano, iniciando-se no estudo directo de algu-
1 Quando a carta archeologica já estava concluída, occorreu-me a idéa de ampliar
até á sua escala a carta geológica do reino e fazer-lhe a applicação das cores e signaes
de convenção correspondentes, a fim de se poder promptamente reconhecer a natureza
dos terrenos em que se acham as cavernas e d'aquelles que haviam sido aproveitados
pelas diversas civilisações que precederam, desde os tempos mais remotos, as naciona-
lidades históricas na occupação d'este solo. Este melhoramento teria certamente sido
muito útil; mas o trabalho artistico da carta prehistorica, como primeira parte da carta
archeologica geral do Algarve, já estava contractado pelo governo com uma empreza
particular e esta innovação viria originar embaraços, talvez insuperáveis, como logo
suppuz, e por isso não ousei endereçar ao governo proposta alguma n*este sentido; e
pensando d'este modo não me enganei, porque bastaram as ampliações que tive de ad-
didonar ao original da carta prehistorica em consequência dos descobrimentos que
havia feito n'uma exploração complementar em 1882, para a sua publicação soffrer re-
tardamento, não obstante haverem ficado na posse da referida empreza, desde o mez de
março de 1883, todas as alterações que se deviam fazer.
41
mas cavernas do seu território dois sábios geólogos, cujos nomes
e profícuos emprehendimentos serão sempre invocados com grata
recordação.
Tournal e Ghristol foram pois os dois athletas, que rompe-
ram as trevas em que jaziam as cavernas, alumiando-as com os
fachos da sciencia e trazendo para o fórum da publicidade a de-
nunciação dos seus recônditos segredos.
As lendas e tradições suggeridas pela fértil imaginação po-
pular e os mysterios, maravilhas e preconceitos que assignalavam
esses sombrios, tenebrosos, mas esplendidos e imponentes monu-
mentos architectados pela própria natureza, vieram soffrer sobre
as aras da sciencia o sacrifício do menosprezo, para cederem á
verdade, á critica e á soberania dos factos a palavra imperiosa
da sabedoria acerca da sua origem e dos seus destinos.
Corria o anno de 1828, quando o geólogo narbonnez M.
Tournal, tendo explorado no departamento de Aude a caverna
de Bize, annunciou ao instituto de França e aos sábios do seu
paiz haver descoberto ossos e dentes humanos no mais baixo
deposito do lodo e da brecha cimentada por stalagmites, mistu-
rados com restos de cerâmica rudimentar1, conchas de molluscos
terrestres de espécies existentes e ossos de mammiferos parcial-
mente extinctos 2, pertencentes aos primeiros tempos do período
quaternário, verificados por Gervais, e de outras espécies ainda
viventes, ossos que Mareei de Serres verificou em identidade de
estado chimico e que Cuvier reconheceu como rigorosamente fos-
seis. Este descobrimento, embora acolhido com reservada circum-
specção pelo instituto de França e por diversos sábios, tanto
mais desde que Eduardo Larlet alli descobriu o Bison curopceus,
e o Cervus tarandus (renna), que não viveu em tempos históricos
no sul da França, mas que n'aquella região se tem achado asso-
biado ao mamouth, tanto no diluvium como nos lodos das caver-
0 apparecimento de louças era quanto bastava para não se poder afíirmar que a
brecha fosse paleolithica.
' Entre outros, o Ursas spelceus e a Hyena spelcea.
42
nas, parecia vir mostrar á luz da critica mais concludente, que a
espécie humana tinha sida coeva dos grandes mammiferos da
fauna anterior, extinctos nos primeiros tempos do período post-
plioceno, quando até então ninguém havia referido a existência
do hommo sapiens de Linneu a uma tão remota origem!
Não eram porém isolados estes factos, porque ao mesmo
tempo que Tournal e Mareei de Serres os reconheciam na ca-
verna de Bize, outro sábio, M. de Christol, então secretario da
sociedade de historia natural de Montpellier, apresentava em ju-
nho de 1829 ao instituto de França, uma memoria sob o titulo
de Notice sur les ossements humains des cavernes du Gard. M. de
Christol apparecêra por seu lado confirmando as conclusões de
M. Tournal, referindo ter encontrado na caverna de Pondres,
perto de Nimes, ossos humanos, os de uma hyena e de um rhi-
noceros de espécies extinctas, nas mesmas condições geológicas,
porque a caverna esta™ totalmente oceupada pelos depósitos do
diluviam até o tecto, havendo também fragmentos de louça numa
camada inferior á dos ossos dos mammiferos. No mesmo departa-
mento, explorando M. de Christol a caverna de Souvignargues,
achou na mais profunda camada do diluvium ossos humanos
compridos de um individuo adulto, associados a um sacrum e a
duas vértebras.
Na Bélgica, já em 1831, era explorada pelo celebre dr.
Schmerling a caverna d'Engihoul na margem direita do Meuse,
fronteira á d'Engis l, na margem opposta, descobrindo o famoso
explorador numa e n'outra, sob as mesmas condições geológicas
e chimicas, craneos e outros ossos humanos, associados aos de
grandes mammiferos extinctos, pertencentes á fauna antedilu-
1 Quem sabe o que representou perante o mundo scientifíco a celebre caverna d'En-
gis, situada no calcareo carbonífero da margem esquerda do Meuse e distante uns 3
kilometros a sudoeste de Liège, não pôde deixar de lamentar a sua destruição. Quando o
illustre Lyell a procurou em 1860. já o calcareo da sua formação tinha sido arrancado
a pedaços para material de construcções e fornos de cal! Foi o que suecedeu ás pyra-
mides prehistoricas que descobri nó Serro da Pedra Branca e no Monte de Roma, perto
de Silves, aos menhirs da cumeada de S. Bartholomeu de Messines, o que está suece-
dendo ás ruínas de Ossonoba e a todos os mais descobrimentos que tenho feito n'esta
província.
43
viana, como o demonstra o auctorisado paleontologista e anato-
mista na sua memorável obra cm dois volumes e um atlas, pu-
blicada em 1846, sob o titulo de Recherches sur ks ossements
fossiks découverts dam ks cavernes de la province de Liège, onde
são descriptas mais de quarenta cavernas, pela maior parte si-
tuadas nos valles do Meuse e dos seus afíluentes.
Não obstante os reparos e opposições que logo se manifesta-
ram, poucos annos depois os próprios arguentes, em obediência
á lealdade do seu elevado caracter, como aconteceu aos sábios
Denoyeres e Lyell, vieram confirmar a contemporaneidade da
vida humana com vários mammiferos do mundo antigo, uns ex-
tinctos, como eram o urso e a hyena das cavernas, e um, o ran-
gifer, emigrado e vivente nas regiões hyperboreas.
A todos, porém, foi escapando a significação das louças as-
sociadas áquelle conjuncto de critérios verdadeiramente geológi-
cos, porque ainda então não se sabia que a cerâmica era uma
das mais typicas manifestações dos tempos neolithicos, e que,
por isso, encontrada num tal deposito, somente serviria de prova
contraproducente, quando não se podesse demonstrar que a ca-
verna havia sido oceupada em epochas diversas, estando as lou-
ças numa camada superior inteiramente separada do deposito
inferior e sem indícios de ter sido revolvido e misturado ; por-
quanto, tendo-se já formado uma brecha que envolveu fragmentos
de louças, devera com preferencia julgar-se que os ossos huma-
nos não tinham alli a minima authenticidade de epocha.
Em Inglaterra, perante a tão cautelosa reserva com que se
presenciavam os descobrimentos feitos na França e na Bélgica,
reserva originada na auetoridade que nos espíritos ficaram exer-
cendo as affirmações cio rev.d0 dr. W. Buckland, embora pouco
posteriormente apparecessem no Devonshire provas ainda mais
concludentes, não permittia a incredulidade ingleza uma inter-
pretação que alterasse as prescripções estabelecidas na obra de
Buckland. O próprio rev.(1° J. Mac. Enery, padre catholico, que
pouco depois dos descobrimentos de Schmerling explorara no sul
de Inglaterra a caverna de Kent's Hole, uns 2 kilometros dis-
44
tante de Torquay, não se atreveu a preparar a celebre memoria,
que deixou inédita, sob o titulo de Cavem Researches, by the
rev. J. Mac. Enery, senão associando-se a Buckland, certamente
já convencido este geólogo das erradas proposições que havia
firmado nas suas relíquias diluvianas, e por isso ficou o manu-
scripto fora da acção da critica, retardando o progressos da scien-
cia até 1859 (!), em que M. Vivian o lançou á luz da publicidade.
Foi então que o mundo scientifico veiu a saber que a caverna de
Kent's Hole encerrava os instrumentos de silex mais typicos da
primeira idade das cavernas, similhantes aos de Moustier em
França, associados ao Felis spelcea, Hyena spelcea, Ros primige-
nius, Rhinoceros tichorinus, Hippopotamus major, Lagomys spelcea,
todos da fauna quaternária, apparecendo também no mesmo de-
posito vermelho, inferior ao solo stalagmitico, com todo este cor-
tejo insuspeito mais três dentes caninos de uma espécie pliocena,
o Felis machairodus, o maior d'este género, os quaes todavia po-
diam alli ter sido introduzidos pelos troglodytas do período pa-
leolithico, como occorreu a Lyell.
Esta publicação, que bem podéra ter-se feito muito antes da
obra de Schmerling, não chegou porém a correr mundo senão
dezesete annos depois de M. Godwin-Austen, subsequente explo-
rador da celebre caverna de Kent's Hole, publicar em 1842 nas
Transactions of the Geological Societtj1, a sua importante Memoir
of the Geology of South Devon, mostrando ter descoberto nos se-
dimentos de lodo argilloso ainda intactos, inferiores á cota do
solo stalagmitico, instrumentos lascados de silex misturados com
restos de mammiferos da fauna extincta; o que provava serem
synchronicos estes critérios e coexistentes n'aquelle deposito in-
ferior da caverna antes da formação do manto concrecionado.
Foi por assim dizer esta obra do insigne geólogo inglez M.
Godwin-Austen que começou a dispor os espíritos, ainda du-
vidosos, para a reacção que se foi lentamente preparando até
que, descobrindo-se em 1858 uma caverna ossifera intacta em
Vol. vi, p. 444, 2.a serie.
45
Brixham, 6 kilometros ao sul de Torquay, se desenvolveu o em-
penho de que fosse explorada em devida regra.
Tantas provas já manifestas deviam certamente vencer as
hesitações, as duvidas e incredulidades que a circumspecção
aconselhava aos homens mais escrupulosos e prudentes em as-
sumptos de tanta gravidade, e d'este modo a real sociedade de
Londres, despertando aos clamores do dr. Falconer, nomeou uma
commissão composta dos mais eminentes geólogos inglezes, a
quem incumbiu os trabalhos da exploração, e auctorisou as re-
spectivas despezas, para as quaes appareceu uma dama, miss
Burdett Coutts, contribuindo generosamente, como refere sir Char-
les Lyell.
As operações da exploração foram dirigidas porM. Pengelly,
a planta levantada pelo professor Ramsay, os critérios fosseis,
subordinados ás condições geológicas do seu jazimento, classifi-
cados e catalogados por MM. Falconer e Prestwich, e a classifi-
cação da fauna incumbida a M. G. Busk. O próprio Lyell, visi-
tando os trabalhos e examinando as collecções, tudo descreve
com a lucidez própria da sua superior sabedoria. A consubstan-
ciação dos resultados obtidos reduz-se a estes termos:
Na camada superior, formada de uma crusta stalagmitica,
da espessura de 2 a 35 centímetros, achou-se incrustada uma
armação de renna e um humerus de urso das cavernas. Ora, a
renna, Cervus tarandus, como é sabido, caracterisa uma espécie
vivente, mas emigrada em tempos prehistoricos para as regiões
do norte.
Na camada ossifera de lodo e calhaus, abaixo do solo con-
crecionado, da espessura de 60 centímetros a 4 metros, as es-
pécies extinctas mais typicas, classificadas por Busk, foram o
Elephas primigenias (mamouth), o Rhinoceros tichorinus, o Ursus
spelceus, a Hyena spelwa, o Felis spelcea, (chamado leão das ca-
vernas) e o Cervus tarandus (renna). Disseminados n'esta camada,
mas em maior copia no seu plano mais baixo, comquanto em
parte alguma se manifestassem ossos humanos, appareceram nu-
merosos instrumentos cortantes de silex, representando a indus-
46
tria dos homens que frequentaram aquellas cavernas em tempos
quaternários, correspondentes geologicamente ao período paleoli-
thico, muito antes da formação do solo stalagmitico e da própria
brecha ossifera composta pelo deposito sedimentar inferior.
Por esta forma, as theorias e proposições de Buckland, pro-
clamadas em 1823, sobre os factos até então conhecidos em rela-
ção ás origens da humanidade, ficaram prescriptas perante a scien-
cia e desmentidas pelas cavernas de Kent's Hole e de Brixham,
que evidentemente vieram demonstrar a existência humana em
tempos prehistoricos geológicos, correspondentes a uma fauna
pela maior parte extincta, ou emigrada para uma região glacial,
mostrando este facto que o homem foi testemunha presencial das
grandes convulsões que parcialmente transformaram a crusta e o
relevo orographico do planeta em que habitamos, da deslocação
que soffreu o antigo continente europeu de todo o território que
ficou formando o archipelago britannico, bem como da mudança
das condições climatéricas, que extinguiram n'esse retalho de
terra insulada as espécies que ficaram sem passagem para a emi-
gração que conseguiram fazer as do continente, abandonando as
zonas geographicas em que tinham vivido, para poderem viver,
ainda actualmente, n'outras mais septentrionaes, cujo clima pa-
rece dever denunciar qual seria o da Europa central ou da França
meridional antes da retirada do Cervus tarandus e de outras es-
pécies de herbívoros de géneros diversos.
E como se poderia explicar a apparição do homem, ou dos
productos da sua industria, em condições de synchronismo de
período geológico com os grandes mammiferos extinctos perten-
centes á fauna post-pliocena, em Inglaterra, sem primeiramente
se admittir uma passagem, que levasse esses mammiferos do
actual continente para o actual archipelago britannico?
Apesar de todas estas comprovações, pode affirmar-se, porém,
que quando o estudo synthetico das cavernas assumiu um des-
envolvimento quasi geral na Europa, foi desde que o insigne
Lartet começou a publicar as suas famosas monographias con-
cernentes ás cavernas do Périgord e d'Aurignac, e quando os
47
trabalhos de Schmerling foram proseguidos na Bélgica por M.
Dupont.
Muitos e grandes trabalhos relativamente ás cavernas de va-
rias regiões da Europa já correm impressos. Não seria difficil
traçar o quadro chronologico d'esses famosos estudos e referir a
successão dos descobrimentos effeituados até esta data. Não é
esse, porém, o meu propósito, mas simplesmente, com as noticias
que ficam expendidas, mostrar a conveniência, que sempre julguei
haver, em que o exame das antiguidades do Algarve, como pro-
puz, começasse pelas cavernas.
E seria porventura destituído de fundadas esperanças num
êxito sobremaneira mui provável, o estudo scientifico das caver-
nas do Algarve em presença das noticias que já tinham dado
alguns sábios hispanhoes relativamente a varias cavernas do seu
litoral marítimo do sul?
Quando se olha para uma carta geographica da península
hispânica e ao mesmo tempo se tem tomado nota das cavernas
ossiferas, citadas pelo sábio D. Manuel de Góngora no seu inte-
ressante livro das Àntiguedades históricas de Andalacia, occorre
logo a qualquer espirito observador e critico a circumstancia de
se terem achado nas províncias de Granada e Algeciras, a curta
distancia da orla marítima do Mediterrâneo, muitas cavernas com
abundantes ossos humanos e múmias admiravelmente bem con-
servadas, revestidas dos mais typicos característicos industriaes
da epocha que representam; occorrem ao mesmo tempo as cele-
bres cavernas do Monte Calpe (Gibraltar), e que todos esses de-
pósitos mortuários de diversos períodos prehistoricos defrontam
com a região septentrional da Africa, banhada pelas aguas
daquelle mesmo mar que banha as praias granadinas até ás Co-
lumnas de Hercules.
Faltam, porém, estudos fundamentaes no reino vizinho sobre
certas especialidades, ou, se taes estudos existem, são por mim
totalmente desconhecidos, e por isso, sobre todos, dois assumptos
principaes, a ethnologia e a ethnographia do sul da península,
não podem por emquanto permittir as deducções de que carece
48
a prehistoria (Festa extrema região. Não se examinou anthropo-
logicamente que raça representavam os craneos da caverna dos
morcegos e da de Albunol, tendo-se descoberto na primeira mais
de sessenta múmias admiravelmente bem conservadas, vestidas
e adornadas como haviam entrado naquella mysteriosa mansão
consagrada ao abrigo dos mortos.
Além de um diadema de ouro. que cingia a fronte de uma
daquellas múmias, nenhum outro metal se achou; appareceram,
porém, facas de silex, instrumentos de pedra polida e ossos tra-
balhados, dando áquelle conjuncto uma como feição neolithica.
As louças, porém, embora alguns exemplares fossem de forma e
fabricação rudimentar, apresentando na sua maioria uns certos
ornamentos e appendices, não tão antigas, poderiam considerar-se
talvez sendo tanto mais consócias de finos e mui engenhosos te-
cidos de esparto, os quaes vieram sobretudo denunciar os troglo-
dytas d'aquellas cavernas, já mui peritos na industria da tece-
lagem.
Não se compararam, emfim, os ossos das Cuevas de los Mur-
cièlagos e de Albufwl com os das cavernas do Galpe, e ficaram
por examinar as cavernas da região comprehendida entre o monte
Galpe e o cabo de S. Vicente, isto é, de todo o litoral do sul da
península, banhado pelo Atlântico; o que não teria succedido se
o estudo das cavernas do Algarve se tivesse effeituado ; porque,
embora não podesse absolutamente afiançar a existência de ca-
vernas ossiferas n'esta região geographica, não poucas probabi-
lidades havia neste sentido, por isso que acerca de algumas cor-
ria noticia de conterem thesouros e pedras preciosas, de se terem
achado n'outras muitos pedaços de louças grosseiras, de serem
apontadas muitas como utilisadas pelos mouros para sua habita-
ção e refugio em tempos de guerra, e finalmente por se dar o
facto, assas singular e talvez altamente significativo, de serem
mui frequentes nas proximidades das cavernas indicadas na carta
prehistorica vários instrumentos de pedra e também alguns de
bronze.
Não era de esperar que todas as cavernas marcadas na carta
49
e muitas outras (talvez dez vezes mais), que ficaram sem indica-
ção, contivessem ossos humanos, ou productos industriaes asso-
ciados a critérios paleontologicos e cm condições geológicas, que
permittissem o reconhecimento e a classificação do período ou
epocha do seu deposito.
Exploradas todas, julgar-me-ía mui bem galardoado, achando
simplesmente em taes circumstancias umas duas ou três. Foi o
que succedeu ao celebre Lund, que, tendo explorado no Brazil
mais de oitocentas, apenas em seis achou ossos humanos, do
mesmo modo que só três ou quatro cavernas ossiferas descobriu
na Bélgica o dr. Schmerling, tendo explorado quarenta e oito *.
Fica pois em aberto na prehistoria do Algarve esta lamen-
tosa lacuna, que impede talvez desde já uma serie de importan-
tes conclusões; mas não poderá agora, nem em tempo algum
ser lançada á conta da minha ignorância, porque empenhei todo
o meu esforço para que o estudo das antiguidades d'esta provín-
cia começasse pela exploração das cavernas.
Em Portugal pouco relativamente se tem feito, comquanto
sejam dignos de grandíssimo louvor os trabalhos do sr. Joaquim
Filippe Nery Delgado nas grutas de Cesareda e os que foram
mandados fazer em varias cavernas por Carlos Ribeiro, a quem
este paiz e a sciencia ficaram devendo serviços do mais transcen-
dente valor, para que o seu nome em todos os tempos futuros
mereça gratíssima recordação, e a sua perda, n'uma conjunctura
em que muito se devera esperar de seu génio tão laborioso, seja
justamente sentida e por emquanto irreparável.
São excellentes, abundantes de revelações importantíssimas,
e altamente valiosos os trabalhos, concernentes a grutas e caver-
nas, do sr. Nery Delgado e de Carlos Ribeiro; mas esses traba-
lhos são essencialmente monographicos, e comquanto forneçam
elementos de grande alcance, consignem asserções e conceitos
de utilíssimo aproveitamento, não podem pela sua índole, espe-
cialmente local, manifestar a feição geológica, paleontologica e
Dr. Joly, pag. 50.
4
50
archeologica que a sciencia reclama e exige ao território (Testa
nação.
Marcadas na carta geographica do reino as grutas e cavernas
exploradas e estudadas pelos mencionados geólogos, perceber-
se-ha immediatamente que esse limitado numero de pontos iso-
lados representa apenas a gloriosa inauguração de um novo es-
tudo em Portugal, coroada do mais feliz êxito e merecidamente
estimada, sem que comtudo permitia ainda as conclusões, que
somente poderiam deduzir-se de um estudo geral, rigorosamente
geographico e systematico em todo o território nacional.
Falta o nexo ethnographico para ligar esses pontos estudados
com as numerosissimas cavernas não estudadas que occupam
uma grandiosa parcella do nosso chão continental ; falta o conhe-
cimento geral das faunas que se deixaram representadas nesses
obscuros receptáculos ; falta o conhecimento das raças humanas
que povoaram ou frequentaram esses recônditos abrigos; faltam
as manifestações directas dos typicos productos da industria de
cada uma d'essas raças; falta o conhecimento dos pontos que
ligaram as estações troglodyticas d'este solo com os dos territó-
rios adjacentes, ignorando-se portanto o trajecto da marcha, se
a houve, que seguiram em cada periodo os povos que habitaram
as cavernas; e admittindo-se que a península não tivesse tido
aptidões de geração biológica propriamente suas, e só se po-
voasse com gente de estranhas plagas, falta o reconhecimento do
hypothetico ponto de partida d'essa gente ao entrar n'este terri-
tório e o da sua ultima estação, assim como de não estar ainda
feito este apuramento, a que se devera chegar, falta também uma
serie de outras importantes noticias para, á luz da critica dos
factos, se poder interpretar e reconstruir cada uma d 'essas re-
motíssimas civilisações e escrever-se a sua historia, começando-se
pelos primeiros assomos da existência humana n'esta derradeira
faxa occidental da terra.
Assim como a geologia, no estado de progresso a que já hoje
tem chegado, pode afoutamente determinar as evoluções cósmicas
e os cataclysmos por que passou esta parte do continente euro-
51
peu, enumerando as phases de sublevação e de abaixamento até
á fixação do aclual relevo orographico pelo simples exame das
suas rochas sedimentares, plutonicas e metamorphicas, pela com-
posição mineralógica e direcção que ficaram tendo as montanhas
e os valles, incluindo o curso dos rios e ribeiras, do mesmo modo
a paleontologia poderia já determinar as faunas que povoaram
este solo, pela maior parte primitivamente inundado; a anthro-
pologia ou paleontologia humana poderia já apontar as raças que
viveram nesta região, e foram ainda testemunhas impassíveis das
grandes perturbações que parcialmente modificaram o relevo e
configuração da crusta terrestre após o período post-plioceno,
por isso que, a admittirem-se como comprovações indirectas da
existência humana os productos da sua industria, encontrados
por Carlos Ribeiro nos valles do Tejo e do Sado, já neste terri-
tório havia homens l na epocha terciária, como também os havia
n'outras regiões do globo; e finalmente a archeologia prehistorica
chegaria a inventariar chronologicamente, permitta-se-me a im-
propriedade do termo, as provas da industria dos homens, as
phases de desenvolvimento e perfeição relativa por que foram pas-
sando de umas para outras civilisações, incluindo o modo de
viver e de sentir de cada uma, deduzindo-se d'essas mesmas
provas e das condições dos seus jazigos.
Está tudo isto por fazer e por saber, porque faltam estudos
fundamentaes, que só podem ser emprehendidos, mediante um
plano rigorosamente systematico, por uma sociedade scientifica
expressamente organisada para este fim especial, já que as exi-
stentes no nosso paiz parecem ter-se totalmente esquecido da sua
própria indole e da obrigação social, que se arrogaram, de levarem
a cultura e o progresso das sciencias até o seu máximo desen-
volvimento!
Era ás academias e sociedades altamente scientificas do reino
' O sr. de Martillet diz que o que havia então, não era ainda o homem, propriamente
dito, mas o seu precursor, e para não o deixar sem nome, chama-lhe anthropopilhecus,
entidade que o meu curto entendimento não precisa conceber para admittir a existência
do homem desde as suas mais remotadas origens.
52
que competia à iniciativa, o primeiro brado, o primeiro esforço
neste sentido, para assim se desempenharem da responsabilidade
que contrahiram com o paiz, com a sua própria dignidade e com
o futuro, cumprindo aos governos sábios, illustrados e patrióticos,
o concurso dos seus mais efficazes e poderosos auxílios, como se
tem feito na França, na Bélgica, na Allemanha, na Inglaterra, e
mesmo noutras nações de menor vulto, mas que prezam a scien-
cia e o pundonor nacional.
Nada d'isto se tinha emprehendido até 1877, quando a voz
publica convidou o governo a mandar estudar umas antiguidades
que fortuitamente haviam ficado á vista na margem direita do rio
Guadiana e em vários pontos do Algarve.
Fui eu incumbido d'este estudo, sem que para isso me fizesse
lembrado, e pedi logo três mezes de espera para organisar o
plano geral dos trabalhos que havia elaborado.
Entendi então, como entendo hoje, que em Portugal, embora
houvesse vários especialistas em diversos ramos da archeologia
monumental, nenhum tinha ainda manifestado o minimo plano
para levar o paiz a confraternisar com as nações que maiores
provas estavam dando do seu progresso n'esta sciencia.
Apenas tinha apparecido um geólogo audacioso, mas convi-
cto da significação dos seus descobrimentos, que, atravessando a
Europa, fora proclamar num congresso de sábios a comprovação
do homem terciário no território portuguez, e era Carlos Ribeiro
o athleta que se atrevera a affrontar essa lucta, ainda hoje não
vencida, mas altamente gloriosa, como a seu tempo se reconhe-
cerá.
Em archeologia histórica tinha apparecido Emilio Húbner,
um dos mais abalisados epigraphistas da Allemanha e professor
da universidade de Berlim, colligindo e publicando a riqueza epi-
graphica que ainda existia em Portugal, depurando-a das incor
recções com que o visconde de Paiva Manso havia compilado e
publicado as nossas inscripções romanas.
O sábio dr. Pereira da Costa publicava pouco depois as suas
preciosas memorias acerca dos Icjoekkenmoeddings de Cabeço de
53
Arruda c das antas de Portugal. Nery Delgado abria o caminho
para o estudo das cavernas, publicando a sua famosa memoria
acerca das grutas de Cesareda, seguindo logo Carlos Ribeiro com
o estudo de outras cavernas.
Começava pois a haver um certo movimento, uma certa exci-
tação no animo d'esses beneméritos da sciencia, a quem este
paiz sem duvida alguma deve relevantíssimos serviços ; mas plano
geral para o estudo das antiguidades do reino, tanto prehistori-
cas como históricas, não tinha apparecido, como disse, até 1877.
Estando pois encarregado officialmente do estudo geral das
antiguidades do Algarve para poder represental-as na carta ar-
cheologica, que tinha começado a esboçar em outubro de 1865,
entendi ser aquella a occasião de poder lançar as bases definiti-
vas para o reconhecimento methodico das antiguidades do reino.
A carta archeologica do Algarve devia portanto symbolisar
todas as antiguidades que se podessem verificar n'esta província,
sendo a sua representação subordinada a uma ordem regular e
methodica, por isso que tinham de ser descriptas, segundo essa
ordem indispensável.
Procurar onde deveriam achar -se as mais antigas manifesta-
ções de occupação territorial e seguir pelas subsequentes até,
pelo menos, á data da conquista portugueza, seria o plano mais
completo de averiguação, e conseguidos estes resultados, ficaria
estabelecido o systema para o estudo e representação das anti-
guidades geraes.
Foi o que pretendi levar a eífeito.
Comecei por indagar se nos estudos geológicos feitos no Al-
garve se tinham encontrado provas directas ou indirectas das ci-
vilisações que em tempos remotos senhorearam este território, e
não tendo ficado noticia alguma a este respeito, concebi logo o
pensamento de procurar essas provas geológica e archeologica-
mente no âmago das cavernas naturaes d'esta região. Formulei
n'este sentido a minha proposta; propuz que fossem primeiro que
tudo exploradas as cavernas; mas o governo, temendo a demora
e os dispêndios que poderiam custar aqui trabalhos idênticos aos
54^
que liuham sido feitos na Bélgica por Schmerling e Dupont, re-
jeitou-a, limitando o seu encargo ao exame das antiguidades in-
dicadas no solo por vestígios apparentes.
O exame das antiguidades do Algarve soffreu assim um pro-
fundo corte fundamental.
Cumpri portanto as ordens do governo, não explorando as
cavernas, mas tomei nota dos pontos em que existiam as princi-
paes para simplesmente as indicar a futuros exploradores. E uma
lacuna que fica em aberto, sem que nunca possa ser-me apon-
tada como censura.
Ha muitas mais cavernas, muitíssimas, que não me seria
difficil descobrir e indicar, se podesse fazer d'este assumpto um
exame especial sem a intervenção do governo, a quem nunca
mais acceitarei commissão alguma de serviço publico subordinada
aos prasos, de todo o ponto viciosos e absurdos, com que um
chefe de repartição calcula o tempo material que deve levar uma
qualquer exploração scientifica, parecendo não formar a minima
idéa d'este género de trabalhos!
Advertirei finalmente, que estes estudos não soffrem as re-
stricções ineptas dos prasos, que podem todavia ser muito úteis
para certas empreitadas de trabalhos de artes e officios, mas que
são incompatíveis com aquelles que nenhum fundamento mini-
stram ao calculo da zelosa burocracia. Melhor será, pois, quando
o governo queira mostrar-se altamente interessado pelo estudo
dos monumentos nacionaes, determinar uma verba annual para
se dispender com esse estudo, e mandal-a competentemente fisca-
lisar, porque d'este modo se conseguirá o resultado, fazendo-se
os trabalhos em devida regra. Extincta a verba, o explorador
deixa o campo preparado para continuar no anno seguinte, se
tanto for preciso, e recolhe-se para estudar e descrever o fructo
dos seus descobrimentos. Pode ser que este alvitre manifeste al-
guns inconvenientes ; mas, pelo menos, é racional e tolerável.
Eis-aqui a distribuição geographica das poucas cavernas de
que tomei nota e indiquei na carta prehislorica.
55
Ooncelho <ie .AJjezixr
Caverna da Sinceira, ao norte do castello e a nor-noroeste
da igreja. 4\ 500
Foi descoberta em março de 1883, por um caçador, sendo-
me communicado o seu descobrimento pelo sr. José da Gosta
Serrão em carta de 5 de abril, o qual, com muita gente do povo
a foi logo visitar. Diz o sr. Serrão que esta caverna é immensa,
dividida em corredores e casas de 20 e mais metros quadrados
sobre 2 a 3 metros de altura; que na occasião do descobrimento
muita gente se preparara com luzes e alli entrou em grupos, to-
mando diversas direcções, e que cinco minutos depois já ninguém
se via, mas simplesmente o clarão da luz, que diminuía ao passo
que os caminhantes se desviavam da entrada aberta pelo caçador
em occasião de se lhe ter escondido numa fenda da rocha um
coelho que perseguira.
O sr. Serrão refere ter com dois companheiros avançado na
direcção proximamente do norte uns 200 metros, ora sobre um ca-
minho liso e bom, ora entre grandes penedos, até chegar a um
grande salão de lindíssimo aspecto, de cujo tecto pendiam nume-
rosas e robustas stalactites, em que a luz das lanternas se refle-
ctia com phantastico brilho, e que junto d'este logar havia muitos
mosquitos, ouvira correr agua com grande estrondo, e que re-
ceiando lhe faltasse a luz, foi pelos seus companheiros obrigado
a deixar de proseguir. Refere finalmente ter encontrado um grande
dente de forma triangular, com fina serrilha nos bordos lateraes,
idêntico aos que foram achados no deposito neolithico junto á
igreja da Senhora da Alva, em Aljezur, os quaes pertencem a um
squaloide do género Carcharodon, não constando que taes dentes
se tenham achado n'outro sitio d'aquella região.
A menos de 1 légua de distancia fica pois a mansão mor-
tuária em que foram achados com os instrumentos de pedra os
referidos dentes de Carcharodon, dentes que por alli nunca foram
vistos senão na caverna da Sinceira. Esta circumstancia deixaria
com algum fundamento presumir, que os constructores do depo-
56
sito mortuário, descoberto a 14 metros ao norte da porta lateral
da matriz de Aljezur, mui provavelmente frequentariam aquella
ou alguma das outras cavernas existentes entre Aljezur e Ode-
seixe, e que d'esses sombrios edifícios da natureza trouxessem
aquelles dentes, a que ligassem qualquer significação mysteriosa
ou a que dessem applicação nalgum trabalho a que se prestasse
a rijeza da substancia, a sua configuração cuneiforme e as suas
arestas acuminadas e denteadas ao mesmo tempo, podendo ainda
presumir-se que a denticulação ou serrilha dos referidos dentes
inspirasse aos troglodytas d'aquella paragem a útil idéa de trans-
mitirem ás suas facas de silex a mesma feição, por isso que
muitas das que foram achadas no deposito mortuário manifesta-
ram este característico, havendo uma entre todas em que o re-
corte denteado, fino e regular nos dois gumes oppostos, é tão
perfeito como o dos dentes d'aquelle extincto vivente da fauna
antiga. E não se pode duvidar de que os referidos dentes fosseis
fossem utilisados, porque num monumento de Nora também já
tinham apparecido dois entre os instrumentos de pedra com des-
gastamentos nas arestas denteadas.
Sabendo-se pois, que a região de Aljezur abunda em cavernas,
e provada alli a existência de uma estação mortuária, capitula-
damente pertencente á ultima idade da pedra, mas em que os
seus critérios são largamente representados por farpas de frecha,
facas e serras de silex, que melhor presumpção poderia conce-
ber-se de que outra vivenda ou abrigo não teriam os homens
que estanciaram n'aquelle ponto, para assim se poderem julgar
essencialmente troglodytas? Em que paiz civilisado, ou pelo me-
nos com assomos de se julgar na senda do progresso scientifico,
deixariam os governos e as academias de mandar proceder á
exploração e estudo de taes cavernas?
Ainda que não fosse pela dedicação devida á sciencia, mas
simplesmente para se lisongear o espirito publico, e mostrar ás
nações estrangeiras, que a palavra progresso, a todo o passo in-
vocada em Portugal, não significa uma burla, valia bem a pena
sangrar ainda um daquelles prasos fataes, que ao explorador de
57
tantos descobrimentos já effeituados foram impostos com dias
contados, mas sem aquella clausula pouco racional e nada humana
de perder o que tivesse adquirido, se ultrapassasse as raias des-
ses prasos, calculados sem fundamento possivel pelos dictames
de uma secretaria de estado ! Mas não serei eu quem de novo
proponha a exploração das cavernas do Algarve. Para minha dc-
feza perante os homens competentes, bastar-me-ha registrar aqui
a recusa que já obtive.
Gralheiras — As grutas naturaes das Gralheiras estão si-
tuadas a oeste do castello mourisco de Aljezur em distancia de
lk,500, no plan'alto dos terciários marino e lacustre cm con-
tacto com o carbonífero inferior, comprehendido entre a raia ma-
rítima e o flanco esquerdo do rio, mui conhecidas pelo nome do
sitio em que se acham.
Apresenta alli a rocha algumas cavidades, que a própria na-
tureza produziu com caprichoso recorte, sendo possivel que em
tempos remotos tivessem sido habitadas pelos homens, que a um
quarto de légua métrica deixaram esparsos alguns instrumentos
de pedra polida, entre os quaes cito um machado mui perfeito, que
me foi offerecido em Lagos pelo illustrado dr. Augusto Feio Soares
de Azevedo, e que represento sob o n.° 2 na estampa n da collecção
dos instrumentos de pedra avulsos, existentes no museu archeolo-
gico do Algarve. Poderiam pois aquellas grutas ter sido utilisadas
em tempos remotos, quando as suas condições offerecessem asylo
seguro e defeso contra o assalto de feras e de homens não menos
perigosos, por isso que ainda fui encontral-as mais aprofundadas
por dois irmãos chamados Manuel e Ignacio da Rosa, os quaes
alli vivem e dormem durante o tempo em que cultivam os terre-
nos adjacentes, merecendo por esta circumstancia o titulo de mo-
dernos troglodytas.
Ha outras muitas cavernas na faxa litoral, tanto junto á praia
como no plan'alto sobranceiro ao mar e ao rio, entre Odeseixe e
a ponta da Arrifana, que não consta terem sido visitadas, e que
eu mesmo não ousei procurar, porque os prasos fataes não me
58
permittiam delongas para estudos não auctorisados e de incerto
resultado, mas que muito recommendo aos futuros exploradores,
quando um dia se começar a comprehender nas altas regiões do
poder e da sabedoria nacional a importância de taes estudos, já
tão conhecida e aproveitada noutras nações, em que a confrater-
nidade scientifica não se deixa dominar por antagonismos pes-
soaes e políticos.
Ooncelho de Villa cio Bispo
Caverna da Barriga. — Está esta caverna, a que dão o nome
de furna, situada a nordeste e distante da ponta do Cabo de
S. Vicente uns 5 kilometros. E accessivel a sua entrada tanto
pela praia da costa occidental, como pelo lado da terra, e não
pouco é frequentada por caçadores dos pombos bravos que n'ella
se abrigam. Servindo-me dos apontamentos que devo ao meu
obsequioso patrício e amigo o sr. coronel Francisco Corrêa Leotte,
a caverna da Barriga passa por ser uma das mais vastas de todo
o litoral marítimo. Referem homens antigos da Villa do Bispo,
que um estrangeiro, visitando-a, e querendo medil-a, deixara
amarrada á entrada a ponta de uma corda muito comprida e
que segurando-se á outra ponta a desenrolou inteiramente sem
conseguir chegar ao fim; o que não parece inverosímil, se com
effeito é certo haver um manuscripto inédito do bispo Jeronymo
Osório, como se diz, affirmando ter esta immensa caverna 1 lé-
gua de extensão. O sr. Corrêa Leotte affirma não ter podido visi-
tar toda a caverna, porque a curta distancia da entrada achou a
passagem obstruída por um dilatado pego, produzido pela cor-
rente das aguas.
Deve nolar-se a circumstancia de estar apenas 2 kilometros
distante para nordeste o sitio do Catalão, onde se tem achado
muitos machados de pedra polida em trabalhos ruraes. Um d'el-
les foi alli mesmo por mim comprado a um camponez e é o que
represento sob n.° 2, na estampa n. Fica também esta caverna
distante pouco mais de 6 kilometros para oes-sudoeste da Villa
do Bispo, onde se tem achado muitos machados de pedra, além
59
dos que alli comprei a gente do povo para a minha collecção, um
dos quaes vae figurado com o n.° i, na mesma estampa n. Logo
a 1 kilometro para es-sueste da villa, está o sitio dos Sellanitos
próximo á corrente da ribeira de Benaçoitão, em que igualmente
comprei o machado de pedra n.° 4, da estampa n, e me informa-
ram terem sido encontrados outros muitos. Dos Sellanitos pas-
sando ao norte do Barranco das Hortas e atravessando a ribeira
da Zorreta, outros machados de pedra me foram offerecidos por
Joaquim Leal, achados em Budens, Areias e Curraes, que nesta
ordem represento com os n.os 1, 2 e 3, na estampa m, assim
como na estampa iv, sob n.° 1, mostro um instrumento de pedra
polida, pontagudo numa extremidade, que comprei no Serro do
Haver, quasi marginal ao rio de Almádena, mui similhante a ou-
tros três da Torre dos Frades, que me offereceu António Marcel-
lino Madeira.
Ora, quem tiver á vista a carta prehistorica, e observar a
serie dos pontos designados entre a caverna da Barriga e o Serro
do Haver, notará que toda esta secção topographica está assigna-
lada ethnographicamenle por característicos attinentes a um povo
que a senhoreou no período da ultima idade da pedra, ao qual
seria difficil attribuir outro abrigo de habitação que não fossem
as mais próximas cavernas, como podem ter sido, além das que
ficam por apontar, as três seguintes, marcadas na carta, isto é,
a dos Ouriçaes, a de Beliche Velho e a de João Vaz; e por isso
bem comprehensivel é, quanto seria interessante e presumptiva-
mente promettedora a exploração que se emprehendesse nesses
recônditos edifícios da natureza.
Estas circumstancias de congruência, suggeridas á observa-
ção e á hermenêutica, vão porém escapando-se pela tangente das
conveniências materiaes e, a titulo de economia publica, sendo
desprezadas por quem não entende o seu alcance ou não duvida
sacrifical-o em troca de uma verba de despeza, que o simples
bom senso reconheceria ser indispensável applicar-se em benefi-
cio de um estudo que tem principalmente de ser baseado na cri-
tica dos factos. Não se percam porém de vista as outras três ca-
60
vernas, além das que omitto, que vão marcadas entre o cabo de
S. Vicente e a enseada de Sagres, se alguma vez houver quem
as saiba procurar e explorar.
Gruta dos Ouriçaes. — Está situada junto á praia da Roi-
çada, a que também chamam do Telheiro, 1 kilometro a no-
roeste da ponta do cabo e outro ao sul do Leixão de S. Vicente,
sobre a costa occidental. Não tenho noticias especiaes d'esta
gruta. Diz-se ser assas espaçosa, frequentada por bandadas de
pombos bravos, por lontras e rapozas, cujas pegadas, coprolithes,
e ossadas alguns caçadores têem observado. Gomo não me foi
permiltido o estudo das cavernas, deixei de visitar esta gruta ou
furna dos Ouriçaes, quando fui investigar se ainda naquelle
extremo retalho de terra firme haveria vestígio d'aquellas myste-
riosas pedras Lapides multis in locis temos aut quaternos impo-
sitos, a que se refere Strabão 4, e que não obstante o sentido em
que o geographo grego as toma, são interpretadas como signifi-
cando antigos dolmens pelo barão de Bonstetten,2 e se a minha
rápida passagem pela região do cabo de S. Vicente não me per-
mittiu atinar com vestígios de construcções megalithicas, de tu-
muli ou galerias cobertas, como julgo deverem existir, achei com-
tudo quem me vendesse um pequeno machado de pedra polida,
que represento com o n.° 3, na estampa n, encontrado nas escar-
pas da rocha próxima ao acastellado convento de S. Vicente, e me
informasse de terem apparecido outros muitos n'aquellas para-
gens; o que bem deixa entender que a população neolithica fre-
quentou aquelles logares, onde de outras habitações, além das
cavernas, não ha vestígios.
Não se me tome porém tanto a risca ou como prova de affir-
mação este conceito, para se dar como averiguado ou como con-
cludente o facto da habitação da gruta dos Ouriçaes, porque lá
estão outras não indicadas na carta prehistorica, que poderiam
ter sido preferidas. Citarei a seguinte.
' Lib. ih, 5.°
s Essai sur les dolmens, pag. 40— 1865.
Cl
Furna ou Caverna de Beliche Velho. — Está situada na cosia
marítima, comprehendida entre o cabo e a ponta de Sagres, e
mais restrictamente entre a fortaleza de Beliche e a ponta de Sa-
gres. Diz-se ser grandiosa, mas não encontrei quem me desse
approximada idéa das suas dimensões, configuração, e das par-
ticularidades apparentes que possam recommendal-a a um estudo
especial, além da circumstancia de se achar numa zona de terra
em que têem apparecido instrumentos de pedra e a que o teste-
munho histórico de Strabão, bem como as tradições propagadas
por Artemidoro, contemporâneo de Júlio César, attribuem uma
remota habitação.
Furna de João Vaz. — E esta a ultima furna ou caverna que
vae marcada na carta prehistorica pertencente á região do cabo
de S. Vicente, comquanto fiquem mais algumas sem indicação, o
que só poderá supprir-se, se se chegar a tratar do estudo espe-
cial das cavernas. Está sobre o flanco esquerdo da enseada de-
fendida pela fortaleza da Balieira (que também defende o flanco
esquerdo da enseada de Sagres) e a margem direita da ribeira,
ou antes pequeno rio de Benaçoitão. Parece ser uma das grandes
cavernas da costa do sul. E larga a sua entrada e accessivel a
um batel. A abobada do seu magestoso átrio é um tanto aba-
tida. E mui visitada por caçadores de pombos bravos. Nada se
sabe porém das suas ramificações e dos seus mysterios. Pertence
comtudo a uma região, fechada por uma serie de pontos em que
são frequentes os instrumentos de pedra polida, taes como o
cabo de S. Vicente, Catalão, Villa do Bispo, Sellanitos, Budens
e Areias.
Concelho cie Lagos
(Freguezia de Bensafrim)
Caverna da Saborosa. — A 2 kilometros e a es-sueste da
igreja de Bensafrim, no Serro da Cruz, sitio da Saborosa, e her-
dade dos Mirandas, uma grandiosa caverna se manifesta com
três entradas para outras tantas camarás, ficando a primeira ao
62
poente, a da direita a suesle e a da esquerda a nordeste. Estão
as ditas entradas obstruídas por pedras lançadas pelos maioraes
para os gados não entrarem na caverna e poderem melhor esprei-
tar a passagem dos coelhos. Refere o illustrado prior de Bensa-
frim, António José Nunes da Gloria, ter observado de fora as
três famosas camarás que dão entrada á caverna, parecendo-lhe
estarem entre si communicadas e abrirem para o fundo e lados
espaçosas galerias. A gente do povo crê que as galerias chegam
a Silves! Refere o mesmo noticioso prior, que a uns 100 metros
ao sul, e a mais de meia encosta do serro, se acha um grande
covão ou fojo de 30 metros de diâmetro e de forma circular, que
parece ser proveniente de um abatimento no solo ou antes da
abobada de alguma das camarás da caverna. Não está por em-
quanto sufficientemente observada; mas o facto de ser central a
um grande numero de logares em que são frequentes os instru-
mentos neolithicos, e de se terem achado no Monte Amarello, 4
kilometros ao norte de Bensafrim, indícios de construcções de
pavimento circular, calçado de pedra miúda, com muitos macha-
dos de pedra polida, crystaes de rocha e fragmentos de facas de
silex, obriga a ligar a esta caverna o maior interesse e curiosi-
dade na sua exploração, porventura mui esperançosa e profícua!
Ooncellio cie Portimão
(Freguezia da Mexilhoeira Grande)
Caverna bo Serro do Algarve. — Está situada quasi no
cabeço do serro d'este nome, a 3k,8 a nordeste da igreja da
Mexilhoeira Grande e distante pouco mais de 2 kilometros
da necropole de Alcalá. Logo á entrada acha-se o visitante
sob um arco proximamente ogival e num átrio de forma quasi
circular, coberto de abobada levantada em diversas ondulações,
cujas paredes apresentam um compacto revestimento assas cu-
rioso de aranhiços (Pholcus phalangioides, Walk.), que branda-
mente se balanceiam em suas oscillantes teagens. Diziam alguns
camponezes da Mexilhoeira Grande, que na parede, á esquerda
63
de quem entra, se viam pintadas varias figuras representando os
mouros que habitaram esta caverna. Não ha porém taes pintu-
ras, mas uma combinação caprichosa da rocha jurássica com a
infiltração estalactitica, produzindo veios, cores e formas de tal
modo dispostas, que com effeito parecem, até certo ponto, deli-
near vultos humanos.
Já se vê, pois, que a tradição local aponta a caverna do Serro
do Algarve como tendo sido habitada pelos mouros, porque aos
mouros refere o conceito popular quanto ha mais antigo. Da en-
trada ao fundo do átrio mede-se a extensão de 6 metros e ahi
se bifurca em duas passagens. A direita, na orientação sul e a 8
metros da entrada, ha uma cavidade á feição de poço, de fórma
proximamente circular, obstruída por uma tão grande quantidade
de pedra, segundo se diz, lançada alli pelos pastores serranos,
que não permitte reconhecer-se se tem seguimento para alguma
parte. A oes-sudoeste outra pequena abertura, também simi-
lhante a gargalo de poço, está obstruída de pedras soltas, mos-
trando porém um seguimento, cuja profundidade e direcção não
é possível calcular, e pega com uma passagem ainda aberta, de
pouca altura e pouco extensa, em cujo fundo as stalactites já
formam columnas com as stalagmites.
A caverna termina apparentemente bifurcando-se em dois
ramaes, um apontando para nordeste e o outro para noroeste.
No primeiro é visível uma grande fenda, actualmente intransitá-
vel, mas que pode ter sido praticável antes do desenvolvimento
que tem alli tido o solo stalagmitico já assas espesso. O ramal
que corre para noroeste seria porém transitavel, se não estivesse
obstruído por grandes e numerosas pedras. A este ramal pertence
uma pequena camará, em que se pode estar de pé sem constran-
gimento, de cujo tecto pendem cardumes de stalactites em suc-
cessiva formação.
O espaço em que se bifurcam os dois ramaes, assim como o
plano do que segue no sentido de noroeste manifesta coprolithes
antigos e recentes de um carnívoro do género Felis, o gato bravo
vulgar, podendo também ser o lynce, ou gato cravo (Felis par-
C4
dina, dos naturalistas), que mui provavelmente poderá penetrar
por algumas fendas em espaços mais largos e recônditos, agora
defesos ao ingresso do visitante.
Não são alli visíveis certamente vestígios apparentes de an-
tiga habitação humana em todo o espaço accessivel á observação,
mas a circumstancia de haver escondrijos occupados pelo carní-
voro, que frequenta a caverna, deixa presumir que ella tome á
extensa collina do chamado Serro do Algarve muito maior espaço,
embora actualmente desconhecido e vedado por abatimentos, ou
por accumulação de pedras lançadas a entrada das suas galerias.
A habitação antiga mui bem podéra igualmente existir sob o solo
de formação stalagmitica em camadas até muito inferiores, como
se tem verificado na Europa em varias cavernas, em que os ossos
com os detritos carriados pelas torrentes formam camadas sedi-
mentares brechiformes sob o manto concrecionado de uma for-
mação estalagmitica posterior. Outra circumstancia emfim re-
commenda esta caverna ao exame de futuros exploradores, e é
ser a única que se conhece como central a uma infinidade de
pontos em que são frequentes os instrumentos de pedra lascada
e polida, e não haver vestígios de habitação prehistorica na área
limitada por esses pontos, além de algumas cavernas artificiaes
escavadas no solo.
Ooncellio de Lagoa
(Freguezia de Estombar)
Cavernas da Mexilhoeirinha. — Sobre a margem esquerda
do rio que corre de Silves para a foz de Portimão, entre Silves e
a Mexilhoeirinha, ou Mexilhoeira da Carregação, muitas cavernas
são indicadas pela gente do campo com a tradição vivamente ar-
raigada na crença popular de terem sido a vivenda dos mouros,
que occuparam uma das secções topographicas mais importantes
do Al-Gharb mussulmano, atalaiada pelo castello de Alvor, cas-
tello Lindo e castellos de Portimão, Silves e Estombar, podendo
assim entender-se que a tradição confunde a epocha árabe com
outras de mais remota antiguidade.
05
Carlos Bonnet * refere-se a estas cavernas, parecendo com-
tudo não tel-as visitado. Averiguou, porém, haver com effeito
acima da Mexilhoeirinha montanhas calcareas com mui las c pro-
fundas cavernas naturaes, estando algumas abertas para o rio, e
repete a tradição de terem sido habitadas por mouros.
Uma visitei eu parcialmente, ate onde a claridade externa
me permittiu o transito. Está situada a nordeste e a uns 500
metros da Mexilhoeirinha. Tem duas entradas contíguas á feição
de arcos, espaçoso átrio, corredores e chão pouco ondeado. Re-
parte-se em diversos ramaes, cuja extensão e orientação não me
foi possível verificar. Notei, porém, estar obstruída uma das suas
passagens por grandes amontoamentos de pedras soltas, mui pro-
vavelmente despregadas da abobada. Algumas pessoas da popu-
lação rural afiançaram-me que a caverna era extensíssima, acere-
scentando logo outras, com o mais firme entono de convicção, que
ia terminar no castello de Silves! Tal é a fertilidade da imagina-
ção popular! O que para toda a gente do campo e mais especial-
mente para as lavadeiras, que costumam recolher-se naquelle
abrigo, passa por sabido e sem admissão a replica, é que os mou-
ros viviam naquella e nas outras cavernas da margem do rio, e que
quando o castello de Silves caiu em poder dos christãos (1189),
alli se refugiaram e viveram ainda muitos annos. Um trabalhador
já idoso refere que. sendo ainda moço, com outros companheiros
entrara muitas vezes naquella furna, mas que hoje não se pode
já ir tão longe como em seu tempo, em razão das muitas pedras
que os pastores do gado toem amontoado nas embocaduras das
passagens com o receio de que se perdessem algumas cabeças
dos rebanhos em meio d'aquella assustadora escuridão, onde
havia fojos ou abysmos profundos, que nunca ninguém observou.
Accrescentava ainda o informador, que lá por aquelles corredores
dentro havia casas lindíssimas com os tectos formados de bicos
de uma pedra de agua muito branca, muita louça de barro escuro
despedaçada e muitos morcegos, que chegavam a apagar as luzes
Memoria geológica do Algarve, 1850.
o
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que se levavam, que eram umas lijelas com sebo derretido em
azeite e uma torcida grossa de trapo no meio. Contava, final-
mente, que um parente seu achara lá dentro, debaixo de um
monte de conchas de marisco, umas cousas de cobre, que não
sabia dizer o que eram, porque sobre tudo isso já tinham passado
muitos annos.
A parte, porém, a exageração com que os narradores rústicos
geralmente engrandecem o que observam, parece comtudo haver
nas maravilhas que referem um certo fundo de verdade, que pode
guiar o explorador consciente a descobrimentos importantes para
a sciencia, e por isso as cavernas da margem esquerda do rio de
Silves, nas proximidades da Mexilhoeira da Carregação, ficam
aqui recommendadas para quando alguma vez haja governos
n'este paiz, que, comprehendendo o alto interesse que em todas
as nações cultas está inspirando o estudo das cavernas, saibam
dar por bem empregado o tempo e dispêndio que reclamam estes
interessantes trabalhos, que tantas revelações hão ministrado com
relação ás raças e ao grau de civilisação das mais remotas na-
cionalidades, que viveram n'este ultimo retalho occidental da
terra.
Furna da Zorra ou do Medronhal. — Corre a formosa e mui
pittoresca ribeira de Odelouca, navegável até á sua antiquíssima
ponte, agora renovada e desfigurada, por entre duas verdejantes
e alterosas collinas, denominando~se serra de Arge ou de Alge,
a que lhe serve de flanco direito e serra da Atalaya, a que lhe
forma a margem esquerda.
A foz d'esta ribeira pode marcar-se na extremidade sul do
mui galhardo ilhéu do Rosário, apenas separado da serra da Ata-
laya por uma estreita passagem, que mistura as aguas da ribeira
com as do rio que corre de Silves para Portimão, formando o
flanco oriental do ilhéu a foz do rio de Silves. Reservando-me
para em seu competente logar descrever o ilhéu do Rosário com
as suas antiguidades prehistoricas e históricas por mim desco-
bertas em 1878, e com as tradições que o assignalam naquella
C7
encantadora paragem, tratarei aqui somente do assumpto a que
me refiro.
Numerosas nascentes, manando da serra do Almirante ao
oriente, correndo pelo escarpado recosto da serra da Mesquita, e
mais caudalosamente partindo também da serra de Monchique,
vão precipitar-se sobre o profundo valle de Odelouca e cortam
na região alpestre mais elevada da serrania do Algarve o carbo-
nífero inferior, a erupção foyaítica de Monchique, a faxa do trias
na latitude de Silves, o jurássico superior, que chega no flanco
direito até á margem esquerda da ribeira do Boina e no esquerdo
até á extremidade que separa a serra da Atalaia do ilhéu do
Rosário. Ora, é precisamente ao sul da faxa do trias, em plena
região jurássica, e a montante do terciário marino que conslitue
os flancos da foz do rio de Portimão, que estão situadas as ca-
vernas da possante ribeira de Odelouca, tanto na serra da Ata-
laia como na serra de Arge.
E preciso, porém, sabel-as procurar e reconhecer, porque as
suas entradas não são sufficientemente definidas ou accessiveis
actualmente. Citarei apenas a da Zorra ou do Medronhal, por ser
a primeira que se acha na secção marginal comprehendida entre
a margem direita da ribeira de Odelouca e a esquerda da ribeira
do Boina, uns 500 metros distante da foz de Odelouca.
Chamam-lhe caverna ou furna da Zorra, porque, com effeito,
os pellos e coprolithes do astuto mammifero d'este nome, denun-
ciam a sua passagem e habitação no interior daquelle edifício da
natureza, cujo âmbito é desconhecido, porque só é accessivel ao
visitante o seu apertado átrio. Não indico na carta prehistorica
as outras cavernas das duas serras, separadas pela corrente da
caudalosa ribeira de Odelouca, porque os prasos que me foram
concedidos para o reconhecimento geral das antiguidades do Al-
garve não podiam de forma alguma abranger mais esta especia-
lidade, cujo exame seria certamente muito moroso.
Tendo-se porém á vista a referida carta, notar-se-ha que a
secção topographica cortada pelas ribeiras de Enxerim, Odelouca
e Boina abunda em critérios neolithicos, representando um povo
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que alli estanciava na ultima idade da pedra, e que embora ou-
tras habitações terrestres po desse ler tido, mui provavelmente
não desprezaria aquelles abrigos, que a natureza ministrou ás
limitadas necessidades da infância humana.
No mesmo caso estavam os que por tão diversos pontos dei-
xaram prova da sua existência na secção comprehendida entre a
margem esquerda do rio de Lagos e a direita do de Portimão,
abrangendo as ribeiras de Odiáxere, de Arão, do Farello e do
Verde; pois é mui provável que a caverna do Serro do Algarve,
próxima á margem direita da ribeira do Boina, não seja a única,
por isso que na serie mesozóica das rochas sedimentares d'aquella
região é todo jurássico o terreno adjacente á ribeira do Boina,
entre a faxa do trias ao norte e o terciário marino ao sul, sendo
portanto mui provável que esse retalho do jurássico superior con-
tenha algumas cavernas, embora não conhecidas actualmente.
Sem uma exploração exclusivamente destinada ás cavernas nada
se pode porém afíirmar.
Concelho de Lagoa
Furna da Senhora da Rocha. — Todo o viajante habituado a
sulcar as aguas da costa do sul de Portugal conhece a ponta do
Carvoeiro ou cabo Carvoeiro, formado por uma elevada rocha de
cretáceo inferior, pertencente á serie mesozóica das rochas sedi-
mentares, avançada para o mar, na latitude de 37° 7', e um
tanto ao nascente, propinqua ao oceano, a ermida amuralhada
da Senhora da Rocha, defendida por uma bem situada bateria.
Entre esta ermida e a ponta do Carvoeiro está a muito antiga,
forte e grande povoação de Porches Velho, outr'ora defendida por
um castello, de que D. Affonso III, em 1252, fez doação ao seu
chanceller D. Estevão Annes, mas que no dia do terremoto de
1755 ficou pela maior parte destruída, perdendo duzentas e trinta
e oito casas de habitação. Entre a ponta do cabo e as minas do
antigo castello, a nordeste junto á praia, está situada a chamada
furna da Senhora da Rocha, assaz espaçosa, de forma quasi cir-
C9
cular, alumiada por um óculo, que sobre a sua entrada está
aberto na abobada natural que a cobre. Póde-se alli entrar a pé
enxuto, mas não se sabe hoje se cm antigos tempos se commu-
nicava com algumas ramificações actualmente obstruídas.
Se esta furna ou caverna foi habitada em eras remotas, não
se pode dizer, porque nenhum trabalho de investigação alli se
tem feito neste sentido. É, porém, muito notável o grande numero
de instrumentos de pedra polida, que consta tcr-se achado nas
immediações da caverna e em toda a área do concelho de Lagoa,
mostrando a frequência que teve aquella raia do litoral marítimo
no período neolithico um povo que usava instrumentos de pedra
polida, sem que se lhe possa attribuir outro abrigo de habitação
mais próximo do que a mencionada caverna.
No museu do Algarve existem três machados de pedra: um,
que comprei em Porches Velho; outro, no sitio de Grastos; e o
terceiro, que eu mesmo achei isolado, indo a pé de Grastos para
a Senhora da Rocha, os quaes vão figurados na estampa xvm,
sob os n.os 2, 3 e 4, pertencentes á minha collecção.
Bastaria pois esta circumstancia para que a exploração
d'aquella caverna se devesse emprehender.
Concelho e íreg^iezia de Albufeira
Furnas da Orada, grutas das Gralheiras e furnas da Praia.
A villa de Albufeira está situada sobre rochas escarpadas e pro-
pinquas ao mar, em que o terciário lacustre e o marino estão no
contacto do jurássico superior, formando duas mui avançadas
pontas, uma ao nascente, chamada o Porchel ou de S. João, e a
outra ao poente, denominada a Balieira. Estas duas pontas limi-
tam ao sul as extremidades de uma enseada de quasi nullo abrigo
para a navegação, a que se tem dado o nome de bahia de Albu-
feira, e cada ponta está ligada a uma praia assaz extensa, em
que ha muitas furnas não exploradas, como é a da Senhora da
Orada, como são as das Gralheiras e as da Praia.
Se essas furnas e grutas, que se diz serem assaz espaçosas,
foram' habitadas em tempos prchistoricos, não se pode saber sem
que sejam devidamente estudadas. Sabe-se, porém, que não pou-
cos instrumentos neolilhicos têem apparecido em terrenos mui
próximos, o que, pelo menos, deixa presumir que taes abrigos não
seriam desconhecidos dos homens que viveram e frequentaram
aquella região na ultima idade da pedra. Alguns camponezes de
Albufeira"possuem machados de pedra que não vendem nem ce-
dem por forma alguma. A uma mulher idosa pretendi pagar muito
bem dois 'que possuía, um a que ella dava o nome de raio, e o
outro que distinguia d'aquelle pelo nome de centelha, e não quiz
vender, sendo pobríssima, porque sempre tinha tido muito medo
de raios. Tal é a crença que de longas eras ainda existe rediviva
no conceito popular.
Na estampa xix, sob o n.° 1, represento um pequeno ma-
chado de pedra polida, encontrado para os lados da Senhora da
Orada, pertencente á collecção do sr. Joaquim José Júdice dos
Santos.
Caverna do Sumidouro dos Lentiscaes. — Está situada esta
caverna numa como garganta do jurássico superior, apertada
entre a isolada formação do terciário lacustre de Paderne, e uma
ramificação da rocha triassica, que atravessa a região central
d'esta província do poente para o nascente. A entrada que hoje
se lhe conhece, assaz estreita e profunda, é circumdada de gros-
sos penedos, e por ella se somem as aguas pluviaes do serro do
Espargal e dos terrenos adjacentes. Dizem ser mui dilatada por
extensas e complicadas ramificações, mas ninguém affirma ter
alli penetrado. Julga-se, com algum fundamento, que varias nas-
centes, arrebentando a grandes distancias, têem n'esta caverna
o seu poderoso deposito. Outros dizem ouvir-se correr a agua no
interior d'ella, produzindo estrondos, como se formasse quedas
á feição de catadupas, e um susurro longiquo; mas que a aber-
tura por onde recebe as aguas da chuva, não é a entrada antiga
da caverna, com a qual não se acerta agora por estar abatida e
desfigurada.
71
Carlos Bonnet, na sua já cilada memoria, refere-se somente
á abertura por onde entram as aguas do Espargal e confirma a
situação indicada, dizendo achar-se á direita do caminho de Alte
para Paderne, passando-se a rocha Amarella. Ha finalmente a
versão de que o sumidouro dos Lentiscaes, se communica com a
vasta caverna da igrejinha dos Sôidos ou Soídos. E, porém, in-
verosímil esta asserção; porquanto, a igrejinha dos Soidos está
situada num retalho do jurássico superior, entalado entre a raia
sul da faxa do Irias, que forma a cumiada de S. Bartholomeu de
Messines até Salir, e uma larga ramificação que d'essa faxa corre
para leste ainda além dos dois logarejos de Benafins com a ex-
tensão de uns 4 kilometros, não sendo inferior a sua menor lar-
gura a 1:500 metros. Por esta possante ramificação da rocha
triassica estão pois geologicamente separadas e incommunicaveis
as duas mencionadas cavernas.
Se com eííeito existiu outra entrada para a caverna do su-
midouro dos Lentiscaes, é possível que n'ella houvesse uma parte
habitável, de que se utilisassem os homens que se deixaram re-
presentados nos campos de Paderne, na Fonte Santa, em Alie e
Paniachos por instrumentos neolithicos, taes como os que vão figu-
rados na estampa xix, sob os n.os 2, 3 e 4.
Concelho de Silves
(Freguezia de Algoz)
Caverna de Algoz. — A igreja de Algoz está situada em pleno
terciário lacustre no contacto do jurássico superior, e é no Serro
de Gueina, 1 kilometro ao noroeste da igreja, que Carlos Bonnet,
na sua memoria geographica e geológica, publicada em 1850,
pag. 40, dá noticia de uma grande caverna, que todavia não vi-
sitou, mas de que teve informações.
Não vi eu também esta caverna, comquanto d'ella me dessem
conhecimento quando entrei na aldeia de Algoz e fui examinar
os campos adjacentes a oeste e a leste do Barranco Longo, e da
ermida da Senhora do Pilar ao sul de Algoz, onde me informa-
72
ram ser frequente o apparecimento de pedras de raio, e d'onde
com effeilo já conhecia um polidor de pedra, pertencente á col-
lecção do sr. Joaquim José Júdice dos Santos, que represento na
estampa xv, sob o n.° 3.
Em Algoz comprei eu um machado de pedra, que havia sido
achado nas proximidades da ermida do Pilar, o qual pode ver-se
na minha collecção depositada no museu do Algarve. Àcham-se
portanto nas proximidades daquella caverna, que se diz ser das
maiores do Algarve, isolados critérios do período neolithico, dei-
xando assim presumir que não deixariam de aproveitar aquelle
abrigo os homens que taes instrumentos alli deixaram.
Concelho de Loulé
(Freguezia de Alte)
Igrejinha dos Soídos. — 0 ponto do Sobradinho, na vertente
de sueste do Serro dos Soidos, n'uma elevação de 472 metros,
que o navegante observa do mar entre o cabo Carvoeiro e a ponta
da Balieira, distando de Alte ao noroeste uns 1:800 metros, in-
dica a caverna da igrejinha dos Soidos, marcada na carta pre-
historica. Já ficaram descriptas antecedentemente as condições
geológicas d'esta caverna, acerca da qual deixou Carlos Bonnet
as noticias, que vou referir, impressas em 1850 na sua Descri-
ption géogràphique et géologique (Algarve).
Carlos Bonnet visitou esta caverna, julgando nella encontrar
vestígios de habitação humana, e refere ter alli feito uma exeava-
ção, mas que não achou ossos! Já se vê que sob o manto stala-
gmitico é que concebeu a possibilidade de encontrar vestigios
directos de habitação. Não diz, porém, as espessuras que rompeu
nem indica os pontos escolhidos para a sua pesquiza, certamente
muito incompleta. Não falia de provas indirectas, ou de vestigios
da industria antiga, que bem parece não ter procurado, ou não
ter sabido reconhecer, apesar das tradições locaes apontarem
esta e outras cavernas d aquella região como tendo sido habita-
das por mouros.
Não admira, porém, que a Bonnet escapassem, em 1850,
estas interessantes particularidades, quando hoje, com tanta sabe-
doria que neste paiz se apregoa, ainda não se reconheceu a ne-
cessidade do estudo das cavernas do Algarve, por mim proposto
em 1877, e apenas tôcm sido exploradas, sob os auspícios da
secção geológica, algumas do litoral marítimo da costa Occiden-
tal, mas sem attenção á ordem geographica, não se podendo por
isso formar approximado conceito da expressão etimológica das
raras troglodyticas, que viveram n'este solo, nem da sua distri-
buição geographica. Não ha, pois, um pensamento definido, pre-
sidindo a este estudo, nem systema a que devam subordinal-o
os próprios monographistas. Em assumptos archeologicos cada
qual corre para seu lado; falta a congregação, porque a iniciativa
não parte d'onde devera partir; apenas sobeja o antagonismo, pro-
movendo embaraços e desconceito para os que trabalham.
Por estas e outras causas, o atrazamento n'este género de
inslrucção superior em Portugal é deplorável! Por isso, o pouco
que Carlos Bonnet disse, ha mais de trinta annos, de algumas
cavernas do Algarve, é preciso aproveitar-se, agradecendo á sua
memoria este serviço. Relativamente á igrejinha dos Soidos dá
as seguintes noticias:
«Na vertente de sueste da rocha dos Soidos, acha-se a entrada
d'esta caverna no logar denominado Sobradinho, ao norte de
Alte um quarto de légua, ao nivel do chão, e é tão apertada, que
só com difíiculdade se vence a sua passagem. Para alli se entrar
é mister levar luzes. E grandiosa, de forma circular, de abobada
muito elevada á feição de cúpula, a primeira camará. As stala-
ctites assaz grossas e separadas umas das outras formam com
as stalagmites umas columnas similhantes ás das igrejas. Para o
lado do nascente ha diversas passagens que se dirigem a cavi-
dades baixas, e estas parecem capellas. Em razão de tal confi-
guração deram os habitantes das localidades próximas a esta ca-
verna o nome de Igrejinha, considerando a grande sala como
nave central e as camarás contíguas como capellas. Nas proxi-
midades da entrada ha muitas fendas e buracos, que communi-
cam com outras cavidades, como geralmente se acham em todo este
lado do serro, sendo por isso perigoso percorrel-o sem um guia.»
Carlos Bonnet, pelas informações que obteve, diz ser muito
maior do que esta a caverna do serro de Gueina, perlo de Algoz,
acima indicada.
Já notei, que em Alte e Fonte Santa, ao sul do Sobradinho,
são frequentes os instrumentos prehistoricos, abundando também
os de cobre e bronze nas immediações da mina cuprifera de Alie;
o que bem mostra ter aquella região sido frequentada pelas an-
tigas raças que senhorearam o solo d'esta província.
Caverna do Poço dos Mouros. — No concelho de Loulé, fre-
guezia de Alte, e não mui distante da antecedente, acha-se esta
caverna no serro da Pena, a noroeste de Salir uns 6 kilometros.
E muito nomeada nas localidades próximas e em todo o Algarve.
A gente mais antiga do campo refere-lhe varias tradições, e porque
toda essa gente acredita convictamente, que fora uma das prin-
cipaes habitações dos mouros, denomina-a por isso Poço ou Ca-
verna dos Mouros.
O serro da Pena, figurando no alto relevo orographico d'esta
província com 470 metros de altitude, numa cota pouco inferior
ao serro dos Soidos, de que é separado por um extenso valle,
termina a sua máxima elevação num apparatoso planalto ligei-
ramente ondulado com mais de 3 kilometros de extensão de
oeste para este, sobre uma largura que atlinge do norte ao sul
mais de lk,500, sendo nestas ultimas orientações inaccessivel,
por ser a rocha quasi cortada a pique.
É o serro da Pena mais procurado pelas rapinas (águias,
griffos, bufos, francelhos e gaviões),1 do que pelos visitantes, que
1 Por informações cie alguns caçadores da freguezia de Aite, e do gente da próxima
aldeia da Penina, o serro da Pena ò frequentado por muitas rapinas. Dão noticia de duas
águias, que bem podem ser a real (Aquila chrysaclos, L.) e a imperial (Aquila heliaca,
Savig.); do grillb (Gyps fulvus, Gm.); do francelho (Folco linunculus, L.?); do milha-
fre (Milvus regalis, Br.); do buffo ou corujão (Bubo maximus, Sibb.); do gavião (Acci-
piler nisus, L.) c de outras espécies, que não sabem descrever. Quasi todas são vulga-
res, ou têem sido observadas no Alemtejo, e por isso não admira que também se achem
no Algarve, cuja ornithologia, como tudo mais, carece de estudo especial.
/')
só a muito custo conseguem vencer as abruptas e empinadas ver-
tentes do poente e nascente para chegarem ao bello plan'allo em
cjue se acha o Poço dos Mouros, a que alguns camponezes dão
também o nome de Algar dos Mouros.
Percorri os mais elevados serros d'aquella região, e no da
Pena fui principalmente observar a entrada do Poro dos Mouros,
mas não visitei a caverna, porque não ia preparado com luzes
próprias, porque o meu trabalho não permittia delongas em es-
tudos não auetorisados. Foi porém duas vezes vista por Carlos
Bonnet, e por isso vou restringir-me ás noticias que este acadé-
mico deixou escriptas na sua referida memoria, publicada em
língua franceza, pela academia real das sciencias, em 1850.
« A caverna denominada Poço dos Mouros, Buraco dos Mou-
ros (Caverna dos Mouros) é a mais profunda da província e me-
rece alguma attenção. Ácha-se a sua entrada sobre o planalto
da serra da Pena, que n'este logar descáe um tanto para o sul.
Não se descobre a sua abertura senão quando se está junto
d'ella. A montanha, em razão das muitas convulsões por que tem
passado; está cheia de amontoamentos de penedos ; a sua altitude
junto á entrada da caverna é de 455 metros, medindo uns 20
metros de circumferencia sobre 5 de profundidade; mas só pelo
lado do nascente se pôde descer. As aguas pluviaes de uma parte
da serra dão alli entrada e por isso a humidade lhe alimenta
uma constante vegetação. Quando a visitei (diz Bonnet), havia
uma frondosa alfarrobeira, que lhe sombreava e encobria a en-
trada. Tendo-se descido, acham-se muitas fendas e para o no-
roeste duas aberturas, uma á esquerda, de 7 a 8 palmos, e outra
mais pequena á direita, por onde uma pessoa, de grossura me-
diana, pôde passar e descer a uma profundidade de 12 a 15
palmos, onde se encontra uma camará, alumiada pelas frestas,
de solo ondulado e escorregadio, com 30 palmos em todas suas
dimensões. Do lado de oeste 35° norte, acha-se outra abertura
de 12 palmos de largura e de 15 a 18 de altura para um corre-
dor de ladeira rápida de 75°, onde já é preciso caminhar com
luz. Tem este corredor para noroeste uma inclinação de quasi
35°; percorridos 100 palmos de extensão, diminue de largura,
até 4 palmos e de altura a uns 7 ou 8. N'este ponto reparle-se
num grande numero de zigzags, permitíindo ainda o transito até
uma extensão de 400 palmos, onde toda a passagem está inter-
rompida por amontoamentos de pedras, que antigamente não
existiam, e por isso se podia ir muito mais longe.
« Uns 25 palmos antes d'este ponto interrompido, acha-se na
direcção de nor-noroesíe uma abertura mui pequena, que dá en-
trada a uma passagem bastante estreita no rumo do norte, onde
é mister ir de rastos por uma apertada passagem de 120 pal-
mos; então esta passagem toma o rumo de noroeste e começa a
ganhar maiores dimensões, a ponto de se poder transitar de pé;
e prosegue o seu alargamento até á distancia de 1 1 metros, em
que se acha uma grande camará com 85 palmos cie comprimento
na direcção oeste 32°, norte a sul 32° este, sobre 45 de largura.
Do estreito corredor até este salão desec-se por ladeira pouco
inclinada.
« Não é parelho o solo d'esta grande cavidade, porque para o
centro começa a levantar-se pela formação de uma stalagmite.
A abobada tem a forma pyramidal ou de funil invertido, com 140
palmos de altura. A rocha calcarea que constitue as paredes é
lisa, compacta e polida. A abobada tem algumas stalactites. Para
o lado do sul ha no solo um pequeno abatimento. Os morcegos
são os habitadores d'esta recôndita camará; os seus excrementos
já formam uma espessura de 3 palmos. Rompendo a rocha con-
crecionada do solo (diz Bonnet), não havia ossos. A direcção mé-
dia d'esta caverna é oeste 45° norte a este 45° sul, o que dá
noroeste a sueste. O seu comprimento, comprchendendo as sinuo-
sidades, orça por 1:000 palmos (222m,23), e calculando a incli-
nação das differentes rampas, poderá ter uma profundidade ver-
tical, abaixo do plano da entrada, de 130 palmos, ou 28m,60.
« Esta caverna é assumpto de superstição entre os habitantes
dos arredores, que só" se lhe approximam com certo terror, sem
que todavia se atrevam a visital-a. A tradição refere que durante
muitos séculos ninguém ousou n'ella entrar senão um padre, que
disse ler encontrado um lago e uma ribeira. O padre iria talvez
numa occasião pouco depois das chuvas, e por isso acharia um
deposito de agua; e não deixa de ser verosímil, que, n'uma epo-
cha anterior, podcsse percorrer distancias agora interrompidas
por amontoamentos de pedras, e achasse um reservatório subter-
râneo; e tanto isto é de acreditar, que nas vizinhanças brotam
abundantes nascentes cujas aguas podem provir d'este serro. 9
Em junho de 1846 e setembro de 1847, diz Bonnet não ter
encontrado agua no interior da caverna.
O nome de Poro dos Mouros (referem os habitantes) provém
de ter sido habitada a caverna pelos mouros, que se bateram
sobre a montanha no tempo da sua expulsão do Algarve. A este
respeito colligiu Bonnet uma lenda, que não reproduziu na sua
memoria. Grande quantidade de calhaus arrastam para alli as
torrentes pluviaes, interrompendo as passagens. A segunda vez
que Bonnet visitou a caverna com um anno de intervallo, foi
obrigado a abrir caminho por elles, em logares onde no anno
antecedente não existiam, e por isso julgou que passado mais
algum tempo ninguém poderá chegar á grande camará que ficou
descripta.
O serro da Pena, segundo as observações feitas por Carlos
Bonnet, apresenta no seu planalto uma ligeira inclinação de oeste
para este, tendo a oeste a sua máxima cota de 470 metros, no
centro a de 460 melros e a este, junto á entrada da caverna,
455 metros. Este abaixamento de 15 metros com relação ao
ponto culminante e á extensão da montanha, forma pois um an-
gulo muito agudo, e por isso pouco sensível á vista do observa-
dor. A rocha pertence a formação do calcareo jurássico, tendo
ao norte no seu contacto a faxa triassica, que corre do poente
para o nascente, cortando a província inteira.
Diz Silva Lopes,1 que na raiz da rocha da Pena e na da Pe-
nina, meia légua distante, brotam fontes de agua férrea, o que
com effeito verifiquei ser exacto, e que umas grandes fendas, que
Clioroçrrapliia do reino do Algarve, pag. 320—1841.
78
atravessam a rocha da Pena, foram produzidas pelo terremoto
de 1755, que lhe desaggregou e expelliu a grandes distancias
varias pedras de prodigiosa grandeza.
O facto de não ter Carlos Bonnet achado ossos humanos no
corte que fez sobre o solo concrecionado ou stalagmitico da
grande sala dos morcegos, é insulíiciente para provar que neu-
tros logares da caverna não haja indícios de ter sido habitada
em tempos prehistoricos. As tradições locaes deixam presumir
que o foi, porque talvez em tempos antigos alli se achassem os-
sos humanos ou objectos próprios dos usos da vida, e que não
se conservando noticia de outro povo anterior á invasão mussul-
mana, aos mouros se referisse a occupação da caverna; e para
que não ficassem essas memorias sem o maravilhoso que lhes ó
peculiar nas lendas tradicionaes, imaginou-se um grande com-
bate no alto do serro da Pena entre mouros e christãos, e a re-
tirada dos mouros vencidos para o interior da caverna, quando
é provável que o mais próximo combate que houvesse, fosse o da
tomada do castello de Salir, uns 6 kilometros a sueste do Poço
dos Mouros.
Interpretadas assim as tradições, accresce a circumstancia
congruente de terem por vezes apparecido nas proximidades da
caverna, em Paniachos, campos de Alte e Fonte Santa, como vão
indicados na carta prehistorica, significativos critérios neolithicos
e da idade do bronze.
Faltando, porém, as provas affirmativas, suppram-n'as por
einquanto as presumpções de que uma bem dirigida exploração
poderá mostrar que não os mouros de outro dia, mas os selva-
gens de outr'ora seriam levados a utilisar um tão vasto e seguro
abrigo, tanto mais tendo-se verificado a existência de um dolmen
coberto, já destruído, no serro das Pedras, situado na linha de no-
roeste a sueste, entre a caverna do Poço dos Mouros e o castello
de Salir, como vae figurado com a sua respectiva planta na es-
tampa n.° xi, e com os objectos alli achados, representados na
estampa x, sob os n.os 1 a 8, advertindo que entre o dolmen e a
caverna haverá apenas a distancia de uns 5 kilometros.
71)
E porque mui provavelmente não serei eu o explorador cTessa
caverna, aqui ponho de aviso, a quem o for, a circumstancia, já
parcialmente declarada por Bonnet, que pode dar-se, de não se-
rem alli encontrados ossos humanos, mas simplesmente provas
indirectas de ter sido habitada; o que poderá significar, se taes
provas indirectas apparecerem, que os troglodytas da caverua do
serro da Pena preferiram construir depósitos externos para reco-
lherem as relíquias dos seus defuntos. Talvez então se descu-
bram outros depósitos mortuários nos mais próximos serros da
região e maior copia de critérios prehistoricos nas circunvizinhan-
ças da celebre caverna, que venham auxiliar esta presumpção.
Se me tivesse sido entendida e concedida a proposta que fiz
em 1877, para que o estudo das antiguidades do Algarve come-
çasse pelas cavernas, os factos suppririam hoje escusadas conje-
cturas. É o que succede todas as vezes que se altera o andamento
de qualquer trabalho, ou quando se encommendam trabalhos pú-
blicos, mais por conveniência de occasião do que pelo zelo scien-
tifico.
Caverna da Solestreira. — Occupa esta caverna uma extre-
midade da formação jurássica no contacto da rocha triassica entre
Salir e Querença, freguezias pertencentes ao concelho de Loulé.
Dizem varias pessoas, que a visitaram, ser uma das maiores
d'esta província. Estive mui perto da sua entrada numa occasião
em que não era possível pernoitar n'alguma das duas referidas
freguezias, porque o pouco tempo de que podia dispor o empre-
guei no exame que fui fazer ao serro das Pedras, onde havia um
dolmen coberto destruído, que represento na estampa xi. Obtive
comtudo umas informações, que me deixaram presumir a possi-
bilidade de se poderem alli encontrar seguros vestígios de antiga
habitação.
Descobriu-se haver no interior da caverna um espesso depo-
sito de guano de grande utilidade para as terras cultivadas, pro-
veniente da residência immemorial que alli hão tido os morcegos;
e tendo sido extrahida grande quantidade d'aquella fertilisante
80
substancia, disseram alguns informadores que por vezes se acha-
vam pedaços de louça de barro muito grosseira, que bem mos-
trava ter para alli sido levada por pessoas antigas, que se tives-
sem refugiado naquelle logar cm tempos de guerra ou por outros
motivos, e que além d'isto havia noticia de já anteriormente se
terem achado na caverna da Solestreira algumas cousas de
valor.
Corre tradição local de que esta caverna tem communicação
com a do Poço dos Mouros na serra da Pena; o que não é verosí-
mil, porque tendo a faxa triassica, ao norte de Salir, apenas 1 kilo-
metro de largura apparente, logo um tanto a oeste, estende para
o sul uma ponta com mais de 4 kilometros, internando-se no ju-
rássico superior, cortando e dividindo em duas secções dislinctas
a grande massa jurássica, a qual por esta causa parece não poder
deixar communicaveis as duas cavernas. Além da Solestreira,
diz Carlos Bonnet haver nas montanhas entre Salir e Querença,
um grande numero de cavidades naturaes, pequenas cavernas,
fracturas e fendas mais ou menos largas.
Tudo isso devera ser cuidadosamente explorado em devida
regra. A caverna dista do monumento do serro das Pedras
para sueste uns 3 a 4 kilometros, e tem a igual distancia na
orientação de sudoeste a celebre mina cuprifera da Vendinha do
Esteval, cujos trabalhos antigos relatarei em seu competente logar;
vae por isso indicada na carta prehistorica, advertindo porém
aqui, desde já, que nas circumvizinhanças de Querença e da mina
aífirmam os camponezes locaes terem sido achadas muitas pedras
de raio e no interior, como nos terrenos adjacentes á mina, muitas
cunhas de bronze com corte de machado.
Todas estas circumsíancias nas vizinhanças de uma região
abundante de cavernas e grutas naturaes, recommendam a um
detido exame esses recônditos logares, que em tempos assaz re-
motos, bem poderiam ter abrigado os homens que tão perlo se dei-
xaram representados por seus instrumentos de pedra e de bronze.
Conírontando-se pois estas conjecturas com as que acompanham
as noticias respectivas á mina da Vendinha do Esteval, melhor
81
poderão compréhender-se c admittir-se as ponderações que me
occorreram.
Addiciono agora a este artigo, que escrevi em 1883, uma
noticia, de todo o ponto importante, que vem inteiramente confir-
mar as minhas precedentes presumpções com um facto assaz po-
sitivo, que prova ter, com effeito, sido utilisada a caverna da So-
lestreira em tempos prehistoricos.
Encontrei-me em Faro no anno de 1884 com uns distinctos
naturalistas inglezes e allemães, sendo um d'elles o dr. Gadow,
professor da universidade de Cambridge, a quem communiquei
varias noticias respectivas á paleoethnologia do Algarve, e, no-
tando que se interessava pelo conhecimento das cavernas, affir-
mei-lhe a convicção que tinha, havia muito tempo, de que ellas
deviam revelar os mais antigos critérios das primeiras raças que
viveram na região algarviense, e a propósito citei o facto de terem
apparecido na caverna da Solestreira alguns fragmentos de louça
antiga sob as espessas camadas de guano alli deixadas pelos
morcegos.
Ao que parece, o sr. Gadow ligou alguma importância a esta
informação, e annunciou-me logo que no anno seguinte voltaria
ao Algarve para visitar as cavernas, e não faltou, porque em
1885, estando eu ausente, constou-me ter sido procurado por
aquelle naturalista, que, não me encontrando, foi fazer um re-
conhecimento na Solestreira, onde achou um esqueleto humano,
contas da chamada calaite e outros objectos, cujo descobrimento
communicou ao eximio naturalista o sr. Alfredo Bensaude, a
quem sou devedor d'estes obsequiosos esclarecimentos. Escre-
vendo-lhe, porém, o sr. Bensaude e eu posteriormente, pedindo
informações mais desenvolvidas, o sr Gadow não continuou a
tratar deste assumpto, reservando-o mui provavelmente para al-
guma memoria que se proponha escrever.
Está portanto provado, que a caverna da Solestreira foi utili-
sada para deposito mortuário, mui provavelmente no período neo-
lithico, ou na epocha da transição d'esse período para a idade
do bronze, em que também apparecem no Algarve as celebres
6
82
contas de ealaite nos depósitos mortuários, como em seu logar
mostrarei.
Caverna da Esparguina da Lapa. — A villa de Loulé pode
dizer-se que assenta os seus alicerces no centro da zona mais
ampla e desaffrontada do jurássico superior. São numerosas as
cavernas nesta região, comprebendidas entre a faxa do trias, ao
norte e as formações ao sul do cretáceo inferior e do terciário la-
custre superior, attingindo alli a zona jurássica a largura de uns
12 kilometros, contada do norte para o sul, passando pelo centro
da villa. A maioria d'essas cavernas não tem nome conhecido;
algumas tomam porém o dos sitios em que existem; tal ó esta
da Esparguina da Lapa, ao norte do valle de Judeu, situada ao
poente e a 8 kilometros de distancia da torre de S. Clemente, e
taes são as duas seguintes:
Caverna do Barrocaliniio, a oeste e distante 5 kilometros
da villa.
Caverna de Matos da Nora, a sueste e a 6 kilometros da
torre de S. Clemente, e mais quatro cavernas na mesma orien-
tação comprehendidas numa área de 2 kilometros.
Taes são as informações que a este respeito me transmittiu
o sr. António de Paulo Serpa, empregado na direcção das obras
publicas do clistricto de Faro, auctor de muitas plantas que foram
levantadas sob minha direcção durante o reconhecimento geral
das antiguidades d'esta província, de que me occupei em 1877
e 1878, e por isso já mui habituado ao reconhecimento de anti-
guidades.
São assaz conhecidas na região a que pertence a villa de
Loulé as pedras de raio, por terem sido achadas por campone-
zes. Nenhuma, porém, obtive, porque, quem as guarda, ali-
menta certamente o velho e geral preconceito de que não cairá
raio na casa em que existam; e por este mesmo motivo não con-
segui obter em Portimão, Silves, Alvor e noutras terras bastantes
83
e mui perfeitas, que só me foi licito observar. Na aldeia de Que-
rença obtive apenas um machado de pedra. 0 vasto concelho de
Loulé abunda pois em critérios neolithicos.
Já se vê, pois, que na ultima idade da pedra foi aqueíle ter-
ritório frequcnlado por homens que faziam uso de instrumentos
de pedra polida e que n'esta extrema parte do occidente, como
n'oulras regiões da Europa, construíram os tiimuli, as galerias
cobertas, as antas ou dolmens para depositarem os seus defun-
tos, assim como para os mesmos fins e para sua vivenda apro-
veitaram as cavernas naturaes, chegando ainda numa epocha
menos remota a escavarem grutas artificiaes onde a nalureza do
solo não tinha formado cavernas, e portanto, havendo tantas ca-
vernas na região jurássica de Loulé, não irá fora de propósito
esperar-se que ellas possam corresponder com a mesma afirma-
ção, se um dia chegarem a merecer este conceito e houver go-
vernos e corporações scientificas que não julguem mal empregado
o tempo e o dispêndio que exijam as explorações reclamadas por
esses recônditos abrigos da infância humana. Haverá então quem
se admire de que, tendo já sido estudadas na Europa numerosís-
simas cavernas, na data em que este livro está sendo escripto,
se me haja recusado o estudo das do Algarve. O estado de civi-
lisação dos povos avalia-se por estes e outros factos. A Dina-
marca, a Suécia, a Hungria e outras pequenas nações pouca
nomeada teriam hoje no mundo civilisado, se não se tivessem
apresentado com os serviços que hão prestado ao progresso da
anthropologia e da archeologia prehistorica.
Ooncelho cie Olhão
Caverna do Aijysmo. — O serro de S. Miguel com 403 me-
tros de altitude e o serro da Cabeça, também chamado de Mon-
carapacho, com 246 metros sobre o nivel do mar, são pontos
culminantes do lado oriental d'esta província, que flanqueiam o
valle Formoso por onde corre a extensa ribeira que vae desaguar
sobre o esteiro e foz do porto da Fuzeta.
84
Está em plena região jurássica, tendo ao norte a faxa trias-
sica e a sueste o terciário marino, que segue á beira do rio de
Olhão para Tavira até quasi o flanco direito do Gilão. O serro
da Cabeça mostra ter soffrido sensíveis alterações, apresentando
a curtas distancias grandes e profundas fracturas, amontoamentos
de grossos penedos, depressões e elevações, taes como para oeste
uns pequenos outeiros de forma mammillar, e terá approximada-
mente uns 6 kilometros de extensão, a partir de este, junto ao
monte do Thesouro e terminando a oeste na aldeia do Jordana.
No começo do serro, do lado do mar, está uma cavidade, um
tanto cercada de pedras, que serve de entrada a uma grande ca-
verna denominada o Abysmo, onde cheguei a entrar, notando
haver diversas camarás e ramificações, mais ou menos difficil-
mente transitáveis, mas que não percorri por falta de luzes apro-
priadas. Diz-se terem sido d'alli extrahidos muitos objectos dei-
xados pelos mouros.
Cavernas da Ladroeira Grande e da Ladroeira Pequena. —
No alto do mesmo serro da Cabeça, e quasi defrontando-se, estão
duas outras cavernas, denominando- se uma Ladroeira Grande e
a outra Ladroeira Pequena. N'esta, a entrada que hoje se lhe
conhece é uma fenda estreitamente apertada, que impede a pas-
sagem. Diz-se que teve outra, agora obstruída e em logar tam-
bém desconhecido. Um tiro de rewolver produz no seu interior
uma detonação forte e prolongada. Nada se sabe ao certo d'esta
caverna.
A outra permitte a entrada para uma cavidade espaçosa e
de abobada baixa. Dizem que tinha passagens abertas para outras
grandes cavidades, mas que ha muitos annos estão obstruídas.
Por este motivo, se é certo, também nada se sabe com verdade.1
Só uma exploração bem dirigida poderia esclarecer um tão im-
portante assumpto. A região foi frequentada no período neoli-
thico, porque lá ficaram as provas dispersas por todo aquelle
accidentado solo. Muitos machados de pedra polida têem sido
achados nos montes e terrenos adjacentes á rica aldeia de Mon-
85
carapacho. Alli mesmo me vendeu um oleiro o que vac figurado
na estampa xx (concelho de Olhão), sob o n.° 3. Qual seria pois
a habitação dos homens que durante a ultima idade da pedra
deixaram tão significativos signacs da sua existência nos terrenos
de Moncarapacho? O futuro responderá, se alguma vez se tomar
a serio um estudo que já podéra estar feito, offerecendo á scicncia
elementos importantíssimos, e collocando o paiz ao par dos que
caminham nas sendas do progresso.
São estas as cavernas que vão unicamente indicadas na carta
prchistorica: faltam talvez cinco vezes outras tantas. E fallo
nellas e quiz muito de propósito apontal-as, embora não me
fosse licito estudal-as, para que futuros escriptores, quando em
Portugal se começar a comprehender a importância d'este estudo,
não hajam de fulminar a minha memoria com as suas censuras,
lançando á conta da minha ignorância o silencio a que me cum-
pria votar este assumpto.
III
período neolithigo
SUMMARIO
Monumentos megalitliicos da architectura paleoethnologica. — Menhirs. — Alinhamen-
tos.— Cromlecks.— Antas ou dolmens, synonymos de aras ou altares.— Discute-se
se o dolmen apparente esteve sempre descoberto ou primitivamente sob tumu-
lus. — Opiniões e presumpções ácêrea d'este assumpto. — Cistos, ou pequenos dol-
mens. — Fundamentos que permittem suppor-se ter havido no Algarve cinco loga-
res em que existiram antas ou dolmens apparentes. — Descrevem-se as condições
geograpliicas d'esses logares e indicam-se na carta prehistorica, 2.a columna, sob
a epigraplie: «Anlas ou dolmens que presumptivamente existiram sobre o solo».
Na classe dos monumentos megalithicos i estão grupadas as
mais typicas construcções da architectura prehistorica, formadas
de grandes pedras toscas, comprehendendo os menhirs, alinha-
mentos, cromlecks e dolmens.
O menhir é uma unica pedra tosca erguida a pino e cravada
no solo, de forma variável e de diversas dimensões. D'estas pe-
dras monumentaes consta existirem muitas in situ em todo o
reino, mas ainda ninguém tratou de invenlarial-as e descre-
vel-as.2 São vulgares e numerosas em vários paizes da Europa.
1 Diz-se ser este termo derivado do prefixo mega, que significa grande, e de lillios,
pedra.
2 Depois de escripto este capitulo, veiu á minha mão um trabalho impresso em 1881
na typographia Lallemant, intitulado : Relatório e mappas acerca dos edifícios que devem
ser classificados monumentos nacionaes, apresentados ao governo pela real associação
dos archileclos civis e archeologos porluguezes, em conformidade da portaria do minis-
tério das obras publicas de 24 de outubro de 1880.
Este relatório, servindo de resposta á portaria, dividiu os monumentos nacionaes (?)
88
Em França, onde tudo se estuda, estão contados mil seiscentos
trinta c oito menhirs, distribuídos por oitenta departamentos,
sendo o maior d'entre todos o de Locmariaquer, no Morbihan,
actualmente prostrado e feito em três pedaços, o que nâo impede
de se conhecer que, inteiro, media 21 metros de comprimento e
4 de espessura, sendo o seu enorme peso avaliado em 250:000
kilogrammas.
Estas pedras isoladas são attribuidas ao período neolithico e
ás primeiras idades dos metaes, sendo possível que algumas haja
de tempos menos remotos. A sua significação tem sempre pare-
cido problemática. Não se julga que tenham sido marcos territo-
riaes, por apparecerem a curtas distancias em regiões limitadas,
ou isoladamente. A crença popular em varias localidades lhes
attribue significações religiosas, a ponto de que algumas têem sido
decoradas com uma cruz ou uma imagem. Não são padrões fu-
nerários, porque as excavações feitas no seu recinto não têem
mostrado vestígios mortuários, comquanto perto de certos tiimuli
e mesmo de dolmens se achem isoladas ou formando circuito.
O sr. de Mortillet julga os menhirs simplesmente commemorati-
vos. No meu conceito, porém, é essencialmente mysteriosa a sua
significação e muito arriscada a classificação, que se pretenda
fazer relativamente aos tempos a que pertencem os que não se
em seis classes, e na ultima registrou os prehistoricos. Em todo o reino ficaram pois
indicados trinta e três logares com dolmens ou antas, três com menhirs e dois com
mamunhas. Nada mais!
Estão portanto ofíicialmente inventariados três menhirs e todos no concelho de
Villa Velha do Rodam, um em Fantel, outro em Monte Fidalgo e o terceiro na ribeira
de Alcafalla.
Segundo parece, o ministério das obras publicas quiz, porém, obra mais fina e
apurada, e como tinha no orçamento de 1881-1882 á sua disposição uma verba de réis
230:000^000 para gastar com edifícios e monumentos públicos, etc, consta ter expedido
outra portaria com data de 29 de dezembro de 1881, encarregando o presidente da men-
cionada associação de classificar os monumentos nacionaes, sendo para este fim auxi-
liado por um pessoal também então nomeado, mas que não se pode com certeza indi-
car, por não ter a dita portaria sido publicada no Diário do Governo.
Está pois este importante assumpto de todo o ponto inaccessivel aos que precisam
saber quaes são os monumentos classificados (?) desde dezembro de 1881 até 1886, e sobre
que elementos teclmicos se baseia a classificação. Estas cousas não devem constituir se-
gredo de secretaria de estado; pertencem ao dominio publico, porque estão custando
avultadas verbas, c porque devem ministrar esclarecimentos aos que trabalham.
89
acham junto de oulros monumentos, que possam fornecer crité-
rios de epocha. Em seu logar descreverei os menhirs e pyramides
das circunvizinhanças de Silves e da Cumeada de S. Barlholo-
mcu de Messines, cujo lavor ornamental parece excluil-os do pe-
ríodo neolilhico.
Os alinhamentos são construcções de megalithos ou menhirs,
de dimensões e formas diversas, enfileirados e distanciados mais
ou menos entre si, com uma extremidade cravada na terra ou
apenas collocados sobre o solo. Simples ou singelo é o que consta
de uma única fileira de menhirs, ou de grandes penedos, e compos-
tos os que são formados de duas ou mais fileiras parallelas, colloca-
das a distancias de largura variável. O grande alinhamento com-
posto de Carnac, no departamento de Morbihan, em França, ter-
mina excepcionalmente por um hemicyclo que liga as suas extre-
midades com a da primeira e ultima fileira, e correm em três
secções separadas por espaços em aberto, numa extensão de 3
kilometros, as suas onze fileiras com mil cento e vinte menhirs.
Ha. porém, outros alinhamentos de curta extensão em França,
distribuídos por quinze departamentos, em Inglaterra e noutros
paizes; uns que se julga pertencerem á ultima idade da pedra e
outros á idade do bronze.
Ainda não se pode hoje affirmar qual fora o destino de taes
construcções. Julgou-se a principio que seriam cemitérios, em
que cada pedra indicasse um ou mais enterramentos; mas diver-
sas exeavações junto dos menhirs confirmaram o contrario, não
mostrando vestígios mortuários. A idéa que mais geralmente se
attribuia na Europa a esses monumentos, propendia a julgal-os
campos de reunião publica, em que se tratavam os assumptos
mais graves e se procedia á eleição dos chefes e grandes man-
datários da nação, ou em que se praticavam solemnidades reli-
giosas. O sr. de Mortillet considera-os como podendo ter sido
campos commemorativos, em que cada pedra representasse uma
acção notável, um individuo, uma data. É porém possível, alar-
gando ainda mais a liberdade da conjectura, que fossem, com
preferencia ás outras hypothescs, campos de combate, e que cada
90
pedra servisse de abrigo a um combatente contra o ataque dos
inimigos, por isso que na Bretanha e n'outras partes se toem
achado em substituição de menhirs extensas barreiras á feição de
entrincheiramento. No Algarve não achei nem me consta que
haja algum d'estes monumentos.
Os cromlecks são construcções monumentaes prehistoricas,
em que os menhirs, geralmente de menores dimensões, ou pedras
assentes no solo, se acham em figura circular, oval ou rectangu-
lar, e é esta a feição do cromleck simples. Ha, porém, muitas
variedades n'estas construcções, até o ponto de serem assaz com-
plicadas. Ha cromkcks compostos, de duas e mais ordens paral-
lelas de menhirs, com uma d'estas pedras servindo de centro e
outros a curta distancia entre si, circumdados por um cromleck
simples, como era ainda em 1713 o d'Avebury, em Wiltshire.
Finalmente, mais algumas variantes na forma são ainda indicadas
em Inglaterra, na Scandinavia e n'outros paizes.
A significação d'estes monumentos envolve tantas duvidas
e incertezas, como a dos menhirs isolados e a dos alinha-
mentos.
Varias circumstancias, porém,- tecm deixado persuadir que
podessem ter sido logares fortificados e d.e abrigo contra invasões
inimigas; pois tanío o grande cromleck de Avebury como o de
Stone-Henge, perto de Salisbury, em Inglaterra, estão construí-
dos em planaltos, que dominavam os campos adjacentes, e cir-
cumdados de largo fosso, defendido por elevadas barreiras nos
seus bordos.
Os historiadores inglezes inclinam-se a considerar estes mo-
numentos como logares destinados a administração da justiça,
aos negócios importantes da nação, e talvez mesmo ao culto re-
ligioso, referindo Martin e Wormius, que ainda na segunda me-
tade do século xiv, os nobres do norte elegiam os seus principes
reunindo-se em círculos de pedra. Perto de Upsal, diz-se existir
ainda o circuito de pedras em que Érico foi proclamado rei da
Suécia. King, na sua obra Monumenta antiqua, affirma que os
mesmos usos foram seguidos durante muito tempo na Irlanda e
91
na Escócia. Seja porém qual for a força (Testas hypolhcses, nada
com certeza se pode afíirmar.
No Algarve, já muito depois das explorações que dirigi por
incumbência do governo, recebi noticia de haver no cabeço de
uns serros da freguezia de Vaqueiros algumas pedras alias, cra-
vadas no solo e verticalmente erguidas. Não tenho informações
de confiança a este respeito e por isso, embora as que recebi me
possam inspirar a presumpção de haver alli um ou mais cromlecks,
não ouso afíirmar cousa alguma. Devo porém desde já indicar na
freguezia serrana de Vaqueiros o elemento neolithico, em pre-
sença de uma collecção, que em seu logar descreverei, de sílices
lascados e de interessantes instrumentos de pedra polida alli
achados em exeavações ruraes, pertencentes ao sr. António de
Paulo Serpa, empregado na direcção das obras publicas do dis-
tricto de Faro.
Antas ou dolmens. — Não está provado que a região dolme-
nica descesse até ás extremas raias do sul de Portugal. Percorri
duas vezes esta província sem encontrar um único dolmen desco-
berto, comquanto possa presumir que devem ler existido pelo
menos nos quatro pontos que vão indicados na carta prehistorica
do Algarve.
O dolmen, assim chamado pelos modernos archeologos inglc-
zes, porque dizem derivar-se dos vocábulos bretões dol, que si-
gnifica mesa e men, pedra, denomina-se em Portugal anta, ara,
ou altar. Em Allemanha chama-se hiinengraben, em razão das
tradições populares apontarem estas construcções como túmulos
de gigantes. Em França, onde se acham distribuídos três mil
quatrocentos e dez dolmens por setenta e oito departamentos, são
conhecidos pelas denominações de allèes convertes, oustals, grot-
tes} maison des fées, maison des loups e por outras propriamente
locaes. A idéa, porém, de que eram altares em que se praticavam
sacrifícios humanos, chegou a incutir-se no conceito de muitos
sábios, tanto mais desde que os antigos archeologos britannicos
os consideraram como altares druidicos, ou aliares em que os
92
druidas, sacerdotes dos celtas (dizem elles), celebravam cruentos
sacrifícios próprios de uma ceita sanguinária.
Tal era a idéa que em Portugal também havia relativamente
a esses altares ou aras antigas, mais geralmente conhecidas pelo
nome de antas, idéa que ainda em 1863 compartilhava o erudito
abbade Audierne no seu livro intitulado De V origine et de 1'enfance
des arts en Pêrigord, acceitando a tradição de que sobre os men-
cionados altares celebravam os povos antigos sacrifícios humanos
para assim applacarem os castigos do céu. Está, porém, compro-
vado serem os dolmens muito anteriores aos chamados celtas e
assaz numerosos em regiões que elles nunca invadiram.
A idéa de altar e de mesa, que a tradição ligou em diversos
paizes a estes monumentos da architectura prehistorica, origina-
riamente neolithica, ou da ultima idade da pedra, parece antes
derivar-se da sua própria configuração, do que de noticias de
sacrifícios n'elles praticados, que a antiguidade houvesse trans-
mittido. Com effeito, alguns dolmens ha que a simples vista
podem suscitar essa ou uma outra idéa similhante. Em Portugal,
encontram-se não poucos com três e quatro esteios ou pilares
cravados no solo, com ligeira inclinação para o eixo vertical, que
são cobertos por uma grande lage á feição de mesa, comquanto
outras muitas formas e variantes se notem ainda mesmo entre
os de uma determinada região.
Discute-se ainda hoje, se os numerosos milhares de dolmens
que isoladamente, ou formando grupos, existem espalhados nos
continentes asiático, africano e europeu, foram sempre descober-
tos sobre o solo ou primitivamente envoltos n'um montículo arti-
ficial de terra. A ultima opinião de grande força, que a este res-
peito appareceu, foi a do sr. Gabriel de Mortillet, no seu pre-
cioso livro intitulado Le préhistorique, publicado em 1883. O sr.
de Morlillet não admitte originariamente dolmens descobertos.
Eis- aqui as suas convicções: «Os dolmens não estão intactos
senão quando se acham pela primeira vez oceultos na terra.
Logo que são descobertos, alteram-se rapidamente. Sem difficul-
dade se podem perceber os progressos da sua mina e reconhecer
93
que os suppostos altares não são mais do que as mesas que se
firmam sobre os pilares desnudados. . . pag. 589 ».
N'outra pagina do seu livro (596), reforça este sábio o mesmo
conceito, dizendo: « Todos os dolmens estavam primitivamente sob
a terra. » Nos arredores de Paris eram enterrados no solo, prin-
cipalmente nas rampas das collinas. N'outras partes eram cober-
tos de tumulas, que diz serem amontoamentos de terra e pedra
formando cabeços ou montículos. Se presentemente vemos dol-
mens descobertos, é porque se acham mais ou menos em ruinas.
Habitualmente observando-se com attenção, se reconhecem restos
ou vestígios do antigo tumulus » .
Outras opiniões, também fundadas em factos de observação,
e entre ellas a do barão de Bonstetten, seguem um rumo inteira-
mente opposto, querendo provar que todos os dolmens descobertos
assim estiveram sempre desde a sua construcção.
A meu ver, julgo estas contrarias proposições demasiado po-
sitivas c sem sufficiente comprovação.
Concordando com a opinião geral, perfeitamente demonstrada,
de que os dolmens sempre foram mansões mortuárias, mas tendo
em vista as condições mui diversas em que n'elles se acham
sepultadas sob ou sobre o solo as relíquias humanas, acompa-
nhadas de instrumentos de pedra e de outros artefactos coetâ-
neos, e primeiro que tudo as condições da construcção de taes
monumentos, parece-me poder admittir a existência dos dois ca-
sos, presumindo que muitos dolmens, que ha séculos estão desco-
bertos, estiveram primitivamente oceultos e protegidos por mon-
tículos de terra e pedra, assim como outros teriam ficado inten-
cionalmente descobertos.
Ha dolmens, cujos pilares são dispostos com tal ajustamento
entre si, que fecham completamente o seu circuito com o auxilio
de um megalitho servindo de porta, e que por isso, tendo a co-
bertura bem adaptada ás extremidades dos pilares, não carece-
riam de ser envoltos por montículos de terra e pedra para asse-
gurarem toda a possível resistência a qualquer acção de invasão
no seu antro. Ora, quando se possa verificar que cm dolmens
94
assim defendidos pela robustez e disposição dos seus esteios e
mesas, os enterramentes foram feitos por excavaçâo no solo, e
este ainda coberto de lageado, pode entender-se que todas as
precisas precauções de segurança contra o ataque do homem e
das feras, tinham preenchido os constructores para não se verem
obrigados a esconder n'um montículo artificial o monumento de-
fensor das suas tão recatadas relíquias; e portanto não repugna
admittir-se que os dolmens, n'estas condições, podem ter ficado
descobertos e servindo como padrões commemorativos, consagra-
dos á memoria e abrigo dos que n'elles foram sepultados. Logo,
pois, que o sr. de Mortillet (Le préhistorique, pag. 586) consi-
dera os menhirs isolados e até aquelles que entram na composi-
ção dos alinhamentos (pag. 587) como commemorativos, sem
que junto delles se tivesse alguma vez achado uma qualquer
prova archeologica, com melhor presumpção se me afigura po-
derem ser assim interpretados os dolmens que não careciam de
ficar occultos e que provavelmente foram levantados em honra
dos mortos.
Ainda quando a camará ou crypta do dolmen que reúne as
condições de segurança acima enunciadas não manifesta enter-
ramentos por excavaçâo no solo, mas o seu âmbito parcial ou
totalmente cheio de ossos, quer provenham de enterramentos
alli mesmo feitos dentro de camadas de terra transportada,
de que ha muitos exemplos, ou de inhumações de ossos huma-
nos provenientes dos cistos1, reconhecida pelos constructo-
1 Císlos são sepulturas rectangulares de comprimento inferior ao de um cadáver,
mesmo de individuo de baixa estatura. São formadas por duas fileiras de lages toscas
parallelas, cujas extremidades sobresáem a dois travessões, que as separam no sentido
perpendicular, que são paralielos e servem de cabeceiras. Em seus competentes logares
mostrarei que estes cistos, originariamente pertencentes á ultima idade da pedra, pas-
saram a ser usados durante a idade do bronze e ainda na primeira idade do ferro, em
todo o território do Algarve.
A respeito dos cistos neoliihicos, exprime-se o sr. G. de Mortillet do modo seguinte:
«Nem todas as sepulturas da epocha robcnhausienne (período neolithico, ou ultima idade
da pedra) se fizeram no interior dos dolmens. Os enterramentos faziam-se também em
cistos de pedra, pequenos dolmens, ou caixas formadas geralmente de quatro lages, co-
bertas por outra. Estes cistos, ou caixas, eram demasiado apertados para poderem re-
ceber um cadáver. 0 corpo era dobrado pela articulação dos joelhos e sobre estes rc-
95
res a garantia da inviolabilidade, não se ha de concluir que o
dolmen esteve necessariamente occulto em montículo artificial, se
não houver no seu terreno circumdante algum bem determinado
vestígio de monticulação. N'esta hypothese, pois, pode ter sido
sempre livre e apparcnte.
Todos aquelles dolmens, porém, cujos esteios estão separa-
dos por intervallos apenas fechados por muros de pedra sêcca?
os que não apresentam na sua conslrucção as precisas condições
de segurança, e os que ainda permittem denunciar a sua situação
num plano artificialmente elevado no seu contorno, boas pre-
sumpções suscitarão ao observador de que primitivamente teriam
sido protegidos por um montículo de terra e pedra.
Admitto, portanto, não como deducção de principios, porque
ainda não os vi precisamente estabelecidos, mas como presum-
pção derivada da critica das condições de observação directa, a
possivel existência primordial de dolmens descobertos ou apparen-
tes, de dolmens cobertos, ou occidtos em montículos artificiaes, e
de dolmens que, tendo sido primitivamente monticulados, passa-
ram a ficar descobertos por effeito de diversas acções meteoroló-
gicas, ou por outras causas ignoradas.
Outra controvérsia, grandememente debatida, tem havido em
relação ao trajecto, que se pretendeu deduzir da distribuição
geographica dos dolmens, que um supposto povo emigrante de-
screveu na passagem, a partir do seu paiz natal. Este assumpto
é magistralmente tratado pelo sr. de Mortillet, que com atilada
critica e bem achados fundamentos repelle a vã idéa de que um
só povo em marcha fosse o construetor de tantos milhares de
monumentos de que ha noticia na Ásia, na Europa e na Africa,
quando osteologica e anthropologicamente, primeiro que tudo,
estão verificados no interior d'esses monumentos approximada-
pousava a cabeça (pag. 597)». O sr. de Mortillet viu muitos cTestes cistos em meio da
região dos grandes dolmens de Plouarzel, no Morbihan. 0 sr. Prunières achou um ce-
mitério d'estes cistos no departamento de Lozère, e o sr. Morel-Fatio explorou um no
cantão de Vaud, naSuissa. No Algarve são frequentes. Citarei os das minhas explorações.
Nunca os vi descriptos em Portugal.
96
mente do mesmo estylo architectonico, mas de construcçoes mui
diversas, numerosos indivíduos de differentes raças. A theoria
relativa ao imaginário povo dos dolmens cessou pois de existir,
devendo entender-s?, que vários povos, e povos sedentários, fo-
ram os construetores dos que se acham esparsos ou reunidos por
grupos em quasi todo o mundo.
Fosse qual fosse o trajecto traçado pelos construetores dos
dolmens existentes em Portugal, parece que a linha geral d'essas
colossaes construcçoes não desceu até ao litoral do Algarve.
O Alemtejo é a primeira região dolmenica do sul de Portugal,
onde ainda ha numerosos dolmens apparentes ou descobertos.
No Algarve, com vestígios apparentes não ha ver um único
dolnien, e comtudo, como a principio disse, parece ter havido
alguns. Vou portanto expender os fundamentos d'esta presumpção.
Quatro logares indiquei na carta prehistorica com signaes
correspondentes a antas ou dolmens apparentes, já destruídos: são
o cabo de S. Vicente, a serra de Monchique, a Ponta do Altar
(Portimão) e o sitio das Antas, no concelho de Tavira. Depois de
estar impressa a carta, annunciou-me o meu amigo e distincto
conterrâneo, o sr. Francisco de Mello Corrêa Leotte, haver um
outro sitio denominado Antas, perto de Albufeira.
Cabo de S. Vigente. — Artemidoro, escriptor grego, contem-
porâneo de Strabão e de César, por ter visitado a orla marítima
sul-occidental da Europa, negou a existência de um templo de-
dicado a Hercules, de que Ephoro dava noticia no Promontório
Sagrado (Cabo de S. Vicente). Como testemunha ocular, referiu
não haver templo algum n'aquella extremidade da terra, mas
apenas uns grupos esparsos de três ou quatro pedras, de que
falia Strabão no livro m da sua Geographia, dizendo (edição de
Amsterdam, 1707): Lapides mídtis in locis ternos aat quatemos
impositos, etc.
Esta passagem de Strabão foi assim traduzida em 1867 por
Amédée Tardieu: «Les seuls monuments quil y vit (Artemidoro)
étaitent des grupes épars de trois ou quatre pierres, que les vi-
97
siteures, pour obéir à une coulume locale, tournent dans im sens,
puis dans 1'autre, après avoir fait au-dessus certames libations;
quant à des sacrifices en règle, il n'est pas permis d'en faire en
ce lieu, non plus quil nest permis de le visiler la nuit, les dieux,
à ce qu'on croit, s'y donnant rcndez-vous.» O traductor relativa-
mente ao uso local acima referido, declara ter assim interpretado
o texto grego com M. Miiller, porque a symetria da phrase torna
d'este modo a leitura mais provável que a dos manuscriptos, e
accrescenta: «Reste à expliquer maintenant le sens d'un parcil
usage» (pag. 223).
Tudo isto envolve alguma obscuridade, não se sabendo, se o
auctor quiz dizer, que os visitantes, depois de feitas as libações,
voltavam as pedras duas vezes, ora num ora n'outro sentido, ou
se, tendo feito essas libações, eram elles que passavam duas vezes
rodeando as pedras em sentidos oppostos, como parece mais
provável; porque se aquelles grupos de pedras constituíam monu-
mentos, capazes de attrahirem visitantes, a quem se impunham as
leis usadas no Promontório Sagrado, não se pôde racionalmente
suppor que fossem de tão minguadas dimensões, que qualquer
visitante as podesse voltar duas vezes, deixando cada grupo re-
construído, nem que sobre ellas, sendo só três ou quatro em
cada grupo, e de pequeno volume, praticassem libações com todo
o ceremonial obrigatório.
Por isso, pois, estas ou outras considerações suscitaram ao
barão de Bonstetten a idéa de considerar como dolmens os gru-
pos de pedras que Artemidoro viu no Promontório Sagrado, e de
que Strabão deixou noticia, citando este seu contemporâneo e
concidadão.
Antes, porém, do erudito barão de Bonstetten, no seu Essai
sur les dolmens, publicado em 1865, ter interpretado a narrativa
de Strabão como significando a existência de dolmens no Pro-
montório Sagrado, ainda no primeiro século christão, já fr. Ber-
nardo de Brito i a tinha aproveitado, infelizmente para querer
Monarchia Lusitana, liv. n, pai?. 75.
7
98
provar uma das engenhosas invenções com que encheu os pri-
meiros trinta capítulos da sua em grande parte idealisada Mo-
narchia Lusitana. A este respeito refere pois o abalizado mestre
da lingua portugueza:
«Mostravão-lhe também (os habitadores do cabo de S. Vi-
cente a Hanon) grandes montes de pedra, juntos alli de tempo
antiquíssimo (de quem falia Strabo) reprovando a opinião de
Ephoro, que negando haver alli templo (dedicado a Hercules),
contava só d'estes cúmulos de pedra: & dizia d'elles, que os ajun-
tarão os Deoses por sinal & limite de se concluyr alli o mundo».
É possível que Ephoro, que viveu uns três e meio séculos
antes de Christo, fallando em templos que havia no Promontório
Sagrado, quizesse referir-se aos monumentos de pedra que Ar-
temidoro observou, porque já então as antas ou dolmens se con-
siderassem como aras ou altares, e soubesse ou lhe constasse,
que algum d'elles tivesse sido dedicado ao culto de Hercules
pelos próprios naturaes do logar ; pois o que Strabão refutara a
Ephoro, pelo testemunho de Artemidoro, fora a existência de
templo propriamente dito, que alli houvesse sido dedicado a al-
guma divindade.
Foram muitas as lendas que aquelles monumentos crearam
na imaginação dos escriptores fabulistas, propondo alguns que
eram o signal cia sepultura de Thubal, neto de Noé, por todos
apontado como primeiro povoador post-diluviano do torrão pe-
ninsular, a que acudiu também com grande symptoma de piedosa
convicção o cisterciense fr. Bernardo de Brito, que a todos quiz
exceder, indicando pelas suas tábuas chronologicas o anno 2009
antes de Christo, como sendo o do fatal passamento de Thubal,
cujas principescas qualidades deixou engrandecidas por entre as
fluencias da sua eloquente e vernácula dicção, occorrendo-lhe
também que poderiam os taes montes de pedra ser d'aquelles a
que chamavam Fieis de Deus \ que os antigos costumavam levan-
tar em logares ermos, em que alguma pessoa tinha sido morta,
Monarchia Lusitana, liv. i, pag. 36 c 3~i
9(J
e a que os transeuntes juntavam sempre algumas pedras em si-
gnal de devoção; mas não se conforma este prcsupposto com a
lição de Strabão, que bem claramente designa só três ou quatro
pedras em cada grupo.
Com todas estas noticias c tradições, embora nenhum vestí-
gio apparente de dolmens exista hoje na região do cabo de S.Vi-
cente, pode comtudo admitlir-sc que alguns d'esses monumentos
ainda alli houvesse ha vinte e dois séculos, quando Ephoro os
designou por templos c que ainda se conservassem, ha feitos
1800 annos, quando Artcmidoro observou esses grupos de três
a quatro pedras, que na linguagem de Strabão eram monumen-
tos. Por isso, pois, com as devidas reservas, vae indicado na
carta prehistorica esse derradeiro ponto do Occidenle com o si-
gnal symbolico correspondente ás antas ou dolmens (desíruidos),
que mui presumptivamente existiram sobre o solo.
Prova convincente de que as populações prehistoricas oceu-
param essa região é terem alli apparecido, e em outros logares
próximos, muitos instrumentos de pedra polida, de formas neoli-
thicas. No capitulo competente descreverei um machado de pedra
que alli comprei, pertencente á minha collecção depositada no
museu archeologico do Algarve,
Foya de Monchique. — Não era provável que aos homens, que
na ultima idade da pedra oceuparam todo o território do Al-
garve, escapassem as benignas condições com que uma esplen-
dida natureza parece ter querido soccorrer as necessidades da
vida humana em meio das portentosas montanhas, dos bellos
plan altos, valles fertilissimos e ravinas sulcadas por limpidos
mananciaes de crystallinas aguas, que dão feição de formosíssima
grandeza á famosa serra de Monchique, estando provado, como
em seus logares mostrarei, que a população neolilhica e as das
idades prehistoricas subsequentes se deixaram caracíerisadas
em todo este solo. Não era verosímil que licasse desaproveitado
esse trado de alentada serrania, que a grandes distancias e de
numerosos locares attrahe a vista e a curiosidade natural de to-
100
dos os observadores com o seu alteroso aspecto. Devera pois en-
tender-se, que o homem antigo deixaria alli vestígios da sua
existência, e por isso cumpria procural-os.
Mais de uma vez percorri grande parte da serra, e com effeilo
algumas provas arcbeologicas encontrei dos tempos prehistoricos,
ao passo que já tinha conhecimento de outras alli achadas, que
a meu cargo cabe enumerar e descrever.
Não descobri monumentos megalithicos, nem d'elles me de-
ram noticia os habitantes da villa e das aldeias. Chegando,
porém, a Lisboa, soube na escola polvtechnica, que um explora-
dor da secção mineralógica, chamado Joaquim Duarte, que pouco
antes tinha sido encarregado de obter o desenho de vários dol-
mem do Alemtejo, dera informação de ter achado na Foya um
dolmen apparente destruído, assim como alguns instrumentos de
pedra. Pedi-lhe esclarecimentos a este respeito, e com effeito vie-
ram elles confirmar o que já sabia. O explorador Joaquim Duarte
observou na rampa oriental da Foya, e não mui longe da villa
de Monchique, uns monolithos ainda in situ, que reconheceu se-
rem restos de uma anta destruída, e próximo d'esse logar achou
ao sul da villa, a uns 1500 metros, um machado de schisto am-
phibolico, actualmente existente no museu mineralógico d'aquella
escola. Creio, pois, terem escapado á minha observação os vestí-
gios d'esse monumento; mas devo ao mesmo tempo acreditar,
que não seria fácil illudir-se um explorador tão hábil e costu-
mado a ver e a desenhar muitos outros na região alemtejana.
Em 1878 comprei eu a um lavrador de Monchique dois
machados de pedra polida e alguns característicos da idade do
bronze, por elle achados em trabalhos ruraes. Lá estão todos no
museu do Algarve com os mais objectos da minha collecção.
O dolmen destruído pode pois ter pertencido á ultima idade da
pedra ou á idade do bronze, assim como os instrumentos de pe-
dra e os metallicos. Com estes fundamentos de contemporanei-
dade, indico na carta prehistorica o dolmen destruído, que um
observador consciente me communicou ter encontrado na Foya
de Monchique.
101
E assaz notável que tão poucos vestígios de occupação pre-
historica se tenham até hoje descoberto naquclle apparatoso
acervo de azuladas montanhas, cortadas por innumeraveis ravinas
e valleiros, por onde correm copiosas e límpidas aguas, alimen-
tando um luxuriante e florido jardim, que pode considerar-se
mixto de dois climas distinctos, próprios de uma zona temperada
nas cotas menos elevadas e de uma região subalpina já próximo
dos erguidos coruchéus d'essas lombas alterosas de aspecto gra-
nitoide, que fascinam os olhos do observador com os seus crys-
tallisados espelhos de quartzo, de mika e de feldspatho.
E comtudo mui provável que outras estações prehistoricas se
possam ainda verificar n'esse vistoso paraizo da terra, para me-
lhor exemplificarem a tendência dos antigos povos para os loga-
res mais aprimorados pelas graças e mimos da natureza; mas
também é possivel que a falta de população prehistorica agora
notada possa um dia explicar-se pelo estudo especial da sua pa-
leontologia animal e vegetal.
A natureza mineralógica, a mui complicada distribuição do
relevo orographico e os meios climatéricos d'aquelle solo fertili-
zado pelos agentes meteorológicos e pelas acções chimicas, exer-
cidas sobre os seus componentes elementares, prepararam alli
especiaes aptidões de fecundidade e condições geradoras em su-
bido grau, para crearem e desenvolverem uma flora opulenta e
frondosa, assim como uma fauna correspondente.
Na proximidade das rochas eruptivas não ha que procurar
vestígios orgânicos nas de formação sedimentar preexistentes,
que ellas romperam e atravessaram, porque a acção plutonica as
transformou em rochas metamorphicas e alterou todos os vestí-
gios, que podiam anteriormente conter até onde chegou o alcance
do seu raio e a força da sua intensidade. Apenas em depósitos
sedimentares descobertos, posteriores á epocha geológica em que
se operou a emissão foyaitica, assim como a dos basaltos, diorites
e outras rochas Ígneas, poderão verificar-se as essências orgâ-
nicas relativamente mais antigas d'aquella região. Só assim se
chegaria a reconhecer, se nos tranquillos e solitários abrigos da
102
flora então existente viveram carnivoros, e em quantidade tal,
que repellissem aventureiros invasores, ou reprimissem a sua au-
daciosa diffusão.
Ainda actualmente apparecem naquelles valles e montanhas
o Canis lúpus, h., o Felis pardina, Oken., e o Sus scrofa, L.,
que podem citar-se como sendo os mais ferozes mammiferos da
fauna actual. Vão, porém, diminuindo de numero, ao passo que
o agricultor desenvolve a área das suas devezas, conquistando
ás Eriças, aos Cistus c ao próprio mui bizarro e vistosíssimo
Rhododendrum boeticum a substanciosa terra, em que brilham as
argillas metamorphicas feldspathicas.
Ora, se ao progresso de população e de industria se pode
attribuir o facto do decrescimento na procreação das feras, cujo
apparecimento era muito mais frequente naquellas paragens
antes dos modernos soutos e verdejantes pomares que embelle-
zam e enriquecem aquelle tão privilegiado grupo de alterosas
serras e de ameníssimos valles tomarem o extenso espaço que
hoje occupam, bem pode suppor-se que em grande escala pode-
riam, n'aquelles 20 kilometros de rocha eruptiva, ter sido povoa-
das por innumeros carnivoros as suas brenhas quasi impenetrá-
veis, numa epocha que tão escassos vestígios humanos transmittiu
á posteridade.
Pode, pois, julgar-se, á falta de outras causas conhecidas,
que esta fosse uma das que impediu a população neolithica e as
suas successoras, de se deixarem mais amplamente representa-
das. E portanto mui provável, se um dia alli forem emprehendi-
dos alguns trabalhos geológicos, que exijam cortes dilatados e
profundos, appareçam as provas paleontologicas d'esta, por em-
quanto, prematura supposição.
Ponta do Altar — Este logar, situado entre o cabo de S. Vi-
cente e a ponta do Carvoeiro, deixa presumir, já por seu nome
immemorial, já por vários artefactos alli encontrados, diversas ve-
zes, que n'elle tivesse havido um d'esses edifícios da architectura
prehistorica denominados antas, aras ou altares.
103
A chamada ponta do Altar é propriamente a extremidade
sul-occidental da escarpada rocha que forma o flanco esquerdo
da foz do rio que de Villa Nova de Portimão chega até Silves.
Ao norte d'cssa ponta está o forte de S. João c 1 kilomelro mais
acima a bem situada aldeia de Ferragudo.
É mister repetir, que em Portugal os monumentos chamados
antas também são geralmente conhecidos pelos nomes de aras
ou altares, por se ter durante muito tempo julgado que eram com
effeito os altares em que antigos selvagens de uma seita gentílica
celebravam seus ritos.
É matéria corrente entre os mais abalizados archeologos, que
onde se ache vinculado desde tempos immemoriaes o nome de
certos monumentos, deve entender-se que ahi existiram, embora
não ficassem vestígios. A este respeito diz o sr. de Mortillet, re-
ferindo as diversas denominações locaes por que são conhecidos
os dolmens em vários departamentos da França: «Ces clénomi-
nations, appbquées à des lieux dits, peuvent même servir à dé-
voiler Fexistence d'anciens dolmens sur des points oíi il n'en reste
plus aucune trace», Le Préhistorique, pag. 589.
Presumo, pois, que n'aquella ponta de elevada rocha, propin
qua á foz do rio de Portimão, existiu um altar ou anta, e que
d'csse monumento ficou o nome ao logar.
Toda a formação d'aquelle flanco pertence á serie sedimentar
cainozoica e a rocha ao terciário marino. Parece cortada a pique
a secção batida pelas ondas do oceano. O observador que se ap-
proximar d'aquella raia, notará enormes penedos precipitados no
mar, que bem podem representar os monolithos de uma anta
destruída, ou desaggregações da mesma rocha. *
Não ha somente estes fundamentos conjecturaes para se po-
der julgar que aquelle logar fora com effeito utilisado. ou fre-
quentado numa epocha em que eram usados os instrumentos de
pedra polida. São estes mesmos instrumentos alli achados e
nJoutros muitos pontos mais ou menos próximos, que dão maior
força a este conceito.
Portanto , em vista das circumstancias expendidas, en-
104
tendi poder assignalar na caria prelnstorica a rocha que forma a
ponta do Altar como presumptiva sede de um altar destruído.
Antas de Albufeira. — Não tive conhecimento de haver nas
proximidades de Albufeira, onde em 1878 estabeleci a estação
ceniral das explorações que fiz n'aquelle concelho, sitio algum
com a denominação de Antas, porque não o vi designado na re-
lação manuscripta dos sitios e logares pertencentes ás freguezias
do Algarve, nem me foi nomeado pelos informadores a quem
pedi esclarecimentos nas freguezias d'aquelle concelho, e final-
mente por não estar indicado na Carta chorographica, publicada
por João Baptista da Silva Lopes em 1812. Foi, porém, já muito
depois de impressa a carta prelnstorica, que o meu illustrado
amigo e conterrâneo Francisco de Mello Corrêa Leotte, com quem
me encontrei em Faro, me deu noticia de haver perto d'aquella
villa um sitio com o nome de Antas.
Não ha vestígios materiaes n'aquelle sitio, que possam indi-
car monumentos megalithicos destruídos, comquanto em outros
sitios próximos tenham apparecido instrumentos de pedra, que
mostram ter aquella região sido habitada ou frequentada por
homens que de taes instrumentos faziam uso; resta apenas o
nome local, como significando a tradição de ter havido alli mo-
numentos, que o povo n'outras eras conhecia pela denominação
de Antas. É o que succede em numerosos logares que em Portu-
gal ainda hoje são indicados em diccionarios e cartas geographi-
cas com o nome de Anta ou Antas.
Antas da Luz. — Chegou a eslabelecer-se como theoria, que
os dolmens na sua distribuição acompanhavam geralmente o
curso dos grandes rios. O sr. de Mortillet refutou, porém, a falsi-
dade de tal invenção, mostrando que os departamentos do sul
da França, onde abundam os dolmens, são os mais desprovidos
de grandes rios, e que é nos plan'allos que mais frequentemente
se encontram, ao passo que na Bretanha maior numero de dol-
mens se acha no litoral marítimo do que no interior do paiz.
105
E muito variável a situação, e bem assim o são as condições
orographicas, em que as antas se acham disseminadas. Já em
1830, quando foi publicado o primeiro volume do Cours d' anti-
quites monumentales do sr. de Gaumont, dizia este antigo mestre
da archeologia monumental (pag. 77):
« Os dolmens encontram-se ordinariamente isolados, ou for-
mando grupos de dois, três e quatro, com mais frequência nas
charnecas e bosques sobre elevações naturaes; mas também os
ha em logares baixos e brejosos e alguns edificados sobre cabe-
ços artificiaes. »
Expenderei agora as condições da ultima localidade do tra-
jecto que segui, partindo do poente para o nascente, em que
presumo ter havido em antigos tempos um ou mais monumentos
do género antas.
Sobre o flanco esquerdo do Gilão, que da barra de Tavira
corre no parallelo do extenso delta que da costa maritima separa
o rio, a uns 9 kilometros da foz, e no rumo de oes-sueste, acha-se,
com a denominação de Antas, um terreno marginal ao rio, que
se alarga até quasi á estrada real n.° 78, pertencente á freguezia
da Senhora da Luz. Todo esse terreno está comprehendido na
dilatada área que occuparam os povos balsenses e é geralmente
denominado quinta das Antas l. O nome de Antas é alli vincu-
lado desde tempos muito antigos.
Na primeira metade do século xm, já o sitio das Antas era
memorado com este nome. Duarte Nunes de Leão2, referindo o
notável caso que precedera a tomada de Tavira aos mouros em
1242, conta que, estando alojada em Cacella a guerreira caval-
1 A quinta das Antas foi deixada cm testamento por meu segundo tio Valentim Thi-
motheo de Mendonça da Veiga Velho, também senhor da Torre de Ares, e familiar de
numero do santo officio de Évora, a seu sobrinho e meu primeiro tio Francisco de Paula
Fernandes Estacio da Veiga, fidalgo da casa real, que nasceu em 6 de fevereiro de 1801
e falleceu a 6 de março de 1815. Coube a sua mãe, e minha avó, D. Maria Barbara Cy-
riaca Cenedicta Angélica de Mendonça da Veiga e Velho, a herança d'essa quinta. Hoje
pertence ao distincto cavalheiro João Luiz de Mendonça e Mello, parente dos meus pa-
rentes, e filho do antigo general Luiz de Mendonça e Mello. No principio d'este século
já era pois aquella propriedade denominada quinta das Antas.
2 Clironica de D. Affonso 111, pag. 286—1774.
106
laria de Santiago, o commendador mor da ordem «disse a uns
cavalleiros, que pois estavam em tréguas com os mouros, fossem
ao logar das Antas, a caçar com suas aves, que era no termo de
Tavila e distava do logar onde estavam 3 léguas».
Do primeiro dos tomos velhos (pag. 207 a 213), e do pri-
meiro dos tomos reformados (pag. 3 a 9) do archivo municipal
de Tavira, copiou fr. Joaquim de Santo Agostinho e publicou com
uma introducção, no tomo i das 'Memorias de litíeratura portu-
gueza, um manuscripto inédito, intitulado « Coroniqua de como
Dom Payo Corrêa, mestre de Santiago de Castella, tomou este
reino do Algarve aos mouros », que se julga escripto anterior-
mente ao reinado de D. Manuel, na qual o seu anonymo auctor
repetidas vezes falia no sitio das Antas: «... então se partio o
commendador com outros symquo cavalleiros e vierão direitos
pello caminho da villa e chegarão as antas huma légua de ta-
vira. . . »; e mais adiante segue: <• e tam ciozo hia por lhes soc-
correr que não ouve sentido de. tomar a villa que bem podéra
tomarse se quisesse e quando chegou as antas, etc». Já se vê
que Tavira ainda não tinha o foro de cidade com que D. Manuel
a ennobreceu.
No tomo n da Europa portugueza conta Manuel de Faria e
Sousa o mesmo successo, dizendo: «En los dias d'ellas (das tré-
guas pedidas pelos serracenos) se fue el Comendador D. Pedro
Perez con cinco Cavalleros a lograr el alivio de la caça por el
monte de la Aldeã de Antas, para donde passo por Tavira Ciudad
de Moros».
O mesmo refere fr. Vicente Salgado nas Memorias ecclesias-
ticas do Algarve (pag. 293); e todos os mais auctores, que fal-
iam da conquista de Tavira, citam o logar das Antas. Não pode
pois pôr-se em duvida, que era este o nome antigo, com os seus
synonymos de aras e altares, que se dava aos monumentos que
geralmente hoje se denominam dohnens e aos logares em que
estavam.
Não devera esperar-se que ainda existissem alguns vestígios
d'essas construcções numa área que se acha corlada em diversos
107
sentidos pelos alicerces da famosa Balsa, que os romanos já
acharam, a que deram o foro de município e que engrandeceram
com famosos edifícios e monumentos.
D'estes testemunhos históricos assaz se deduz a antiguidade
de que data a denominação de Antas no referido logar. É possí-
vel pois, que a superstição romana conservasse alli algum ou
mesmo mais de um d'esses monumentos, ou transmittisse a no-
ticia de terem alli existido ás civilisações que posteriormente do-
minaram esta parte da península, por isso que os documentos
históricos nacionaes confirmam a tradição d'esse nome local.
Muitos instrumentos de pedra têem alli sido encontrados em
excavações fundas, inferiores ao plano em que abundam os cri-
térios romanos. Descreverei alguns no seu respectivo logar. Pode
portanto entender-se, que numa epocha muito anterior á romana,
estacionou naquellas paragens um povo que se servia de instru-
mentos de pedra polida, n'uma epocha certamente anterior á pri-
meira idade do ferro, que é precisamente a epocha dos dolmens
desde o período neolithico.
O logar das Antas da Luz vae pois indicado na carta prehis-
torica com o competente signal de anta destruída.
Do mesmo modo que na Bretanha, os logares que presumpti-
vamente denunciam ter sido sedes de antas ou dolmens acham-se
(com uma única excepção em Monchique) no litoral marítimo.
SUMMARIO
Critérios neolithicos esparsos, deixando presumir a existência de monumentos do mesmo
período. — Intuitos suscitados por esta presumpção, relativamente aos typos ethni-
cos que deviam achar-se nas estações paleoethnologicas até então não descober-
tas. — Notável facto contradictorio com referencia á emigração de uma raça brachy-
cephala, que se diz haver invadido a Europa. — Mostra-se que a raça dolichocephala
mantinha na zona do Algarve o seu quasi absoluto predominio. — Reconhece-se
que os depósitos até- ha pouco considerados quaternários, em que se julgou serem
paleolithicos e dolichocephalos os craneos que continham, são simplesmente per-
tencentes aos tempos geologicamente denominados acluaes e neolithicos. — Sob o
predominio da velha raça surge o sentimento religioso. — 0 homem julga-se su-
perior á matéria e reconhece em si próprio um espirito que o domina; esse espi-
rito crê ser immortal; concebe a morte como temporária ausência do espirito; e
vae mais longe ainda, instaurando o dogma da resurreição. — 0 respeito e a ve-
neração que dedicou aos mortos abonam a existência d'essas crenças. — Indicam-se
os jazigos preparados em honra dos mortos e bem assim as habitações dos vivos. —
As ambições promovem ao mesmo tempo o antagonismo. —Do antagonismo nasce
a guerra. — As armas de caça são ao mesmo tempo a divisa do guerreiro.— A ponta
de frecha, o machado de pedra e a adaga de silex substituem todos os argumen-
tos.—0 mais forte é o vencedor. — Muitos ossos depositados em estações neolithi-
cas attestam terem sido penetrados por esses instrumentos de guerra. — Da neces-
sidade de segurança contra os inimigos veiu mui provavelmente a invenção dos
logares fortificados, e a das palafittas nas regiões em que havia lagos. — Dá-se
noticia da lagoa do Boinho entre Tavira e Villa Real, sem se poder affirmar se foi
ou não habitada. — Mostra-se que as palafittas já existiam antes da idade do
bronze. — Aptidões manifestadas pelo homem neolithico — Origem da agricultura
na Europa. — Cereaes que eram cultivados. — Aproveitamento dos fruetos espontâ-
neos.—Pedras para a moagem dos cereaes; fabricação e cozedura do pão. — Des-
envolvimento dos meios de alimentação protestando contra a calumnia, que attribue
o vicio da anthropophagia áquelles verdadeiros sectários do trabalho e do pro-
gresso.—Géneros de alimentação.— Bebidas alcoólicas.— Industria manufactora,—
A pedra é a principal matéria prima. — 0 homem faz-se mineiro, procurando os
jazigos do siiex. — Officinas de trabalho. — Ausência de alguns caractcristicos acha-
dos n'outras regiões.
Pretendi descobrir e descrever as mais remotas antiguidades
do Algarve, quando em 1877 vim mui saudosamente a esta bella
terra da minha naturalidade officialmente incumbido de symbo-
lisal-as numa carta archeologica.
MO
Alistando methodicamcnte o que já conhecia, coordenei o
plano geral do trabalho que a meu cargo trouxera, c partindo
do principio de que quasi toda a província se mostrava assigna-
lada por numerosos instrumentos de pedra polida de feição pro-
priamente neolithica, bem evidente era que este território fora
amplamente habitado na ultima idade da pedra, embora ainda
então não se houvesse descoberto um único monumento d'esses
tempos, de que as gerações viventes estão separadas por muitas
dezenas de séculos.
Mirava, porém, mais longe o meu propósito, porque vendo a
nacionalidade neolithica caracterisada em mais de cento e vinte
logares, o facto de apparecerem juntamente com os seus nume-
rosos vestígios alguns instrumentos de formas rudimentares, me
deixou presumir não ter ella sido a primeira habitadora d'esta
plaga, poisque taes instrumentos, se não eram obra genuína de
uma idade anterior, bem podiam significar venerandas relíquias
de gerações já extinctas.
Outro fundamento accrescia em auxilio do meu conceito. Di-
zendo os sábios, que logram mais elevado titulo de auctoridade,
que a Europa na ultima idade da pedra fora povoada por uma
raça emigrante brachycephala, dava-se o caso, assaz contradicto-
rio, de ser a raça dolichocephala, que parecia predominar n'esta
região, tendo em vista as informações, muito averiguadas, que
obtivera com referencia aos craneos da estação de Aljezur e de
outras, em que a pedra polida, a cerâmica mais rudimentar e a
completa ausência de artefactos metallicos, constituíam seguros
critérios de pertencerem ao período neolithico, por isso que na
idade paleolithica não havia enterramentos, não havia instrumen-
tos polidos de pedra e não havia louças.
Feitos estes reparos, varias illações parece poderem ser de-
duzidas dos factos enunciados.
Se, com effeito, uma raça brachycephala tinha invadido a
Europa na ultima idade da pedra, isto é, muito posteriormente
aos tempos geológicos ou quaternários, em que o typo geral era
dolichocephalo, o misticismo das duas raças não tem sido até
III
hoje verificado n'esta zona sul-occidenlal; pois lodos os crancos
das estacões extremas d'esta província, a de Aljezur e a da Torre
dos Frades, são puros representantes do typo aborigine.
Sendo dolichocephala a raça verificada em Aljezur c na Torre
dos Frades, a sua origem n'cste tracto de terra é consequente-
mente anterior á cpocba da invasão brachyccphala. Portanto, po-
voando cila toda esta região nos tempos quaternários, longe de
se extinguir, affirma ainda a sua existência na ultima idade da
pedra, como suecede noutras mui las estações europêas, cm que
também ficou caracterisada.
Não faltam provas.
O celebre craneo de Engis, c todos os mais ossos, que em
1833 Schmerling extrahiu d'esta gruía e da de Engihoul, nas
margens do Meuse, perto de Liège, comquanto, em vista dos
conteúdos paleontologicos dos seus depósitos, fossem durante
muito tempo considerados como característicos elhnicos do qua-
ternário inferior (!), e representantes da raça de Neanclerthal,
porque o craneo de Engis, medindo 71 no seu Índice ceplialko,
é mais dolicbocepbalo do que o outro, que mede 72, está verifi-
cado que ao período neolitbico pertencem todas essas relíquias
bumanas. N'aquelle período, pois, subsistia no território belga a
mais antiga raça humana, caracterisada em Neanderthal, Cans-
tadt, Eguisbeim e Brux.
A velha raça, que em grande parle deve ter sido victimada
pelas enormes convulsões cósmicas, que tantas vezes modificaram
a orographia da Europa nos tempos quaternários, não se perdeu
totalmente; obedeceu á lei, derivada da observação de muitos
factos, que o sr. Ferrière l estatuiu e formulou, dizendo que numa
região isolada, as espécies actuaes devem descender das espécies fos-
seis, e acerescentando que, se as espécies são provenientes de varia-
ções accumuladas por selecção, a consequência é que os fosseis devem
ser os antepassados das raças existentes. Esta lei de continuidade,
que somente tem por excepção as espécies extinctas, completa-se
Le Uarwinisme, pag. 42.
11-2
com a theoria do que as camadas geológicas intermédia* devem
conter as espécies ou as variações que ligam os typos extremos, o
fóssil e o seu derivado por gradação. E o caso em que se apre-
sentou na communa de Tayac o deposito mortuário neolithico de
Cro-Magnon, onde havia um velho, um adulto e uma mulher,
medindo o Índice cephalico do primeiro 73, 7G, o do segundo
74,75 e o do terceiro 71,72.
0 sábio Lartet enganou-se, porém, quando julgou quaterná-
rias as sepulturas de Cro-Magnon e d'Aurignac; pois ambos os
depósitos continham louças, cuja origem pertence á ultima idade
da pedra, ao passo que o enterramento dos cadáveres, sabido é
hoje que não era usado nos tempos geológicos.
Os indivíduos de Cro-Magnon, representando a raça mais
antiga, para poderem chegar ao período neolithico, tiveram ne-
cessariamente uma ascendência de successão não interrompida.
Dois d'esses ascendentes já os sábios acharam em boas condições
paleolithicas, um figurado pela mandíbula da gruta d'Arcy, e o
outro pelo esqueleto esmagado de Laugerie-Basse; mas onde
estão os do fim dos tempos quaternários até o começo dos tempos
actuaes, devendo entender-se que a epocha de transição d'aquelles
para estes deve ter sido de uma duração incommensuravel?
Entre os últimos tempos geológicos e a idade da pedra po-
lida, operou-se uma enorme transformação no clima, na fauna e
na industria. Pretende-se até que o próprio typo humano soffreu
aperfeiçoamentos (!), como se fora obra commettida ao sentimento
esthelico de muitos estatuários.
As variedades de typo, um diverso modo de viver, e os des-
envolvimentos industriaes poderiam explicar-se, admitlindo-se
uma invasão social, derivada de um centro mais civilisado do que
a raça inferior que povoava a Europa, se tudo isso tivera appa-
recido repentinamente; mas o que nenhuma invasão podia com-
sigo trazer era a faculdade de transformar a temperatura fria
dos últimos tempos geológicos num clima temperado, como pa-
rece ter havido no período neolithico; não podia fazer retirar
para a cumieira das montanhas os mammiferos que até então
113
viviam nas planícies; não podia em Ioda a parle extinguir o mam-
mouth, as hyenas e os outros grandes carnívoros das cavernas,
nem promover a emigração da renna e de oulros viventes da fauna
paleolithica para as regiões septentrionaes.
Houve, certamente, grandes modificações climatéricas, não
repentinas, mas lentamente progressivas, ao passo que o decres-
cimento das geleiras foi libertando amplos espaços e preparando
condições muito mais propicias para a vida humana do que an-
teriormente havia emquanto a temperatura do ambiente foi exces-
sivamente fria para manter nas planícies os mammiferos, que só
podiam viver nas regiões alpinas.
Entre os últimos tempos geológicos e o período neolithico
decorreram talvez myriadas de annos. Porque não poderiam en-
tão, n'esse immenso lapso de tempo, ter surgido os crepúsculos
de uma aurora mais desanuviada e congruente ao progresso da
intellecção humana?
Então o homem, preclaro primor de todas as creações, com
que a Providencia tinha affirmado as mais sublimes faculdades
da sua omnipotente sabedoria, lançando-o nos regaços da natu-
reza para um dia poder ser o seu único interprete, não se sen-
tindo já abalado pelos cataclysmos que aturdiram, entorpeceram
e apavoraram o espirito dos seus antepassados, mas em meio de
todas as graças que constituíam a obra grandiosa, immensa, re-
gular e harmónica de um ser superior a todos os seres; o homem,
por instincto próprio do seu natural entendimento, ou por uma
inspirada intuição do seu espirito, contemplando em torno de si
tão variadas maravilhas e ao mesmo tempo os deslumbrantes es-
plendores de todo o firmamento, a quem havia de attribuir tantos
prodígios de perfeição, se todos os outros viventes e elle próprio
não eram mais do que uma parte integrante da mesma obra uni-
versal? E como poderia elle conceber a existência do Universo
sem um creador primordial, sem um supremo dictador das leis
immutaveis, que regem todos os movimentos e funeções de cada
cousa em constante harmonia com todas as cousas?
O homem neolithico, respirando pois n'um ambiente mais sa-
114
lutar do que tiveram os seus antecessores, pôde começar a des-
envolver o seu condão intelleclivo de um modo verdadeiramente
assombroso. A crença religiosa e com cila uma certa ordem de
sentimentos próprios da natureza humana, desabrocham na sua
alma. O affecto, o respeito e a veneração entre os homens da
ultima idade da pedra, definem o seu estado de elevação moral.
Até então os seus predecessores não davam sepultura aos mor-
tos. Os cadáveres eram abandonados, podendo entender-se, que
em grande parte seriam pasto das feras. O estado de desordem
em que se acham nas cavernas paleolithicas os ossos humanos
misturados com os de vários animaes, permitte este conceito,
comquanto se possa admittir, que o homem não poucas vezes
poderia ter sido preza dos carnívoros que viviam naquelles re-
cônditos abrigos. Ao contrario, na ultima idade da pedra, extin-
ctos os mais terríveis devoradores que frequentavam as cavernas,
o Ursus, a Hyena spelcea e o Felis spelcea, muitos d'aquelles an-
tros pavorosos passaram a ser logares de habitação de menor
perigo, comquanto subsistissem todas as feras da fauna actual,
ao passo que alguns foram também destinados á jazida da gente
que se finava.
E não só as cavernas de formação natural tiveram aproveita-
mento funerário. Muitas grutas foram então exeavadas nas rochas
de mais branda contextura para exclusivo deposito dos mortos;
abriram-se covões no solo para o mesmo fim; fizeram-se cistos ou
sepulturas quadrangulares de curtas dimensões, formadas de la-
ges toscas e cobertas com outras lages; construiram-se dolmcns,
enormes monumentos megalithicos, entre os quaes alguns attin-
giram extraordinárias dimensões, sendo geralmente cobertos de
tumuli ou montículos artificiaes, e finalmente houve ainda um
deposito mortuário misto, que, á falta de nome próprio, poderá
denominar-se gruta-dolmenica, cujo antro apparece exeavado na
rocha á feição de caverna, sendo a frente defendido por menhirs
e mesas, affectando a configuração de um dolmen meio desco-
berto.
Em todos aquelles logares o homem era sepultado com os
m
objectos que linha possuído durante a vida. armas de guerra e
de caça, instrumentos de trabalho, adornos, amuletos, etc.
Havia já então a sublime crença da im mortalidade da alma
e juntamente a da resurreição. A morte era portanto considerada
como um estado transitório, e por isso, quando cada pessoa re-
suscitasse, deveria logo achar cm torno de si todas suas alfaias
para continuar a utilisal-as. Sc esta era precisamente a idéa que
presidia á pratica invariável de se juntarem aos cadáveres, ou
aos ossos exhumados de uns para outros depósitos, os objectos
que tinham pertencido a cada individuo, um bem definido direito
de propriedade ficara por este modo instituído na sociedade neo-
lithica, não permittindo que o defunto fôsse expoliaclo dos seus
haveres. O próprio amuleto, que mesmo reduzido a pedaços
nunca minguava de virtudes, acompanhava o morto, como para
melhor preparar o seu regresso á vida.
A crença na existência da divindade, o dogma da resurreição,
a superstição, a veneração pelas relíquias humanas e o respeito
pela propriedade dos que se finavam, são factos que parecem
exemplificados por aquella civilisação.
Apesar de se dizer que o homem neolithico tratava melhor
dos mortos que dos vivos, porque, com cffeito, dedicou monu-
mentos de grandiosa fabrica ao abrigo e memoria dos que falle-
ciam, ainda assim não deixou os míseros viventes totalmente
expostos ao açoite cruel das tempestades e ao pavoroso farejo
das alimárias, que em vagabundas alcateias procurariam os loga-
res habitados para ahi assentarem banquete de voragem.
Os engenheiros construetores das antas nos paizes em que havia
lagos, passam a ser engenheiros hydraulicos e começam a fundar
cidades lacustres ou palafittas, isto é, a cravarem grossa estacaria
de madeira no fundo dos lagos, e sobre essa rede de valentes
alicerces a edificarem cabanas cobertas de colmo ou de palhas
dos cereaes, que já sabiam semear e colher. Só a Suissa concen-
trou perto de duzentas palafittas, sendo ao mesmo tempo nume-
rosas no norte da Itália, na Suécia, no Wurtemberg, na Áustria,
na Baviera c em todo o mundo.
110
Que idéa, que receio, ou que conveniência levou o homem
neolithico a ir construir cidades ou centros de população sobre
estacaria em meio dos lagos? A fauna já então estava isenta dos
grandes carnívoros, que se extinguiram com os tempos geológi-
cos. Restava o lobo, o mesmo Canis lupas, que ainda boje vive,
e é mui provável que, abundando em numero, algumas vezes ou-
sasse atacar as povoações, attrahido sobretudo pelos rebanhos
dos animaes, que o homem começava a domesticar, taes como o
carneiro, uma das suas prezas mais appetecidas, a cabra, o boi,
o cavallo, o porco. Mas como se pode julgar que temessem a in-
vestida das alcateias os homens que transportavam e punham a
pino monolithos de 21 metros de comprimento sobre 4 de es-
pessura e de peso 250:000 kilogrammas, como era o menhir de
Locmariaquer, os que cobriam quasi inteira a crusta do globo
com innumeraveis monumentos megalithicos, e os que derruba-
vam arvores gigantescas e iam enfial-as no lodo das grandes ba-
cias lacustres para sobre os topos de taes estacas firmarem as
suas vivendas? A possança d'esses homens não pode pôr-se em
duvida, tanto em presença das obras com que o seu braço robus-
tíssimo se deixou caracterisado, como em vista da forte muscula-
ção que os seus ossos denunciam. Havia portanto uma entidade
peior e mais temível que o lobo, de que o homem precisava pre-
catar-se e defender-se e era, como ficou sendo até hoje, o seu
próprio similhante. A ambição parece haver surgido no coração
humano e gerado o antagonismo entre os homens. Alimentadas
estas paixões, a guerra era consequência inevitável.
Os instrumentos de caça passam ao mesmo tempo a ser ar-
mas de combale. As pontas de frecha, os dardos e lanças de si-
lex, de quartzo, de obsidiana e de outras rochas apparecem com
profusão e sob formas diversas em toda a parte. Fabricam-se
punhaes de silex com admirável aperfeiçoamento, e á feição de
marlellos e picaretes, preparam-se outras armas de guerra com
um largo orifício para o encabamento, terminando em gumes,
pontas, ou cabeças arredondadas, a que os archeologos francezes
chamam casse-tète, differenoando-se dos machados polidos, que
117
lambem julgo terem sido armas de guerra, comquanlo mais ge-
ralmente fossem instrumentos de trabalho, em serem estes utili-
sados somente pela extremidade cortante. As armas de osso e de
matéria córnea, já usadas nos tempos preneolilhicos, proseguem
em maior escala. Emfim, não faltam armas de mão e de arre-
meço entre as hordas ou tribus adversas.
A palafitta, que só communicava com a terra por uma ponte
levadiça ou por navetas e pirogas excavadas em madeiros, era
ponto seguro de habitação, mas que certamente não chegaria
senão para os mais privilegiados, porquanto, havia também gru-
tas, cavernas e habitações terrestres subterrâneas de lm,50 a
8 metros de diâmetro e de 1 a 3 metros de profundidade, que
em Portugal c cm varias terras de Hispanha são consideradas
como celleiros mouriscos, e ainda outras vivendas de base circu-
lar, cujos pavimenlos de terra batida ou calçados de pedra, foram
verificados no monte Amarello ao norte de Bensafrim, assim
como devem ser achados n'outras partes do reino, significando
construcções similhantes ás que o benemérito explorador da Gi-
tania, o sr. Martins Sarmenlo, mui habilmente descobriu nos
montes de Briteiros, onde o seu nome illustre ficará dignamente
memorado.
Os adestrados caçadores d'aquelles tempos fizeram-se guer-
reiros. As contendas eram decididas com o penetrante argumento
da ponta de frecha, ou a golpes de armas contundentes. Foram
elles, portanto, que ensinaram ás nações modernas a discutirem
com armas na mão, e por isso se pode affirmar que a força bruta,
campeando ainda em meio das mais alevantadas civilisações
actuaes, é deshonrosa herança das selvagerias do passado.
A prova mais positiva d'esses combates, havidos entre os
homens da ultima idade da pedra, ficou estampada nos seus pró-
prios ossos. São numerosos os que toem sido achados em dolmens
e cavernas, contendo imbebidas as frechas de silex que os pene-
traram. O craneo, sobretudo, como largamente verificou o sábio
Júlio Baron, era o alvo predilecto do atirador; mas o dr. Pru-
nières colligiu outros muitos ossos feridos pela terrível ponla de
118
silex. E não se diga que o machado polido de pedra era simples-
mente um instrumento de trabalho. Ahi está o craneo da mulher
de Cro-Magnon com uma brecha extensa e larga, aberta sobre o
frontal esquerdo por um machado de pedra, e que, não chegando
a cicatrizar, lhe produziu certamente a morte. O machado e o
picão de pedra deviam ter sido horríveis armas de combate, as-
sim como alguns instrumentos de osso.
A necessidade do homem viver armado contra o assalto do
inimigo crescia na proporção do desenvolvimento da sua prospe-
ridade. Os cubiçosos da riqueza manifestaram-sc logo, uns pro-
curando-a pelo trabalho, e outros pelo emprego da força, ata-
cando a propriedade já constituída. Do primeiro abençoado grupo
de cubiçosos nasceu a industria e consequentemente o seu pro-
gresso; e do segundo surgiu o direito de conquista cem todas
suas torpezas. O communismo, por exemplo, se d'este direito não
descende em linha recta, deve, pelo menos, ter com elle estreito
parentesco. Foi o direito invocado e exercido pelo primeiro sal-
teador e pelo primeiro pirata. Depois, e até hoje, o famoso di-
reito da força ficou sendo o direito dos heroes e dos grandes po-
tentados, ou a negação de todos os direitos.
Era mister fugir aos perigos, mas primeiro que tudo achar
seguros refúgios. E acharam-se!
Ao homem das idades da pedra attribue-se a oceupação de
umas certas collinas, ou rochas, sobranceiras aos valles, quasi
cortadas a pique, ou aprumando em rampas escarpadas e abru-
ptas, apenas accessiveis por um trilho estreito e fácil de ser cor-
tado, á feição de fosso, como para impedir as invasões. Não
havendo grutas ou cavernas naturaes n'esses logares, que ser-
vissem de abrigo, como em tão bizarras circumstancias poderia
citar a serra da Pena e o serro dos Soidos na freguezia de Alte,
seria obrigado a construir alguns abrigos, ou cabanas, como
houve no monte Amarello, ao norte de Bensafrim, onde ainda
estão á vista os seus assentamentos de base circular. Estas pri-
mitivas fortificações, conforme as condições do logar, eram ainda
melhor defendidas em certos pontos, sendo alteadas com um
lií)
grosso bordo de terra, principalmente nos logares mais fracos,
como me parece poder exemplificar, indicando os restos já mui
abatidos e quasi desfigurados d'esses engenhosos parapeitos, que
notei haver no chamado serro das Alfarrobeiras sobre a margem
direita do rio de Almádena, onde se diz terem apparecrdo ma-
chados polidos de pedra e alguns percutores, mas que não che-
guei a ver; pois apenas alli achei muitos escoriaes metallicos,
denunciando antigas fundições. E de outros logares similhantes
me deram noticia já depois de findas as explorações officiaes, de
que o governo me incumbiu, citando-se no concelho de Alcoutim
uns serros na freguezia de Vaqueiros e o legendário serro das
Relíquias junto á margem direita da grande ribeira do Vascão e
da velha estrada que seguia para Mertola.
Faltou-me o tempo, que estas investigações reclamam, para
poder indicar no Algarve outros muitos logares, que julgo terem
sido refúgios preparados pela natureza e aperfeiçoados pela arte,
que as populações antigas tiveram de inventar para se porem a
salvo de súbitas investidas e poderem respirar tranquillas du-
rante os seus momentos de repouso.
Em todo o reino haverá muito d'isso, certamente, mas só ha
de achar-se, se um dia se tomar a serio o estudo geral das anti-
guidades d'este território, e se esse estudo for commettido a
homens de afiançada idoneidade scientifica.
Além dos mencionados abrigos alpestres, o homem antigo
ideou outro, mais seguro, porventura, porém de tão arrojado em-
prehendimento, de tão audaciosa execução, que até parece im-
possível ter-se podido realisar.
Refiro-me ás cidades lacustres ou palafittas, construídas em
meio dos lagos, para servirem de habitação e defeza aos homens
que povoaram o globo terrestre, e portanto ás diversas raças que
em epochas remotíssimas viviam em todo o mundo.
Não sei se no território portuguez houve palafittas, do mesmo
modo que na Galliza e noutras províncias da Hispanha. Lagos
e lagoas houve, certamente, e alguma cousa d'isso ainda resta;
mas ninguém ainda sabe se tiveram habitadores.
•120
No Algarve, entre Cacella c Monte Gordo, existe uma lagoa,
que muito desejei explorar. Chamam-lhe a Lagoa do Boinho.
Mede 1 kilometro de extensão e 500 metros de largura. Em
muitos logares próximos têem apparecido instrumentos de pedra
polida, e consta que quando as aguas alli abaixam, se observam
estacas de madeira, comquanto haja quem affirme que taes esta-
cas são modernas. Estas indicações, porém, só as obtive depois
de findos os trabalhos de que estava encarregado e num tempo
em que a lagoa tinha muita agua. Não posso, pois, affirmar cousa
alguma a este respeito; mas bom é que estas indicações fiquem
registradas e recommendadas a futuros exploradores.
Fundando-me na auetoridade de auetores competentíssimos,
segui o seu conceito inscrevendo as origens das construcções la-
custres nos tempos neolithicos. Esta doutrina, porém, tem ulti-
mamente tido impugnadores, que pretendem não haver palafittas
anteriores á idade do bronze. Os seus fundamentos são muitos,
mas, a meu ver, de minguada força. Citarei os seguintes:
i.° Apparecerem ossos de animaes no fundo dos lagos e não
haver entre elles ossos humanos.
2.° Que alguns tumuli ou montículos de terra e pedra, en-
contrados na proximidade dos lagos, contendo cinzas, carvões e
objectos metallicos, mostram ser as sepulturas dos homens da
idade do bronze, não podendo por isso attribuir-se aos da ul-
tima idade da pedra.
3.° Que apparecendo vidros no fundo dos lagos, provenientes
da fundição de metaes, não podem ser referidos á ultima idade
da pedra.
4.° Que os largos orifícios de varias armas de pedra, extrahi-
dos das palafittas, só podiam ser feitos com instrumentos metallicos.
5.° Que a secção ou corte que soffreram as arvores, para se
transformarem em esteios ou estacas nas palafittas, só se podia
conseguir com instrumentos metallicos.
6.° Que tendo apparecido muitos brunidores de pedra entre
outros instrumentos de idêntica matéria, na estação de Laybach,
só poderiam servir para polirem o bronze, cuja idade é alli reco-
121
nhccida, por serem os ornatos dos vasos cerâmicos representados
por círculos concêntricos e triângulos.
Ora, tendo eu inscripto no período neolithico as origens das
palafittas, cumpre-me avaliar as precedentes objecções com a
mais serena imparcialidade, a fim de mostrar que não destroem
os fundamentos e boas presumpções que parecem refutal-as.
Referirei primeiramente um caso assaz curioso, para mostrar
que a tendência para os lagos é tão anterior á idade do bronze
e da pedra polida, que ultrapassa ainda as raias do grande pe-
ríodo paleolithico, ou de todo o quaternário, porque nasceu com
o precursor do homem, como em linguagem moderníssima é appel-
lidado o individuo do Thenay, que no mioceno inferior preparava
o silex pela acção do fogo e pela percussão, o que no mioceno
superior do Cantai lascava o silex pela percussão, e o que nos
terrenos intermiocenos e pliocenos do valle do Tejo também
usava o mesmo processo.
Este engenhoso ribatejano, que, no dizer do sr. de Mortillet,
ainda não era o homem propriamente dilo, mas o seu progenitor,
se não vivia constantemente nas margens da grande bacia lacu-
stre miocena, que se tinha formado entre Otta e Monte Redondo, era
grande frequentador dos bordos daquelle lago e com tal assidui-
dade, que alli mesmo assentou a sua officina de trabalho, de que
deixou artefactos de silex c quartzite, em parte já mui apresen-
táveis, não obstante umas certas imperfeições que Bourgeois e
outros impertinentes escrupulosos lhes notaram.
Até hoje não se tem atinado com outro logar, que elle dei-
xasse assignalado com os productos da sua industria. Talvez
morasse ahi para os lados do Monte Redondo, nalgum abrigo hoje
destruido, ou se limitasse a viver ao ar livre do famoso clima,
que então permittiu a apparição de muitos e diversos viventes
até então não conhecidos, tanto nos mares, nos continentes, como
nos lagos de agua doce 4. O caso é que a paragem predilecta
1 Veja-se o Cours èlêmenlaire de paléonlologie el de gèologie slraligrapliique do
D^Orbig-ny, tomo n, pag\ 796 a 800, 1851, cm que são indicadas a fauna e a ílora dcscri-
ptas por Brogniart.
i2â
daquelle industrial, era o bordo da referida bacia lacustre, o seu
enlevo irresistível, o seu paradeiro mais certo. E não foi o único
attrahido pelas benignidades do lago, d'onde talvez tirasse sabo-
rosos alimentos, se tivermos em vista as espécies da fauna local
estudadas por Gaudry e as da flora, classificadas por Heer. O ou-
tro do Thenay também vivia nas margens do grande lago situado
entre Beauce e Vcndôme. Foi alli que Bourgeois lhe fez presa
do seu melhor pecúlio industrial. Emfim, a tendência para os
lagos já contava immemorial antiguidade, quando as posteriores
populações neolithicas, ou da idade do bronze, entenderam ser
melhor e mais seguro passarem a viver sobre as aguas.
Voltando, porém, aos fundamentos com que se pretende pro-
var, que foram os homens da idade do bronze os primitivos con-
structores e habitantes das palafittas, occorrem-me alguns reparos
c mesmo ponderações, que me parece nâo se poderem abandonar,
a fim de que este assumpto tenha mais algum esclarecimento.
l.° O facto de não apparecerem no fundo dos lagos ossos
humanos misturados com os dos animaes, que serviam de ali-
mentação, prova que o vicio brutal da anthropophagia não tivera
ingresso entre os habitantes daquellas insulas artificiaes; prova
que os cadáveres não eram lançados ao fundo dos lagos, mas
d'alli transportados; não prova, porém, que fossem queimados,
porque podiam ter sido inhumados.
2.° Se na proximidade dos lagos têem apparecido alguns tu-
muli, ou montículos de terra e pedra, contendo cinzas, carvões,
e instrumentos de bronze, similhantes aos que se acham no fundo
lodoso, parece provável que taes depósitos representem incinera-
ções correspondentes a indivíduos, que viveram durante a idade
do bronze em palafittas ou em habitações terrestres; mas não
prova que esses indivíduos não tivessem predecessores, nem que
não haja outros depósitos mortuários, mais ou menos próximos
dos lagos, pertencentes á população neolithica. Se o facto, pois,
de não se terem descoberto numerosas sepulturas neolithicas nas
circumvizinhanças dos lagos, onde todavia estão registrados al-
guns dolmens c se têem achado varias inhumações, leva a concluir
123
que os homens da ultima idade da pedra não foram os fundado-
res das mais antigas habitações lacustres, do mesmo principio se
poderia deduzir que os homens da idade do bronze só em min-
guado numero teriam alli existido, sendo diminutissimos os tu-
fnuli cinerarios de que ha noticia cm relação á grande população
lacustre, que se diz ter havido n'aquella idade. Redargue-se,
porém, a esta objecção, dizendo-se que varias causas lerão extin-
guido os tumuli da idade do bronze; mas não se applica a
mesma doutrina para explicar a falta, que se nota, de sepulturas
neolithicas, sendo estas muito mais antigas e portanto expostas
ha mais tempo a todas as causas de destruição.
3.° As substancias vítreas, extrahidas do fundo dos lagos,
derivadas da fusão dos metaes, podem pertencer á idade do
bronze ou serem posteriores. Foram certamente para alli trans-
portadas com alguma idéa de aproveitamento, porque as fundi-
ções não se podiam fazer nas palafittas. Não provam, porem, que
os fundidores dos metaes foram os primeiros habitantes das ca-
banas lacustres.
4.° Com referencia aos artefactos de pedra perforados, des-
cobertos nas palafittas e cm vários depósitos terrestres, corre a
mui singular presumpção de que todos devem pertencer a idade
do bronze, ou á do ferro, dizendo-se não se poder conceber, que
sem o emprego de instrumentos metallicos, exercendo acção de
rotação, taes aberturas se podessem conseguir.
Não posso concordar com esta aventurosa opinião, contra a
qual reagem todos os ensaios experimentaes e conjunctamente as
provas archeologicas mais positivas.
Faça-se a experiência. Applique-se em movimento de rotação
uma barra aguçada de cobre ou de bronze sobre um instrumento
de qualquer rocha dura, por exemplo, do grupo feldspathico ou
de outras series do mesmo grau de dureza até o ultimo termo da
escala, que facilmente se reconhecerá que o bronze, e muito me-
nos o cobre, em vez de furar a pedra, será por ella desgastado.
Os machados de schisto amphibolico, de fibrolite, de diorite, etc,
que colligi no Algarve, repellem o trabalho d'esses dois metaes.
124
A meu ver, nenhuma substancia metallica, anles de eslar em
uso o ferro temperado, podia supprir a acção da ponta de silex,
assim como nenhum instrumento cortante, antes do aço, podia
competir com a tradicional faca de silex, de obsidiana, ou de
quartzo crystallino.
Ha numerosos artefactos perforados, colligidos em rigorosas
condições neolithicas, como em seus logares mostrarei, taes como
amuletos e adornos de varias pedras; e portanto, os instrumentos
que produziram a perforaçâo, não eram metallicos, mas silicio-
sos. Podiam ser de silex, de agatha ou de calcedonia, porque
tudo isso havia nos depósitos neolithicos, e podiam mesmo ser
auxiliados com pontas de quartzo crystallino ou opaco, porque
também foram achadas.
A perforaçâo dos martcllos e picaretes, a que os archeologos
francezes chamam casse-téte, devendo ser larga para o encaba-
mento, obtinha-se por outros processos, sem a intervenção do
cobre ou do bronze, como vários esboços quebrados, quasi todos
de serpentina, extrahidos das palafittas da Suissa, deixaram per-
ceber. Em geral, para a fabricação d'estas armas empregavam-se
rochas brandas, mas ao mesmo tempo densas e de muita tenaci-
dade, comquanto algumas pertençam ao grupo das rochas duras.
Aproveitavam-se pedras naturalmente furadas e preparados
os furos por meio de choques de percussão, seriam aperfeiçoados
sob a acção da agua, com pedaços compridos de grés expressa-
mente talhados para poderem completar o preciso alargamento.
Quando não havia furo natural, o trabalho da perforaçâo co-
meçaria por ser a pedra picada por ponções, formando-se duas
cavidades oppostas, como se acham em muitos percutores para
simples firmeza dos dedos, segundo se tem julgado, comquanto
algumas mostrem asperezas, que antes deixam presumir serem
produzidas pela trituração de drogas mineraes.
Quem observar os graes de pedra do dolmen neolithico de
Alcalá, talvez os mais perfeitos que se têem achado em Portugal,
e mais alguns, também neolithicos, pertencentes ás collecções da
secção geológica, notará um trabalho de fabricação, de todo o
1
125
ponto regular, verdadeiramente admirável. Todos apresentam
uma cavidade mais ou menos funda, parecendo ter sido torneada,
mas que foi primeiramente preparada por choques de percussão
e em seguida aperfeiçoada pelo altrito de areia molhada e posta
em rotação por um pilão de grés, por um pedaço de madeira ou
de osso. Suppondo-se agora que no lado opposto do gral se fazia
igual trabalho, fácil será perceber-se que as duas cavidades che-
gariam a communicarem-se por uma rotura, cujos bordos iriam
sendo cortados por escopros, goivas e marlellagens até o plano
de contacto das duas cavidades ganhar o diâmetro de cada uma.
Eis-aqui como também podiam ser praticadas as aberturas
nos outros instrumentos de pedra, durante a ausência dos metaes,
tanto mais do cobre e do bronze, que pouco ou nada adiantariam
aquelle género de trabalho, em que a paciência e perseverança,
mostrando maior tenacidade do que as rochas mais resistentes,
só deixaram de ser atacadas pela acção dos attritos. Trabalho
muito mais admirável era, porém, o de um vaso de calcareo
branco de fina granulação, cujos fragmentos me deixaram dedu-
zir a medida do diâmetro do eixo vertical, e da ténue espessura
de 0m,004, com varias perforações junto ao bordo e no bojo, sem
que comtudo fosse mister empregar metaes num tão delicado
lavor.
5.° E, a meu ver, contraproducente a prova que se pretende
dar, de que o corte dos tanchões sobre que assentavam as con-
strucções lacustres, só podia ser feito com instrumentos de cobre
ou de bronze.
Ponha-se á vista a serie mais completa dos instrumentos cor-
tantes da idade do bronze e a serie dos de pedra do período
neolithico, proceda-se ao ensaio da possança de uns e de outros,
que facilmente se reconhecerá ser verdadeira preoceupação o que
se pretende affirmar.
Note-se que a essência florestal, que mais predominava nos
tempos neolithicos, era do género Pinus, c que a mais typica da
idade do bronze fora o Quercus. Já se vô, que o corte do carva-
lho oppõe maior resistência que o do pinheiro.
120
Como poderiam pois os machados e escopros de bronze cor-
tar o tronco dos carvalhos, e os dos pinheiros não poderiam ser
cortados com os possantes machados de silex, de rochas quar-
Izosas, dioriticas, serpentinosas, todas de grande densidade e de
afiladissimos gumes cortantes? Além d'estes poderosos instru-
mentos, havia grandes enxós de corte de formão e escopros de
apurado gume, que independentemente dos machados, bastariam
para porem por terra uma floresta, sulcando e minando em volta
redonda os troncos das arvores.
Não colhe, pois, o argumento enunciado, de que as palafiltas
não podem pertencer ao período neolilhico, por não haver então
instrumentos metallicos para cortarem a estacaria. Nem está pro-
vado, que os artefactos de madeira exlrahidos dos lagos, laes
como cabos de instrumentos, clavas de varias formas, vasilhame
e pirogas ou canoas exeavadas em madeiros, se fizessem com
instrumentos metallicos, quando tudo isso se podia fabricar com
os machados, enxós, escopros e goivas de varias rochas, com o
poderoso auxilio de laminas cortantes, de facas, serras e raspa-
dores de silex, de crystal de rocha, de caleedonia, de obsidiana
e de quartzo, e finalmente empregando ainda desgastadores de
rochas granulosas, e polidores finíssimos.
E com que instrumentos metallicos preparavam os homens
paleolithicos e os da ultima idade da pedra os numerosos artefa-
ctos de osso, que são característicos dos seus tempos, entre os
quaes ha manufacturas verdadeiramente pasmosas?
Não poucas vezes a classificação de certas estações é sobre-
maneira temerária. Quando não ha bases sufficientemente positi-
vas, o conceito conjectural pouco adianta, para não dizer que
tudo desfigura.
Pretendeu-se classificar a estação de Laybach como perten-
cente á idade do bronze, porque continha muitos brunidores de
pedra, que se julgou só poderem ter servido para polirem o
bronze, quando estes instrumentos são frequentes e abundantes
em depósitos rigorosamente neolithicos. Além dos polidores de
pedra, manifestou aquella estação algumas loucas com ornatos
127
de círculos concêntricos e triângulos, desenhos que logo se con-
sideraram typicos da idade do bronze, quando o celebre dolmen
de Gavr'inis, que ainda não foi inscripto nas idades metallicas *,
apresenta gravuras muito mais complicadas no lavor, e quando
a figura triangular, como adiante mostrarei, ó o typo da gravura
geométrica, que orna as numerosas placas de schisto ardosiano,
assaz frequentes nas estações neolithicas do Algarve, e noutras
de diversas províncias do reino, as quaes, cousa notável, são ra-
ríssimas em monumentos da idade do bronze.
Com taes classificações só ha a esperar uma inextricável
confusão !
São numerosíssimas, é certo, as palafittas habitadas na idade
do bronze, e sabe-se que o foram, porque do fundo dos lagos
têem sido tirados abundantes e variados artefactos daquelle me-
tal. Mas, porque devem ser da idade do bronze aquellas palafit-
tas, que, tendo já sido muito exploradas, não apresentaram ainda
um único artefacto metallico, mas um conjuncto de característicos
da ultima idade da pedra?
E mister advertir, que a Suissa é uma das regiões mais ricas
de palafittas e que é precisamente alli que se marca a estação,
que ficou servindo de typo da ultima idade da pedra. Eis a razão
por que os archeologos francezes chamaram epocha Robenhau-
siana ao período neolithico.
Robenhausen, logarejo da communa de Welzikon, perten-
cente ao cantão de Zurich, é um nome que ficou sendo celebre
nos annaes da sciencia moderna em razão dos descobrimentos
que fez Messikommer, habitante do logar, pretendendo esgotar
os alagadiços que separam aquelle povoado das margens do lago
de Pfaffikon. As alluviões encobriram alli uma opulenta estação
ncolithica, contendo muitos instrumentos de pedra polida e de
osso, abundantes ossos de animaes, louças, cereacs e tecidos
carbonisados, bem como numerosos artefactos de madeira em
perfeito estado de conservação. Nenhum objecto metallico era
Do Mortillct, Lc Prèhislorique, pag. 60?.
128
companheiro do famoso pecúlio da ultima idade da pedra, escru-
pulosamente estudado pelo sábio Keller, o insigne mestre dos
archeologos suissos. Foi o sr. G. de Mortillet quem adoptou a
estação de Robenhausen como typica da ultima idade da pedra.
A curta distancia da margem do lago de Zurich, não longe
de Robenhausen, sendo cortado um outeiro ou montículo um
tanto abatido, Keller verificou alli os característicos de um logar
que fora habitado na ultima idade da pedra em meio das aguas
do lago, sendo as construcções firmadas sobre estacaria, cujas
pontas estavam ainda encravadas no lodo negro de que era for-
mado o próprio montículo, onde promiscuamente foram achados
muitos fragmentos de carvão, pedaços de louça, ossos partidos,
muitos instrumentos de pedra e de osso, objectos de adorno, te-
cidos e cereaes carbonisados, pedras de moagem, pão de forma
achatada e diversos fructos que ainda foi possível reconhecer.
Com todo este variado amontoamento, que bem mostrava ter o
lago de Zurich sido habitado na ultima idade da pedra, appare-
ceram craneos humanos e diz-se que alguns objectos metallicos,
não se sabendo, porém, qual foi a cota do montículo que conti-
nha estas duas especialidades tão pouco concordantes entre si
em presença de todos os mais critérios, que os sábios sempre
inscreveram no período neolilhico.
A existência de estacas no âmago do montículo seria mais
que sufficiente para mostrar que tudo aquillo era uma parcella
do espaço que as alluviões tinham usurpado ás aguas do lago,
certamente muito mais amplo no tempo em que sobre a superfície
tranquilla das suas aguas viveu um povo sedentário, furtando-se
assim, antes ao ataque e á destruição de tribus invasoras, do que
á ferocidade de uma fauna, que já havia perdido os seus mais
pavorosos devoradores.
E, com effeito, um facto assaz singular!
Se o deposito era originariamente neolithico, não haveria
craneos humanos immersos no lodo de um lago habitado; pois
se os indivíduos, a quem pertenciam, tivesssem morrido nas habi-
tações, seriam enterrados em cistos, grutas ou dolmens, como era
129
pratica invariável na ullima idade da pedra. Se o deposito per-
tencia á idade do bronze, os fallecidos na palafitta não podiam
escapar á cremação, nem as suas cinzas aos tumuli de terra e
pedra, que a curtas distancias dos lagos se reconheceu terem
sido as mansões mortuárias d'aquelle tempo, em vista dos instru-
mentos metallicos encontrados no âmago de taes monumentos.
Somente, porém, poderiam pertencer a uma ou outra idade, se
em razão de lucta ou de desastre accidental tivessem sido preci-
pitados no fundo do lago e alli ficado afundidos.
Finalmente, poderiam provir de enterramentos feitos nas tur-
feiras muito posteriormente á idade do bronze e serem relativa-
mente modernos; o que não parece ser tão verosímil, tendo-se
em attenção a uniformidade do typo, e a deformidade occipital
os assignalar com uma significação talvez muito diversa.
Ao certo nada se sabe! Geralmente, nem sempre se tem dado
a precisa attenção ás condições de situação em que se acham os
objectos antigos, e daqui resultam muitas vezes graves erros de
classificação.
Eis-aqui o que pode ter suecedido nos depósitos lacustres da
Suissa, tanto mais nos que já estão protegidos pelas alluviões e
fora dos perímetros inundados.
Quem nos assevera, que os craneos helvéticos e os artefactos
metallicos exhumados dos terrenos marginaes do lago de Zurich
não oceupavam o deposito alluvial mais antigo, o relativamente
tais moderno, ou camadas muito distantes entre si? Não conheço
obra alguma em que se tenham figurado os perfis d'esses cortes,
que tiveram por fim especulativo a conquista e a defeza de ter-
renos destinados ao lavor agrícola.
Poderia citar muitos casos análogos. Mesmo em Portugal,
algumas cavernas, que em grande parte manifestaram critérios
neolithicos, continham pontas de frecha e de lança de cobre e de
bronze, e algumas ha n'outras regiões, que até têem fornecido
trlefactos romanos. A conclusão seria, pois, que as primeiras só
na idade do bronze foram utilisadas, e que as segundas apenas
no terceiro ou quarto século começaram a ser transformadas
9
130
pelos conquistadores do mundo em cryptas funerárias, onde con-
centravam todas as possíveis memorias do passado, dotando os
seus defuntos com os mais typicos instrumentos, da idade do
bronze e da ultima idade da pedra, que podiam haver a mão.
Sabido é, que nos tempos geológicos o solo helvético esteve
coberto de espessas geleiras. Â vida humana seria então certa-
mente incompatível com tão adversas condições physicas e clima-
téricas. Com a fauna preglaciaria dos grandes mammiferos dizem
que não se encontrou por emquanto n'aquella região prova al-
guma directa da existência humana, o que tem levado alguns pa~
leontologistas a julgarem, que nem o homem paleolithico nem o
neolithico alli chegou a viver. Parece-me um tanto prematura e
demasiado positiva uma tal asserção. Muito está ainda por fazer
em toda a parte. O facto de não se terem descoberto ossos huma-
nos n'algumas cavernas em que abundam os dos grandes viventes
dos tempos quaternários, nada prova. Nem todas as cavernas
terão sido exploradas, e nem todas foram aproveitadas pelo
homem. Schmerling só encontrou na Bélgica três ou quatro ca-
vernas ossiferas, tendo explorado quarenta e oito, e o sábio Lund,
tendo feito o reconhecimento de mais de oitocentas no Brazil,
apenas em seis descobriu ossos humanos * 1
Mas o manto crystallino de gelos com que os Alpes cobriram
o solo em que viveu a fauna quaternária da Suissa desappareceu.
Pouco ao meu intento convém agora invocar as causas d'esse
grandioso phenomeno. Entretanto direi apenas, muito de passa-
gem, estar paleontologicamente provado pelas cotas de nivel em
que hoje se observam vários molluscos fosseis, que viveram sob
o domínio do mar, que os Alpes accusam por este modo um abai-
xamento de 700 metros em relação ao nivel do mar, e áquelle
que attingiram quando as geleiras occuparam as cordilheiras dos
Vosges e tiveram a sua máxima extensão2. D'esse abaixamento
1 Veja-se com attenção o que a este respeito pondera o sábio Beudant no seu Cours
ètèmenlaire de géologie, pag\ 257 — 1865.
2 Alcide d'0rbigny, no seu Cours de palèonlologie et de gèologie, tomo n, pag\ 938,
avalia em mais 1:000 metros a elevação dos Alpes quando as geleiras attingiram a sua
maior extensão; vide o Syslème de la chaine pri?icipale des Alpes, por Elie de Beaumont.
131
resultou necessariamente uma proporcional elevação de tempera-
tura, que extinguiu as geleiras dosVosges e d'ellas libertou tam-
bém o solo subalpino da Suissa. O derretimento de tão enormes
montanhas de gelo, constituindo uma epocha diluviai, occupou
depois as depressões do solo e formou os numerosos lagos
d'aquella região. Vieram a seu tempo as alluviões conquistando
lentamente aos lagos os grandes espaços do seu espraiamento e
nelles creando o novo solo, que um dia tinha de ser enlevo do
mundo e pátria de illustres sábios. Abençoadas alluviões !
Digam o que disserem, os da idade do bronze, os assadores
de carne humana, não foram os primeiros que pisaram os torrões
enxutos do novo solo alluvial suisso.
Note-se bem. Os homens que trouxeram o bronze, e que se
diz terem tido por pátria a Ásia meridional, accrescenta-se que
foram também portadores de um culto consagrado ao astro da
noite, acompanhado da superstição, que os impedia de attenta-
rem contra as melindrosas immunidades da lebre, em razão de
umas velhas tradições e de umas subtis analogias que descobri-
ram (feliz descoberta!) entre a lua e a lebre! A lua era a magica
lanterna com que o céu alumiava a terra, ao passo que a lebre
era ao mesmo tempo o symbolo da vigilância nocturna, e, ao que
parece, tinha ainda com a lua umas outras mysteriosas relações
de congruidade, que não tratei de averiguar ... O caso é, que o
homem da religião do bronze achou ser cousa muito mais corrente
conformar-se com a pratica de o reduzirem a cinzas do que pro-
var carne de lebre. A isso é que elle nunca se atreveu ! O seu
antecessor, o da idade da pedra, e com isto não quero dizer que
foi seu ascendente, não levava tão longe os escrúpulos. Comia de
tudo, e com devoradora sofreguidão, a ponto de reduzir os dentes
a um completo estado de arrazamento. Elles ahi estão appare-
cendo, e vejam-se bem, que parece terem devorado pedras de
amolar. Quantos gastronomos desejariam hoje mesmo poder dispor
da sua ucharia culinária! Em summa, até carne de lebre comia!
E não ha que duvidar, porque nas grutas suissas de Thayngen,
em Schaffhausen, os ossos da lebre, animalejo mui conhecido
132
desde os tempos prepaleolithicos, foram achados com uma fauna
completamente da idade da pedra, onde o fanático palafittico da
idade do bronze nunca se animaria a assomar-se, havendo-se
alli perpetrado um cruento sacrilégio. Tinha-se comido lebre lá
dentro . . . Não podia entrar !
Prova-se, portanto, que na idade da pedra já havia homens
em Schaffhausen, que comiam lebres e muitas cousas mais: logo,
o homem da idade do bronze não foi o primeiro habitante da
Suissa.
E ainda se dá noticia de outra gente, a da estação de Lay-
bach, gente, que só se recommendou á posteridade pelos seus
instrumentos de pedra lascada e por outros de pedra polida, em
que figura um bom machado de serpentina, e outro de rocha ba-
sáltica.
Os sábios, em vista de taes característicos, não ousaram in-
screver os extinctos habitantes de Laybach nas idades metalli-
cas. Se me dão pois licença, que também assim o julgue, mais
esta prova aqui fica, de que o homem da idade do bronze teve
quem o precedesse na grande região das palafittas.
Ha mais, muito mais ainda. Volto, porém, a um assumpto
em que já toquei, e me fez scismar, confesso! Não lhe posso re-
sistir, embora me chamem repetido e até fastidioso.
Refiro-me aos craneos e esqueletos d'aquella região lacustre,
porque, como acabo de dizer, fizeram-me scismar, e não era caso
para menos. Vou fallar d'elles ainda uma vez, comquanlo o me-
lhor fique por dizer, como certamente fica! São mais umas pa-
lavras.
Disse eu, partindo do principio, ou, antes, da conclusão dos
que pretendem ter sido a Suissa originariamente povoada na
idade do bronze pelos constructores das palafittas, que aquellas
relíquias etimológicas, se pertenciam a esse tempo, só por um
desastre fatalissimo poderiam ainda hoje existir.
Que gente seria pois essa, que tão milagrosamente escapou
ao brazeiro fumegante dos fundidores do bronze?
Do inventario osteologico consta que todos os craneos eram
133
rigorosamente dolichocephalos, e com grande saliência no occipi-
tal. Não se percam de vista estes dois factos !
Todos sabem hoje, que o Índice cephalico dolicocephalo, ve-
rificado em craneos prehistoricos, representa o typo elhnico, que
desde os tempos paleolithicos mais antigos tinha vivido na Eu-
ropa, typo que no período neolithico apparece representado pelos
troglodytas de Cro-Magnon, assim como por outros muitos, e que
nunca totalmente se perdeu, ou desfigurou a ponto de que não
se ache ainda hoje nas sociedades viventes.
Com a pedra polida appareceu o typo brachycephalo, cujo
cruzamento com o que já existia, produziu variedades, que Paulo
Broca teve de repartir em grupos distinctos, designando para
cada grupo os limites cephalicos correspondentes.
Portanto, estando já provado que a Suissa teve habitantes
na idade da pedra, com que acertado fundamento podem ser
excluídos da raça primordial os craneos helvéticos d'aquellas
turfeiras ou estações lacustres, para se apresentarem como ge-
nuínos representantes da idade do bronze?
O typo dolichocephalo primitivo actuou com tal tenacidade,
que em algumas zonas geographicas se conservou refractário ao
cruzamento com a raça brachycephala, que só appareceu na Eu-
ropa no período neolithico, e tanto assim é, que nos monumentos
neolithicos do Algarve, sem ser preciso procural-os mais longe,
o typo dolichocephalo tem um predomínio absoluto.
Insisto. Não sei em que situação e em que condições de con-
sociabilidade com outros critérios foram encontrados os craneos,
todos dolichocephalos, nas estações lacustres da Suissa. Das nar-
rativas escriptas não se conclue cousa alguma.
Entretanto dá-se um facto de observação, já muito commen-
tado, que parece mostrar não serem as palafittas suissas absolu-
tamente synchronicas, ao passo que muitas estão, pelo inventario
dos seus conteúdos, perfeitamente consideradas como pertencen-
tes á idade do bronze, ou como amplamente habitadas nesse
tempo.
Em nenhuma das palafittas capituladas como sendo da idade
134
do bronze na dilatada zona que circumda os Alpes, se tem ainda
achado renovação de estacaria; o que bem persuade que a sua
conservação acompanhou todo o período d'aquellas habitações in-
suladas, isto é, pôde conservar-se durante toda a idade do bronze.
Não suecedeu, porém, assim na celebre estação de Roben-
hausen, onde a primitiva estacaria teve duas renovações sobre-
postas e separadas por outros tantos depósitos de avolumadas
turfeiras. Este facto é muito significativo, embora se tenha pre-
tendido attribuir ás condições de um meio eminentemente des-
truidor; o que não passa de ser uma concepção arrojadamente
hypothetica e por emquanto problemática, por isso que tae$ con-
dições de destruição não estão demonstradas.
Se a conjectura nestes casos é admissível, porque não po-
derá com preferencia explicar-se a necessidade de renovar mais
duas vezes a primeira estacaria, attribuindo-se áquella extincta
palafitta uma antiguidade muito maior do que a de toda a idade
do bronze, tanto mais sendo aquelle deposito o prototypo das
estações neolilhicas?
Quaes são as provas que a estação de Robenhausen tem dado
de pertencer á idade do bronze ?
Que razões fundamentaes excluem o homem neolithico de ter
podido ser o primeiro construetor de habitações lacustres? Quem
primeiro do que elle, teria necessidade de procurar a sua segu-
rança no isolamento dos lagos, logo que invadiu territórios em
que achou outra raça diversa, e porventura o mais perigoso an-
tagonismo?
Tendo-se em vista o facto da renovação da estacaria numa
estação lacustre capituladamente da ultima idade da pedra, toda
a conclusão de prioridade attribuida a idade do bronze é con-
traproducente e sáe das regras preceituadas pela critica archeo-
logica.
Terminarei este assumpto com mais uma conjectura, que pa-
rece estar pedindo cabimento n'este remate. Venham pela ultima
vez a uma vistoria os craneos, que escaparam á fogueira impla-
cável d'esses homens, que reduziam a cinzas e carvões as carnes
135
e os ossos dos seus similhantes. Já se sabe que são dolichocepha-
los, e tão puros como os que povoaram a Europa desde os pri-
mitivos tempos quaternários, para que não seja mister forçada-
mente filial-os na raça da idade do bronze, de que todavia não
deve haver documentos osteologicos, affirmando-se que n'essa
idade eram queimados todos os cadáveres.
Como, porém, explicar a grande saliência occipital, que em
todos aquelles craneos é uniforme? Ninguém affirmará que seja
um característico craneano da raça dolichocepbala. E, sem duvida,
uma deformação adquirida no exercicio de um trabalho, em que
a cabeça tinha de soffrer a pressão de pesados materiaes de
transporte, como bem podiam ter sido os troncos das arvores,
cortados nas florestas para servirem de esteios ás habitações la-
custres e de jangadas para o encravamento dos tanchões, que em
algumas palafittas eram contados por dezenas de milhares.
E é o mesmo característico de muitos craneos, que desco-
bri nas minas de algumas granjas romanas, ou colónias agrí-
colas, villee, cujos serviçaes, reduzidos ás condições de escra-
vos, eram obrigados a todos os trabalhos violentos; pois, em
regra geral, não estando ainda ossificadas as suturas do craneo
durante a idade vigorosa do homem, que tem por habito carregar
á cabeça, a pressão exercida sobre a crista temporal promove
um abatimento, de que resulta a saliência, por vezes muito proe-
minente, do osso occipital.
Todo este conjuncto de circumstancias me permitte pois pre-
sumir, que o homem neolithico foi na Europa o primitivo con-
structor e o primeiro habitante de palafittas, assim como em seu
competente logar mostrarei, que o culto consagrado á lua já tinha
sectários na ultima idade da pedra. Aqui n'esta modesta cban-
cellaria não ha duvida em se lhe passar carta de engenheiro hy-
draulico, e mais adiante se verá, que era muito mais do que isso,
porque também foi architecto, grandemente industrial e artista.
São, com effeito, admiráveis os commettimentos que o homem
neolithico poz por obra ! Accusam-no de não ter sido artista,
como foram os dolichocephalos dos últimos tempos geológicos,
130
que se entrelinham em gravar sobre ossos e pedras os indiví-
duos mais typicos da fauna e da flora dos seus dias; mas não é
positivamente verdadeira csia aceusação. Também foi gravador.
Em seu competente logar mostrarei as obras que elle traçou com
um simples buril de silex. Entretanto, para se formar approxi-
mada idéa do estado do seu progresso, é mister consideral-o es-
sencialmente industrial.
A agricultura foi uma das suas oceupações. Revolvendo a
terra com esgalhos de veado de certo modo preparados, semeava
e colhia diversos trigos e cevadas, e cultivava também o linho,
não o Linum usitatissimum, que ao apontar a epocha da fruetifi-
cação alegra primeiramente os campos com suas bellas corollas
azuladas, mas um outro linho, o Linum angustifolium, planta in-
dígena de vistosas flores amarellas, que em todo este paiz e n'ou-
tros da Europa é vulgarissima. O linho de folhas estreitas, o es-
parto (Stipa tenacíssima), os filamentos que se tiravam da casca
das tílias (Tilia grandiflora e Tilia parvifolia) , assim como outros
vegetaes fibrosos, aproveitava o homem para fazer vários tecidos,
cordéis e cordas. Conseguindo recolher em seus graneis as espi-
gas do trigo e da cevada, onde também accumulava outros fru-
ctos, que a natureza espontaneamente lhe offerecia, taes como
avellãs (Corylus avellana), glandes de sobreiro (Quer cus robur),
pinhões bravos (Pinus sylvestris), muitos dos géneros Pyrus, Pru-
nus e Cerasus, assim como outros diversos. Os que obrigavam a
maior trabalho, eram os cereaes até serem transformados numa
espécie de pão ázymo, achatado, de forma circular e do diâmetro
de uns 10 centímetros, que se cozia, ou antes assava sobre calhaus
levados a uma alta temperatura pela acção do fogo, e que por
vezes lhe deixavam na soleira a impressão da sua convexidade.
Para moer o trigo e a cevada, havia pedras planas que se
ajustavam pela superfície, e outras concavas para não deixarem
escapar os grãos ao triturador e ao pilão de moagem. D'estas
pedras encontrei muitas no Algarve, pela maior parte de calcareo
conchilifero e da foyaite de Monchique, as quaes se podem ver
nas collecções, que deixei depositadas no museu que fundei em
137
1880, assim como nas que posteriormente lenho feito. Este pro-
cesso rudimentar era porém muito imperfeito, e por isso alguns
fragmentos de pão, achados cm varias estações, manifestaram
grãos ainda inteiros.
Assim, pois, esse tão grosseiro alimento, imposto á mastica-
ção, seria um dos que contribuíram para o arrazamento, que é
typico nas dentições d'aquelle período da existência humana. En-
tretanto, para se chegar a este resultado pratico, foi mister instau-
rar diversas industrias. O moleiro, o padeiro e o forneiro, quando
queiram procurar a origem das suas profissões, achal-a-hão
n'aquelles processos de inexcedivel rudeza, que então constituíam
invenções da mais subida utilidade.
O homem neolithico, a quem sem fundamento plausível se
chegou a attribuir o vicio da anthropophagia, desenvolveu extra-
ordinária actividade em procurar todos os possíveis meios de ali-
mentação. A grande quantidade de ossos de vários animaes, que
nas cavernas e n'outros logares se tem achado accumulados,
mostra que o boi, o veado, o cavallo, o javali, o carneiro, a ca-
bra, o coelho e as aves forneciam em grande parte os mais habi-
tuaes , alimentos. E não era elle somente agricultor e caçador.
Não lhe escaparia porventura a industria da pesca; pois appare-
cem uns instrumentos de armadura de veado, similhantes a ou-
tros dos últimos tempos geológicos, feitos da matéria córnea do
rangifer, farpados num ou em dois lados, á feição de barbas de
anzol, que, não terminando em ponta, parece não terem sido har-
pões de arremeço, mas simplesmente instrumentos de pesca.
Dentes de peixe achei eu no deposito de Aljezur. Além d'isto, o
que não soffre duvida alguma é que os molluscos maritimos, flu-
viaes e terrestres eram procurados então com activa diligencia;
pois tenho achado no Algarve amontoamentos de varias conchas
perto de alguns depósitos mortuários e mesmo no interior das
cryptas e arredores de vários dolmem cobertos.
Na Dinamarca, na Irlanda, na Suécia, na França, na Sarde-
nha, e até no Japão e na America, são frequentes os grandes de-
pósitos de conchas nas praias do litoral maritimo e nas margens
Í38
de alguns rios. A esses depósitos, em que se acham promiscua-
mente cinzas, carvões, ossos de animaes, instrumentos grosseiros
de silex c fragmentos de louças, chamaram os dinamarquezes
Kjoekkenmoeddings, que quer dizer despojos ou restos de refeições.
Em Portugal também foram verificados em Muge, sobre a mar-
gem esquerda do Tejo, e no cabeço da Arruda1, pontos um tanto
mais ribatejanos que marítimos, mas contendo enterramentos, do
mesmo modo que os sambaquis do Brazil, em que abunda o gé-
nero Ostrea, e que geralmente estão dispostos no alinhamento
das praias.
No Algarve, as conchas por mim colligidas nos dolmens co-
bertos são dos géneros Triton, Purpura, Murex, Cassis, Trochus,
Patella, Haliotis, Lutraria, Vénus , Pullastra, Donax, Carditim,
Ostrea, Mytilus, Pectuncidus, juntamente com os molluscos terres-
tres Helix adspersa, Helix láctea, Helix nemoralis, Helix pisa-
ria, etc.
Já se vê portanto, que os molluscos contribuíam amplamente
para as necessidades da alimentação.
A domesticação da vacca, da cabra e da ovelha produziu
outros alimentos, que bem parece terem sido utilisados. Não só
o leite puro seria aproveitado, como com elle se preparariam
coalhadas para serem comidas em fresco, ou curadas ao ar para
produzirem o queijo, que mui provavelmente se guardaria entre
as provisões de reserva. Para estas preparações seriam porven-
tura destinados uns largos pratos de barro de bordos altos e
fundo ligeiramente concavo, todos furados á feição de crivo, em
que o leite coagulado daria escoamento aos soros, podendo tam-
bém presumir- se que taes vasilhas, similhantes aos modernos
passadores de uso commum, cujos fragmentos tenho encontrado
em diversos dolmens cobertos, servissem ainda para a fabricação
de uma bebida fermentada, que se julga ter-se feito com fram-
boezas (Rubus idceus), amoras de silva (Rubus fruticosus) e com
' Estão magistralmente descriptos pelo sr. dr. Pereira da Costa n'uma importante
memoria intitulada Da existência do homem em epochas remotas no valle do Tejo — 1865.
139
outros íructos, cujas grainhas e resíduos, formando empastamen-
tos compactos, se têem achado em estações neolithicas.
Já me referi a um delicado vaso de calcareo branco fino*
cujos fragmentos achei no dolmen de Alcalá, com orifícios junto
ao bordo e alguns no bojo, mostrando assim que devera estar
suspenso e dar passagem a algum liquido. Reunidos os fragmen-
tos, deixaram approximadamente calcular o diâmetro interno em
0m,116, a altura do eixo vertical em 0m,60 e a espessura em
0m,004. A ter-se achado inteiro, deveria considerar-se como
sendo um dos artefactos de mais difficil e apurado lavor d'aquelles
tempos e que só seria empregado em usos mais reservados. Ou-
tros artefactos de madeira de pinho extrahidos das palafittas são
atlribuidos a preparação de lacticínios. Emfim, dispondo de tan-
tos meios de alimentação, o homem da ultima idade da pedra
não precisava cevar o seu já bem soccorrido appetite no repu-
gnantíssimo vicio da anthropophagia, inteiramente contrario ás
crenças que lhe fortaleciam o espirito e ás praticas de veneração
e respeito com que honrava as relíquias mortaes dos seus simi-
Ihantes. O seu grau de [civilisação era já então muito elevado,
para não poder descer á brutal rudeza das míseras tribus, que
ainda hoje, por uma deplorável aberração do próprio instincto
humano, mutuamente se devoram, ficando muito abaixo dos mais
monstruosos irracionaes.
O homem neolithico pode apontar-se como tendo sido o
grande instaurador da vida laboriosa. Não conhecendo os metaes,
a pedra era, principalmente, a matéria prima de que se servia
para fabricar instrumentos de trabalho e armas de guerra. Para
estas manufacturas tinha o bom tacto de conhecer as rochas, que
devia preferir. O silex, já então tradicional, por ser a pedra pri-
vilegiada de que se serviram todas as gerações precedentes, era
avidamente procurado, mas nem sempre se encontrava á super-
fície do solo. Nenhuma rocha, com excepção da obsidiana, podia
suppril-o nas suas principaes applicações, e portanto o homem,
que a todos os trabalhos se arrojava com animo destemido, em-
prehendeu uma nova industria, a industria do mineiro, para
140
explorar as formações do silex no âmago da terra, guiado talvez
por descobrimentos, que já tivesse fortuitamente feito em taes
condições quando excavava grutas e habitações subterrâneas para
seu abrigo.
O explorador, munido de instrumentos de pedra, como se-
riam os machados e enxós, e de esgalhos de veado, de que tam-
bém se servia nos trabalhos agrícolas, abria poços mais ou me-
nos profundos e galerias adjacentes até achar o seu desejado
thesouro. Principalmente na Inglaterra e na Bélgica, hão sido
descobertas muitas d'essas minas, cujos característicos de explo-
ração neolithica são affirmados pela presença de louças próprias
daquelle período, associadas a ossos de animaes e a instrumen-
tos de trabalho.
Custa a conceber como se chegou a abrir poços até 13 me-
tros de profundidade sobre 7 a 20 de diâmetro, e como poderam
ser extrahidas as terras que enchiam aquelles espaços !
Destacadas as massas de silex á força de choques de percus-
são, muitos instrumentos saíam logo esboçados da mina; mas,
em geral, os grandes núcleos eram transportados para logares
próximos de boas nascentes de agua, ou marginaes de rios e ri-
beiras, e alli se fixavam as officinas dos manipuladores, sendo
mui provável que nellas residissem sob alguns abrigos de.con-
strucção. São numerosas essas officinas ou estações de fabricação
de instrumentos de trabalho e de armas de guerra já descobertas
em diversas regiões.
Na Hungria, onde mais abundam os jazigos de obsidiana, era
esta espécie de vidro vulcânico a matéria prima que substituía o
silex para a fabricação de facas, de laminas cortantes, de pontas
de frecha e de outros instrumentos diversos, entre os quaes se
toem achado em muitas das suas já reconhecidas officinas, obje-
ctos de uma fabricação primorosa, com que os sábios d'aquella
nação têem enriquecido os seus preciosos museus *.
No Algarve, talvez em razão da rapidez com que me cumpria
A Hungria era 1875 já tinha dezoito museus.
141
fazer o reconhecimento das antiguidades locaes para as indicar
na carta archeologica, nâo cheguei a descobrir officinas de fabri-
cação de instrumentos de pedra propriamente ditas ; mas tenho
inteira certeza de que as houve e que podem ainda ser desco-
bertas, porque em diversos Jogares achei instrumentos esboçados,
como adiante mostrarei, e além d'isto devo presumir, que uma
grande parte dos que colligi, pertencendo a diversas rochas lo-
caes, alli mesmo seriam manufacturados, não querendo assim
affirmar que entre elles não haja alguns importados de diversas
regiões, como com effeito julgo haver.
A população neolithica, que senhoreou a zona meridional
d'este paiz, não pode ser caracterisada com todos os critérios
typicos d'esse período, verificados em diversas regiões geogra-
phicas, ou porque não foram usados nesta extrema terra do
occidente, ou porque a minha inaptidão não me permittiu des-
cobril-os.
Não trato, pois, aqui de enumerar esses critérios geraes,
concernentes á ultima idade da pedra, deduzidos dos descobri-
mentos effeituados nas nações europêas e mesmo noutras regiões
do globo. O meu compromisso é sobremodo restricto; não passa
para o norte da cordilheira de montanhas, que divide o Algarve
do Alemtejo; mas, ainda assim, quanto a descobertas, ver-se-ha
que o Algarve não ficou muito áquem das regiões, que melhor
exploradas hão sido por homens de superior sabedoria, com
quem todavia não posso comparar os meus minguados recursos.
Tal é a riqueza archeologica d'este solo abençoado!
Para mostrar o progresso da vida neolithica neste tracto de
terra, chamado actualmente Algarve, onde a etimologia, que se
diz ser typica d'esses tempos remotíssimos, conseguiu conservar
o seu perfil, bastar-me-ha enumerar, sobre o que já fica expen-
dido, o resto dos seus lavores, tanto mais admiráveis, porque
partem, já se vê, de uma raça inferior, cujos descendentes, ape-
sar dos seus craneos dolichocephalos e dos seus índices cephali-
cos pouco acreditados nos arraiaes da sciencia, foram acompa-
nhando o progresso das civilisações actuaes.
142
Em vez porém de enumerar iodos os typos da industria
neolithica, parece-me preferível exemplificar em estampas e des-
crever ordinalmente os que descobri nas estações dolmenico-tu-
mulares d'esta região, fazendo ponto de partida de Aljezur.
V
SUMMARIO
Os monumentos. —Antas ou dolmens sob iumuli com galerias cobertas. — Sua distribui-
ção geographica. — Falta que faz o museu archeologico cio Algarve, reorganisado
com os últimos monumentos. — Estação mortuária de Aljezur. — Planta e perfis.—
Descripção. — Habitações subterrâneas adjacentes. — Ossos humanos que continha
o deposito. — Escassos característicos paleontologicos. — Rochas utilisadas em toda
a região.— Instrumentos e utensílios de trabalho.— Armas de caça e de guerra.—
Placas de schisto com gravuras. — Amuletos, contas e alfinetes de osso. — Urnas
funerárias e vasos de suspensão. — Monte Amarei! o.— Dolmen coberto não explo-
rado.—Artefactos alli achados. — Vestígios de habitações terrestres. — Carência de
explorações entre o Monte Amarello e Aljezur e entre Aljezur e o rio Odeceixe. —
Serro Grande. — Dolmen coberto destruído.— 0 que ainda manifestou. — Alcalá.—
Dolmen coberto sob Iumuli. — Razões por que a planta geral da necrópole de Al-
calá passa a ter cabimento no tomo 11. — Planta da primeira exploração. — Instru-
mentos de formas inéditas. — Estampas figurando os caracteristicos principaes.—
Planta e productos da segunda exploração. — Graes de pedra e tintas mineraes. —
Vasos crivados de orifícios.— Placa de schisto. — Contas de calaíte, de schisto e
serpentina. — Varias louças. — Palmeirinha, Cerca Nova e outros sitios próximos
com muitos instrumentos neolithicos. — Monte Canellas, mostrando ser sede de
vários monumentos.— Instrumentos de pedra alli achados.— Monte da Rocha (La-
meira) com um dolmen destruído.— Objectos que continha. — Serro das Pedras.—
Dolmen destruido. — Desenho das ruinas e dos objectos d'ellas extrahidos. — Mo-
numento da Nora.— (Advertência a futuros exploradores.) — Planta e perfil.—
Descreve-se o monumento e o que continha. — Monumento da Marcella.— Planta.—
Estado dos ossos. — Instrumentos de silex e de outras pedras. — Tintas mine-
raes.—Louças.— Cacella.— Monumento descoberto ao norte da igreja. — Objectos
d'elle extrahidos. — Planta. — Estações da Torre dos Frades. — Como foram desco-
bertas e o que continham. — Dois craneos dolichocephalos inteiros. —Cerâmica.—
Vários caracteristicos. —Castro Marim. — Dolmen coberto, destruído. — Seus cara-
cterísticos.— Serro do Castello.— Monumento aberto, parcialmente destruído.—
O que ainda manifestou.— Vaqueiros. — Instrumentos de pedra alli achados. — Con-
siderações geraes.
N'um capitulo anterior mostrei nâo haver antas ou dolmens ap-
parentes no território do Algarve, mas que mui presumptivamente
devem ter existido no cabo de S. Vicente, em Monchique e nos
sitios denominados Ponta do Altar, Antas de Albufeira, e Antas
da Luz, perlo de Tavira.
144
O sitio das Antas de Albufeira nâo vae, porém, marcado na
carta paleoethnologica, porque só depois de impressa me foi in-
dicado, como já preveni.
Seguindo a mesma ordem geopraphica, descreverei agora as
estações e antas ou dolmens sob tumuli com galerias cobertas, que
encontrei em Aljezur, Monte Amarello, Serro Grande, Alcalá,
Monte Canellas, Monte da Rocha, Serro da Pedra, Nora, Mar-
cella, Cacella, Torre dos Frades, Castro Marim e no serro do
Castello.
A linha que passa pelos pontos acima designados guarnece
todo o litoral marítimo do sul, avança para o norte na secção
occidental até Aljezur, e na oriental, chegando á Torre dos Fra-
des, segue também para o norte até o serro do Castello em Al-
mada do Ouro, approximadamente no parallelo do rio Guadiana,
imprimindo nesta zona meridional do paiz uma typica feição es-
pecialmente dolmenico-tumular.
Foi precisamente a este resultado pratico, que pretendi che-
gar, quando propuz ao governo uma exploração complementar
para o preenchimento das lacunas que notei haver na ethnogra-
phia neolithica d'esta região.
Não havia então conhecimento das importantíssimas estações
de Aljezur e da Torre dos Frades, nem das que ficaram por ex-
plorar no Monte Amarello, no Monte Canellas e junto ao novo
ramal de Cacella.
Faltavam, pois, as extremidades da linha e estes últimos três
pontos intermédios, como faltam ainda numerosas estações, que
certamente haveria descoberto, se estes trabalhos não tivessem
sempre andado subordinados ao entorpecimento dos prasos irre-
vogáveis.
Alguma cousa, emfim, consegui, embora pouco, relativamente
ao muito a que podéra ter chegado, se na occasião em que se
dispendiam na estrada de Tavira para a freguezia serrana de
Martim Longo uns 20:000^000 réis por mez, para depois
se abandonar a menos de meia distancia, se tivesse deduzido
uma decima parte d^essa verba para que a exploração archeolo-
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ESTAÇÃO-TUMULUS
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115
gica do Algarve, se fizesse com mais delido exame c maior lar-
gueza.
Ainda assim, com esse pouco já feito, pode formar-se appro-
ximada idéa do que fora esta derradeira parcella geographica do
continente europeu no immenso período que abrange a ultima
idade da pedra, a partir dos tempos geológicos para os tempos
actuaeSj no seu período de transição para a primeira idade dos me-
taes, na idade do bronze e na primeira idade do (erro; o que sub-
sequentemente representava na transição dos tempos prehistoricos
para os tempos históricos, e finalmente quaes foram e a que ponto
de civilisação cbegaram as sociedades históricas, que dominaram
este território até á instituição da nacionalidade portugueza.
Começarei portanto pela ordem que segui na carta paleo-
ethnologica, sentindo porém, que o museu archeologico do Al-
garve, especialmente por mim organisado para a comprovação
directa da mesma carta, esteja ha tantos annos (desde agosto de
1881!) tão deploravelmente escondido e inutilisado nas arreca-
dações da academia de bellas artes*, em vez de se manter e fa-
zer-se prosperar para poder ser útil á sciencia e honroso para o
paiz, porque rigorosamente archeologico não ha outro.
Aljezur. — A estação de Aljezur servirá de ponto de partida
para todas as mais do Algarve e de ligação com as estações syn-
chronicas já conhecidas ao norte e nordeste daquella villa em
outras províncias do reino. A sua manifestação foi verdadeira-
mente casual, mas de grandíssima importância. Bem a presenti
eu quando á minha mão chegaram vários instrumentos de pedra
alli achados, assim como presumo estarem ainda por descobrir
naquelle tracto de terra, ao norte, leste e ao sul, outras estações
não menos importantes, que não ousei indicar na carta por não
es lar auetorisado a compro val-as.
No flanco direito, e a curta distancia da igreja da Senhora
1 Um dia se arrependerão; mas quando talvez já não haja quem saiba reorganisar
esse museu, que tudo me deve, porque só eu conheço as condições em que achei os
seus padrões monumentaes.
10
146
da Alva, mandou o sr. Josó da Cosia Serrão, administrador do
concelho de Aljezur, meu antigo amigo e correspondente, fazer
arrancamento de material para uma obra que tinha em constru-
cção. Notando que muitas pedras excediam o plano do terreno
adjacente áquelle templo, e desejando ao mesmo tempo deixal-o
com melhor nivelamento, preferiu tirar primeiramente as mais
salientes, e foi então que verificou pertencerem a uma construcção
subterrânea, que logo tratou de examinar, achando um deposito
com muitos ossos humanos, numerosos instrumentos de pedra e
outros objectos, que cuidadosamente colligiu e mui obsequiosa-
mente me remetteu para a minha collecção de antiguidades.
Levei ao conhecimento do governo o descobrimento, lem-
brando a conveniência de ser aquelle deposito explorado em
devida regra, assim como indiquei outros logares pelos já co-
nhecidos característicos que os recommendavam, a fim de se
supprirem varias lacunas em que laborava a carta prehistorica e
a obra descriptiva correspondente, e ordenada a exploração com-
plementar que tinha proposto, uma serie de valiosas descobertas
consegui reunir ás que antecedentemente havia feito.
Quasi em frente da porta lateral que a igreja matriz da Se-
nhora da Alva aponta para o norte, fazendo partir uma linha de
15 metros do angulo extremo da primeira pilastra, ao poente, e
outra de 14 melros do angulo extremo da que lhe fica ao na-
scente, o ponto em que se encontram as duas linhas marca o cen-
tro de um deposito mortuário de todo o ponto singular pela no-
vidade da sua excepcional configuração. Foi este deposito aberto
por excavação no carbonífero inferior, que constitue a formação
geológica dominante ao sul da margem esquerda do rio de Alje-
zur, sendo apenas a curtos espaços interrompida por algumas
afflorações do terciário marino.
Mostra a planta da excavação, estampa A, fig. a, uma figura
irregular, formada por seis curvas ligadas entre si á feição de
hemicyclos. As cordas correspondentes a estas curvas variam
desde lm,70 a 2m,30, variando lambem de lm,05 a lm,30 as
perpendiculares levantadas ao meio d'essas cordas, que, com di-
\\1
versas grandezas, se ligam, fechando um espaço polygonal in-
scripto no perímetro geral. Além das ditas curvas, ha vestígios de
outras, parecendo terem pertencido a duas fileiras de arcos de
circulo, que seguiam obliquamente no sentido de nór-noroeste.
O perfil, ou corte, fig. 13, indica, porém, que a excavação foi
ordenada por uma serie de planos horisontaes com diversas lar-
guras, dispostos á simiíhança de escada, tendo cada um 0m,2Q
de altura até o mais inferior, cuja profundidade, em relação ao
mais elevado, é de lm,iO, medindo a extensão geral da linha,
em que correm os planos ainda existentes, 9m,80.
Não ha vestígios de galeria de entrada, faltam igualmente os
do tecto ou cobertura que fechou aquelle espaço, cm que vários
diâmetros se cruzam com 6 e mais metros de comprimento;
não ha, emfim, o mínimo indicio appareníe do tumulus ou mon-
tículo, que necessariamente existiu, cobrindo e resguardando
aquella um tanto complicada mansão, consagrada ao abrigo dos
mortos; o que todavia bem pode explicar-se, sabendo-se que
todos os terrenos altos, adjacentes ao plano em que o benemé-
rito bispo D. Francisco Gomes de Avellar mandou construir a
nova igreja de Aljezur, foram cortados e nivelados para se abri-
rem arruamentos destinados ás famílias, que na villa antiga re-
sidiam nos sítios mais insalubres.
Não podia, pois, escapar a estação tumuks, que a tão curta
distancia ficava da igreja, dando-sc ao mesmo tempo a circum-
stancia de ter sido construída a denominada Estalagem da igreja
nova, indicada pela planta na contiguidade e mesmo sobre uma
parte do deposito mortuário. A prova, pois, de que o terreno que
circumdava a nova matriz era mais elevado e foi abatido, de-
monstra-se á simples vista, observando-se os cortes de nove co-
vões exeavados na rocha e figurados na mesma estampa A, que
o povo geralmente julga terem sido celleiros antigos, mas que
podem ter primitivamente servido de habitação, entre os quaes
alguns achei com bem poucos centímetros de profundidade,
quando a dos outros, indicados na carta prehistorica, medeia
entro lm,50 e 7 metros, como são os do castello de Silves.
148
A estação mortuária de Aljezur já eslava portanto cortada e
desfigurada, quando em 1881 o sr. Costa Serrão a mandou ex-
cavar; mas, pelas informações que obtive quando alli cheguei,
presumo que os dois planos inferiores nunca tinham sido invadi-
dos, porém simplesmente entulhados quando se nivelou o terreno
para a construcção da igreja e de varias casas; pois foi precisa-
mente n'esses planos, que o sr. Serrão achou os numerosos obje-
ctos com que mui obsequiosamente engrandeceu a minha colle-
cção de antiguidades.
Faltam algumas noticias relativamente ás condições de col-
locação e da relação em que estavam os ossos humanos com os
artefactos que os acompanhavam. Os operários confundiram tudo,
levando a sua grosseira bruteza a quebrarem com as enxadas
cinco craneos que viram encostados ao hemicyclo marcado na
planta com a letra a, e a espalharem os ossos, que dizem ter
visto amontoados em frente de cada craneo. Sendo, porém, mi-
nuciosamente inquiridos, affirmam, que os craneos eram muito com-
pridos e descahidos para traz, o que bem deixa presumir que per-
tenciam a indivíduos da velha raça dolichocephala, alli sepultados
com o corpo dobrado pelas articulações dos fémures, apoiando a
cabeça sobre os joelhos, como estava em muita pratica nos dol-
mens, nos cistos e noutras sepulturas da ultima idade da pedra.
Era pois a mesma forma de enterramento que descreve o sr. G.
de Mortillel, dizendo:
«Le corps y était déposé aceroupi, la tête inclinée sur les
genoux repliés. » l
O sr. Costa Serrão não explorou completamente aquelle in-
teressante deposito, porque, vendo reduzidos a fragmentos os
craneos que pretendia tirar inteiros para me offerecer, sentiu-se
desgostoso e mandou entulhar toda a exeavação, receiando novos
estragos antes da minha chegada. Coube-me, pois, a exploração
completa, em que fui muito auxiliado com a vigilância e assíduos
cuidados do meu intelligente amigo o rev.d0 padre Nunes da Glo-
Le Préhisloríque, pag\ 597.
U9
ria, que de tudo tomou nota nos esboços que levantou com inex-
cedivel exactidão.
Os entulhos foram de novo tirados c escolhidos por uma fi-
leira de mulheres para que nada escapasse.
Gruparam-se os ossos humanos pela maior parte já destruí-
dos, podendo ainda assim calcular-se não representarem menos
de trinta pessoas. Havia poucos ossos de animaes, mas entre
elles alguns dentes de um squaloide terciário extincto do género
Carcharodon, que posteriormente foram também observados na
grande caverna da Sinceira, que vae indicada na carta; o que
leva a presumir, que não deixaria aquella caverna de ser fre-
quentada pelos indivíduos que associaram aquelles dentes, que
bem podem ter servido de instrumentos de trabalho, aos outros
objectos que possuíram e com que foram sepultados.
De silex descobri ainda algumas pontas de frecha e uma de
lança, algumas facas e serras, juntamente com dois núcleos de
crystal de rocha. Conservava-se intacto um empilhamento de ma-
chados polidos de schisto amphibolico junto ao hemicyclo do
plano inferior, marcado na planta com a letra a, achando-se alli
também três esboços preparados para machados, dois percutores,
um desgastador de grés vermelho, umas cabeças de alfinetes de
osso, uma placa de schisto com gravuras e vários pedaços de
louça destruída.
Tudo isto, porém, era muito pouco em relação aos numerosos
e interessantes objectos, que o sr. Costa Serrão já me havia an-
tecedentemente offerecido, e por isso vou dividir em grupos todo
o pecúlio extrahido d'aquelle deposito para melhor idéa se for-
mar das suas especialidades.
Ossos humanos. — Não me foi possível recompor um único
craneo por serem numerosíssimos e de pequenas dimensões os
fragmentos que cheguei a reunir. O maior, que já o sr. Serrão
me havia remettido, ainda assim não permitte seguras conclu-
sões: é um osso frontal, completamente destacado dos outros
ossos pela satura fronto-parietal até o ponto bregmatico, onde a
150
sua espessara mede 0m,006. Toda a região supraciliar *, abran-
gendo a glabella e o ophryon, é mui lo proeminente, ao passo que
na zona immeclialamente superior chega a ser quasi nulla a sa-
liência das bossas frontaes. A arcada orbitaria, em melhor estado
de conservação, ainda assim não attinge a sutura fronto-malar
externa nem o dacryon, apenas permitte poder avaliar-se, por
approximação, em 0m,036 o seu diâmetro transversal. Pode, po-
rém, determinar-se o diâmetro frontal minimo, que mede 0ni,094,
tomado entre os dois pontos mais próximos da crista temporal;
mas como faltam os precisos característicos osteologicos para se
saber se o craneo representa um individuo do sexo masculino ou
feminino, é muito insufficiente esta medida para poder por si só
denunciar uma raça tvpica.
Na hypothese, porém, de que haja pertencido a um individuo
do sexo masculino, corresponderia ao typo Tasmaniano (94,0),
approximadamente ao dos Esquimaus (94,1) e ao dos negros de
Africa (94,2); mas, reunidos os fragmentos maxillares e mandi-
bulares, todos attestam o mais perfeito orthognatismo nos sepul-
tados em Aljezur; a perforação nas cavidades inferiores dos
humeros, a configuração approximadamente platycnemica mani-
festada pela secção transversal praticada sobre os três quintos
superiores das tíbias, e o desgastamento dentário atacando os
próprios incisivos, são característicos de raças brancas, verifica-
dos em cavernas, em dolmens e neutros jazigos do período neo-
lithico.
1 Refere o sr. G. de Mortillet, que na collccção de craneos de criminosos, que figu-
rou em 1878 em Paris na exposição de seiencias antliropologicas, o sr. Bordier, professor
da escola de anthropologia, observou caracteres assaz similhantes aos da raça de Nean-
dcrtlial, sendo em todos constante o grande desenvolvimento das arcadas supraci liares;
o que o levou a considerar essa raça como dominada pela violência e ferocidade do
caracter. Se assim é, os sepultados no deposito de Aljezur seriam representantes da
mesma raça, porque em todos os fragmentos de arcadas supraciliares é igualmente
constante a proeminência, a partir do ponto nazal.
Felizmente, quando estive em Aljezur, ou já não havia gente de tal raça, ou a ci-
vilisação local tinha conseguido disfarçal-a; pois a todos os indivíduos fiquei devedor
de mui attencioso recebimento. Entretanto, não me occorreu n'aquclla occasião inve-
stigar se também haveria o mesmo característico de ferocidade nos que esmagaram os
cinco craneos do deposito
151
O estado dos outros ossos nfio pcrmitte estudo algum pro-
veitoso, a meu ver: entretanto estão colligidos muitíssimos para
a seu tempo se poderem offerecer ao exame das pessoas compe*-
tentes. Todas as duvidas, emfim, teriam cessado, se não tivessem
sido barbaramente destruídos os cinco craneos, que em plena
sociedade mortuária, guarneciam um dos hemicyclos da estação
de Aljezur, singularissima construcção que constitue um estylo
único.
Paleointologia animal. — É pobríssimo este grupo. No depo-
sito apenas appareceram alguns dentes de um individuo do gé-
nero Equm, que, comtudo, podem ter sido alli introduzidos com
os entulhos, mais dois pequenos dentes cuneiformes, sendo um
d'elles serrilhado nas extremidades lateraes, os quaes represento
na estampa D, sob os n.os 15 e 16, e alguns de Carcharodon me-
galodon, reunidos ao empilhamento dos machados de pedra, que
já indiquei ter exlrahido do logar que na estampa A vae mar-
cado com a letra a. Estes últimos foram sem duvida intencional-
mente alli depositados. Na referida estampa D, sob os n.os 17 e
18 figuro os maiores.
Estes dentes do grande squaloide extincto perderam quasi
completamente o revestimento rijissimo do seu natural esmalte e
com elle a fina denticulação, que guarnecia todo o perímetro dos
bordos lateraes até o vértice ; o que parece resultante de uma
decomposição, que se operou em ramificações tenuíssimas, simi-
lhando o caprichoso lavor das infiltrações dendriticas.
Julgo terem sido aquelles dentes empregados como instru-
mentos de trabalho. Poderiam ter servido de serras para corta-
rem ossos, e de excellentes polidores para artefactos da mesma
substancia; pois ha algumas pedras duras que não lhes riscam
o esmalte. E o próprio estado em que os achei, que me permitte
attribuir-lhes aquellas applicações.
O que na planta D vae indicado com o n.° 17 perdeu com-'
pletamente todos os vestígios da denticulação pela acção da ser-
ragem, assim como suecedeu ao do n.° 18, que ainda foi apro-
152
veilado para polidor, sendo-lhe excavados uns enlalhos lateraes
para mor segurança dos dedos.
Verifica-se um tanto melhor esta applicação noutros exem-
plares não desenhados, pertencentes á collecção, em que o es-
malte da face convexa mostra ter sido gasto na espessura, com-
quanto não se lhe descubram estrias, como certamente não
poderiam produzil-as quaesquer artefactos de osso que fossem
lustrados por um tão resistente polidor. O dente lateralmente
serrilhado '(fig. 16) não tem o mínimo indicio de trabalho, mas
é de crer que estivesse reservado para servir de serra l.
Não foi somente a estação de Aljezur que forneceu dentes
de Carcharodon, os dois mais perfeitos, ambos com signaes de
trabalho, que achei nos dolmens cobertos, foram extrahidos do
monumento da Marcella, como adiante se verá.
Não posso estabelecer como principio genérico, que foram
os dentes serrilhados de Carcharodon, que suscitaram a idéa de
transformar laminas e facas de silex em instrumentos de serra-
gem, porque algumas regiões haverá em que laes dentes não
existam e em que comtudo sejam frequentes as serras de silex.
Entretanto, em referencia ao deposito de Aljezur, dá-se um caso
assaz singular, permittindo suppor-se que as serras de silex mais
perfeitas tiveram por modelo as arestas do possante dente de
Carcharodon. Na estampa B, a fig. n.° 7 representa a dupla serra
mais perfeita que tenho visto. O seu denteado fino e regular imita
perfeitamente o do referido dente.
1 São fosseis todos os dentes figurados na estampa D, sob os n.os 15 a 18.
0 dente n.° 15 é do género Galeus, o n.° 16 do género Hemiprislis (talvez do Ilemi-
prislis serra, Agass.) e os de n.0s 17 e 18, comquanto á primeira vista pareçam do género
Carcharias, é preciso advertir que perderam a sua máxima largura natural e a serri-
lha lateral, de que comtudo conservam algum vestígio, poderão mais provavelmente
ser do género Carcharodon. Os que, sem duvida, representam o grande squaloide ter-
ciário Carcharodon megalodon! Agass., são os dois que descobri no dolmen coberto do
sitio da Nora, pertencentes ao museu do Algarve, onde actualmente jazem escondidos
com o próprio museu. Este assumpto, porém, pôde ser mais de espaço verificado, con-
frontando-se os ditos dentes com as estampas da grande obra de Luiz Agassiz, Recher-
ches sur les poissons fossiles (1833 1843), tomo m, pag. 247 e 304, e o Alias, para o gé-
nero Hemiprislis, tabeliã 27, fig. 18 a 30; para o género Galeus, tabeliã E, n.° 5; para
o género .Carcharias, tabeliã 30, fig. 3 a 7, c para o género Carcharodon. tomo m-
pag. 247, e Alias, tabeliã 28.
153
Todas as pessoas, que por curiosidade tiverem colligido
dentes de Carcharodon em bom estado de conservação, podem
experimentar a poderosa acção de que são susceptíveis, appli-»
cando-os, como serras, ao osso, ao marfim c até mesmo a pe-
dras, que não sejam de excessiva dureza. Fiz eu a experiência,
serrando com um d'esses dentes uma lamina de mármore granu-
lar branco ; notei que com difficuldade se faria assignalar num
dente de javali, e que não chega a riscar o rijíssimo porphyro
verde antigo.
Poderiam pois aquelles dentes ser procurados nos terrenos
terciários marinos, que affloram na margem direita do rio de Al-
jezur no contacto do carbonífero inferior e do terciário lacustre
superior, ou mesmo nas manchas do terciário marino ao sul do
castello, na margem opposta, mas com maior probabilidade se-
riam achados na próxima caverna da Sinceira, em que foram vis-
tos e colligidos alguns pelo sr. Costa Serrão; e porque não seria
fácil talvez acharem-se com a precisa abundância para a serra-
gem dos ossos, a que o homem neolithico dava diversos aprovei-
tamentos, á imitação do poderoso denteado que os guarnece,
transformaria elle em serras utilíssimas, por meio de contínuos e
certeiros choques de percussão, ou talvez antes pela acção da
pressão, algumas laminas e facas de silex, como eu mesmo ainda
achei no deposito mortuário, além das que o sr. Serrão me tinha
remettido, as quaes indico na estampa B, sob n.08 2 a 11, e com
muita particularidade a de n.° 7, acima indicada.
Ainda é possível que a taes dentes, achados na estação de
Aljezur e no dohnen coberto da Nora, se ligasse algum precon-
ceito de virtude maravilhosa; pois ha indivíduos que ainda actual-
mente os guardam como preservativo contra certas doenças, so-
bretudo quando a mais lamentável enfermidade de taes supersti-
ciosos reside no entendimento.
Como exemplo de ossos serrados figuro na estampa D, com
os n.os 1 a 3, umas cabeças de alfinetes de osso, que serviriam
de ornato e para prenderem os cabellos, ao que parece mui bem
cuidados das mulheres, já então iniciadas nos segredos da galan-
teria e da scducção. Aproveitando -se ossos medullares delgados
para serem atravessados pelos espigões, tiveram de ser serrados.
O de n.° 2 era, porém, um alfinete solido, de uma só peça, cuja
cabeça mostra ter tido um sulco em espiral, produzido pela ser-
ragem.
Às diversas aspirações a que o homem neolithico inclinava o
seu espirito e as aptidões já mui desenvolvidas com que implan-
tou uma civilisação, que ficou sendo tão característica, que não
pode confundir-se com o apoucado modo de existir dos que o
precederam nos tempos geológicos, obrigaram-n'o a prover-se de
instrumentos de trabalho. Conheceu elle todas as formas dos
quatro grupos quaternários, parecendo ter também conhecido as
que se dão como typicas do mioceno inferior do Thenay, do mio-
ceno superior do Cantai e do post-mioceno e plioceno do valle
do Tejo; pois todas essas formas, mais ou menos modificadas,
se acham no inventario geral da sua industria manufactora da
pedra lascada e polida, tanto mais querendo-se procurar nas es-
pessas camadas de lascas de pedra, que cobrem o pavimento de
alguns depósitos mortuários.
Se o systema de ordenação que estabeleci para os caracte-
rísticos neolithicos não me obrigasse a collocal-os num rigoroso
seguimento geographico, fácil seria, embora com algumas lacu-
nas, compor a serie geral das formas mais typicas nos tempos
geológicos, recorrendo apenas aos objectos por mim colligidos
no Algarve.
A forma triangular de algumas lascas de silex terciário do
Moustier e das margens da grande bacia lacustre do Tejo, acha-se
em calhaus rolados nas proximidades de ribeiras e até com ân-
gulos muito bem definidos em terrenos enxutos; e tão conhecida
era essa forma nos tempos neolithicos, que mui copiosamente foi
adoptada em diversos instrumentos, em amuletos e até na gra-
vura das placas de schisto, a que já me referi, e de que em seu
logar tratarei mais especialmente.
A forma amygdaloide do instrumento lypico de silex lascado
Ki5
da primeira epocha quaternária, achado nas alluviôes de Sainl-
Acheul, e reproduzida na estação de Moustier, pertencente á se-
gunda epocha, acha-se em vários instrumentos polidos de pedra-
da minha collecção depositada no museu do Algarve.
Cito um do serro do Haver, freguezia de Bensafrim (es-
tampa iv, n.° 1), outro do monte de Roma, perto de Silves (es-
tampa xiii, n.° 3) e três de rocha quartzosa da estação da Torre
dos Frades, perto de Cacella (estampa xxm, n.° 2).
Na terceira epocha quaternária, caracterisada pela industria
da estação de Solutré, é typico um instrumento pontagudo de si-
lex, da íorma de cutelo, rematado inferiormente em cabo para
poder ser empunhado. O sr. de Mortillet figura alguns d'estes
instrumentos no seu Musée Prèliistorique. Com maiores dimensões,
porém não terminada em ponta, apparece esta forma em muitos
calhaus de ribeira, pela maior parte não preparados, mas inten-
cionalmente colligidos, porque alguns, já com o cabo mui bem
lavrado a choques de percussão, foram com elles achados no dal-
men coberto de Alcalá e noutros logares.
Muitos objectos, emfim, da ultima epocha quaternária, taes
como laminas cortantes, buris, graes de pedra para moagem de
tintas, pingentes perforados, e ainda outros, appareceram exem-
plificados nos dolmens cobertos neolithicos do Algarve, como
adiante se verá.
Por isso, pois, repito, que, para serem preparados tão diver-
sos artefactos, era mister haver apropriados instrumentos para o
trabalho, mas primeiro que tudo matéria prima para serem ma-
nufacturados.
Rochas utilisadas. — A principal substancia, de que care-
cia a industria neolithica, era a pedra. Não faltava esta riqueza
em parte alguma. No Algarve muitas rochas são representadas
por variadíssimos artefactos, que em grande numero julgo terem
sido fabricados nos logares da sua manifestação. Ha porém mui-
tos, que, estando totalmente revestidos de patina, não podem ser
classificados, e outros, cuja classificação por simples inspecção
156
não é fácil afiançar. Por estas circumstaneias tenho de omitlir a
designação de muitas rochas, preferindo não conhecel-as a ter
de praticar destruições parciaes nos instrumentos para se pode-
rem determinar sob o ponto de vista mineralógico. Não posso
portanto affirmar que todos pertençam a rochas existentes no
Algarve. Alguns haverá mui provavelmente recebidos por impor-
tação de outras regiões, como com algum fundamento devo pre-
sumir.
O silex, sobre diversos aspectos, conforme os jazigos geoló-
gicos e condições da sua proveniência, disseminou-se em toda
esta província com muitos e bellos artefactos produzidos pela
percussão; taes são as facas, com preciosos exemplares, as lami-
nas cortantes, as serras, e umas lascas pontagudas, que pode-
riam ter servido de furadores e buris. São numerosas as pontas
de frecha e mui variadas as suas formas, havendo entre ellas ty-
pos capituladamente únicos. Do mesmo modo são um tanto exce-
pcionaes as pontas triangulares de lanças, que descobri em di-
versas estações; pois não ha noticia d'ellas noutros paizes. Ha
também vários núcleos, achados com os instrumentos. Machados,
picaretes e punhaes não têem por emquanto apparecido.
A calcedonia parece ser tão rara no Algarve, que só uma pe-
quena faca d'esta substancia siliciosa achei no dolmen coberto de
Alcalá.
O quartzo e quartzite apparecem com frequência nos depósi-
tos mortuários. Do quartzo crystallino e do opaco ha núcleos e
bellas pontas de frecha, como fragmentos de facas. De quartzo
ferruginoso l obtive em Castro Marim um perfeito machado todo
polido. De quartzite1 tenho na minha nova collecção um machado
que obtive em Monte Canellas, na freguezia da Mexilhoeira
Grande. Obtive também em Sellanitos, concelho de Villa do Bis-
po, um machado polido de quartzite com manchas dendriticas
de manganez l.
O cryslal de rocha foi mui cuidadosamente procurado e utili-
Verificados pelo sr. xVlfredo Bensaude, exímio mincralogista,
157
sado. Em algumas estações acliam-se os cryslaes sem trabalho,
mas as de Aljezur, da Nora e da Marcella forneceram excellenles
núcleos, sendo mais notável os da Nora pela sua grandeza e pela
particularidade assaz graciosa de se terem consolidado sobre uma
crystallisaçFio de rútilo do systema prismático, á feição de feixes
de agulhas. Os núcleos d'estas estações produziram muitas la-
minas de afilado corte.
Os schistos forneceram numerosíssimos artefactos; machados,
enxós, escopros, ponteiros, brunidores, trituradores, pilões e pla-
cas. Os mais importantes são de schisio amphibolico, e acham-se
em toda a província. Em Alportel, ao norte de S. Braz, desco-
briu-se um famoso polidor de schisto crystallino aphanitico l ; em
Pego de Boi, a 3 kilometros de Loulé, achou João Nunes de Fa-
ria, em sepultura, na quinta do Váo, um pequeno machado de
schisto dioritico *, já depois de estar prompta a carta prehistorica,
e por isso não vae n'ella indicado o dito logar. Do sitio da Gasga,
freguezia da Mexilhoeira Grande, remetteu-me o distincto prior
Nunes da Gloria uma perfeita goiva de schisto actinolithico apha-
nitico i, e na Torre dos Frades, perto de Cacella, me foi offerecido
um machado de schisto talcoso. De schsito ardosiano ha numerosas
placas com gravuras geométricas.
A amphibolite é representada por uma goiva, que o rev.d0 Nu-
nes da Gloria achou no sitio da Cavoada, contiguo á aldeia da
Mexilhoeira Grande, e juntou aos muitos instrumentos de pedra
com que engrandeceu as minhas collecções.
A lydite contribuiu com um excellente machado2 em Aljezur,
e uma perfeitíssima enxó toda polida e lustrada, descoberta no
sitio das Vendas Novas, entre Tavira e Villa Real, existente na
minha collecção não depositada no museu.
A fibrolite deu três instrumentos á collecção geral, um ma-
chado do sitio do Quintão, concelho de Lagoa, outro mui perfeito
1 Verificados pelo sr. Alfredo Bensíiude.
2 Foi o sr. Nery Delgado quem reconheceu ser de lydite o dito machado. Eu não
conheci a rocha.
158
achado cm Cacella, c uma pequenina enxó descoberta em Va-
queiros, cujas dimensões persuadem, que apenas leria sido obje-
cto de consagração funerária.
De basalto ha vários instrumentos, principalmente percutores,
assim como de diorites de grande rijeza.
De serpentina ha uma enxó e uma conta, provenientes do dol-
men coberto de Alcalá, e um polidor da forma de machado, que
o sr. Teixeira de Aragão obteve ha muitos annos na quinta das
Antas, perto de Tavira.
A foyaite, rocha eruptiva de Monchique, foi muito aprovei-
tada para desgastadores, mós e pilões de moagem. Ha muitos
exemplares nas minhas collecções.
Para pedras de moagem aproveitou-se também o calcareo
conchilifero e um grés quartzoso.
De grés fino e grés vermelho ha vários instrumentos; de rocha
feldspathica appareceu em Alvor um pingente polido e perforado
numa extremidade, pertencente á minha collecção; de steatite
recebi da estação de Aljezur uma grande conta quasi cylindrica;
de aragonite appareceram muitos discos delgados, circulares e
furados no centro, parecendo marcas de osso, e de uma substan-
cia verdosa, que os archeologos têem denominado calaite, desco-
bri muitas contas furadas por pontas de silex, subslancia a que
o sr. A. Bensaude dá o nome de ribeirite, por terem taes contas
sido achadas por Carlos Ribeiro no dolmen de Montabrão, as
quaes descreveu na sua memoria publicada em 1880 (pag. 53),
intitulada Noticia de algumas estações e monumentos prehisto-
ricos.
Além de muitas outras rochas, que poderia citar como tendo
sido utilisadas para a fabricação de vários artefactos, indicarei
o cinabrio, que achei no dolmen coberto da Marcella, acompa-
nhado da hematite vermelha, e a limonite, que descobri na es-
tação da Torre dos Frades, como para mostrar que estas sub-
stancias mineraes eram intencionalmente colligidas para serem
raspadas, trituradas e moidas para se prepararem tintas.
Não faltou portanto matéria prima para acudir a todas as
159
necessidades da mais íypica industria neolithica. As seguintes
estampas mostrarão os productos que caracterisam a zona do
Algarve.
Instrumentos c utensílios de trabalho
Percutores. — Todos os instrumentos destacados dos seus
núcleos foram preparados por choques de percussão. Consequen-
temente, para se poderem applicar aos núcleos esses choques
intencionaes, deve ter havido apropriados instrumentos. Houve-os
com effeito, e os mais antigos parece terem sido simplices ca-
lhaus rolados, de praia ou ribeira, de rija consistência, como são
os de silex, de quartzo, e de diversas rochas eruptivas, princi-
palmente.
Mas para se empregarem choques regulares e certeiros, não
podiam servir calhaus rolados; era mister havel-os com arestas
e ângulos salientes, e assim foram talhados. Os ângulos, porém,
com a continuidade do trabalho, foram-se abatendo, a ponto de
ficarem reduzidos os instrumentos a uma forma approximada-
mente espheroidal, e portanto sem préstimo algum. N'este caso
tinham de ser rejeitados e substituídos.
Eis-aqui, talvez, o principal motivo por que se encontram
avulso e com frequência, em certos logares, muitos d'esses es-
pheroides, que ainda ha poucos annos eram considerados como
armas de arremeço. Ora, os calhaus rejeitados, tendo servido de
percutirem outras pedras, conservam superficialmente uma cri-
vagem mais ou menos áspera, proveniente da perda de pequenas
lascas, que as pedras percutidas lhes fizeram saltar.
E este o seu principal característico, e só deixa de ser geral
nos percutores que foram primeiramente machados, os quaes
logo cá primeira vista se reconhecem por conservarem quasi sem-
pre uma zona totalmente polida. O percutor, em sumiria, era pre-
parador fundamental da maioria dos instrumentos, o primordial
e famoso instrumento de trabalho.
São numerosos, de diversas rochas e de varias formas, os
percutores que colligi nas estações neolithicas do Algarve. Tenho
160
muitos depositados no museu * e outros pertencem á ultima col-
lecção que organisei. Nem todos podem ser figurados em estam-
pas e descriptos n'este livro. O leitor não me perdoaria que de
tal arte abusasse da sua benevolência. Alguns, porém, descreve-
rei, e registro desde já um, que existia na estação de Aljezur.
E um denso calhau lenticular do grupo dioritico, cujos lados
convexos, parcialmente rolados, limitam-lhe a espessura de 0m,039
a 0m,045, formando duas ásperas facetas decrescentes, que um
grosso bordo terminal impede de convergirem. Mede de altura
0m,069 e de largura 0m,082< Pertenceu, portanto, a um dos indi-
víduos, que tiveram honrada sepultura n'aquella mansão mor-
tuária.
Referindo-me ainda aos percutores espheroidaes, que a gente
do campo acha algumas vezes envoltos na terra, corre a tradição
de serem as pedras com que os mouros se defendiam do alto das
ameias dos seus castellos quando eram acommettidos. Em Fran-
ça, segundo parece, deve haver uma lenda similhante, pois ainda
ha poucos annos o sábio De Caumont considerava estes instru-
mentos como tendo sido pi erres de fronde.
Finalmente, fallando de pedras espheroidaes, vem um tanto
a propósito noticiar também o appareci mento de umas espheras
de pedra, que têem sido observadas em alguns depósitos neoli-
thicos. Estas espheras, pela maior parte de calcareo, e geral-
mente de superfície mui lisa, variam de grandeza desde 3 até
30 centímetros de diâmetro.
A brandura da rocha e a grandeza das maiores repellem a
idéa de que tivessem sido instrumentos de trabalho, ao passo que
1 Se uma força superior me impedir de reorganisar o museu do Algarve, grande
perigo correm os percutores de serem considerados como inúteis calhaus de ribeira e
assim condemnados, com outros objectos não melhor conhecidos, ao desprezo dos sá-
bios, que projectam ha muitos annos reunir e misturar tudo que é antigo, para funda-
rem um museu nacional, que absorva, embrulhe e desfigure nos seus enredados laby-
rinthos o museu do Algarve, para d'este modo m'o poderem dolosamente usurpar,
conspurcando-lhe toda a feição local e destituindo-o de toda a significação, que só o
seu conjuncto pode manifestar aos que formam alguma idéa do que deve ser um mu-
seu archeologico.
10 1
as menores deixam presumir, que poderiam ler servido n'um qual-
quer jogo. Tenho algumas d'estas espheras. No dolmen coberto
de Alcalá achei uma de grande peso e de volume não inferior
áquella, mui conhecida, existente no museu Maynense, com que
o capitão mor de Faro costumava recrear-se nos seus momentos de
ócio, e por isso a de Alcalá poderia ter servido para brinquedo dos
construetores do monumento, em que ha monolithos de 2m,30 de
altura sobre lm,60 de largura, e ossos que aceusam extraordiná-
ria força muscular, mui similhantes aos da gruta de Cro-Magnon.
Não insisto, porém, n'esta mui vaga e pouco verosímil con-
jectura, que só de passagem se pode emittir; pois a forma es-
pherica poderia ter tido uma significação symbolica; poderia re-
presentar uma idéa, uma concepção supersticiosa, o simulacro
de um culto; e não ouso suppor que alludiria á forma do globo,
por não poder attribuir aos homens da ultima idade da pedra o
conhecimento, que não podiam ter, da configuração da terra. Po-
deria comtudo representar outro astro, talvez a lua, que mui cla-
ramente apparece esculpida nuns cones de calcareo branco, que
Carlos Ribeiro achou numa estação prehistorica em Cintra, no
sitio do Monge, a que dá o nome de massas ou clavas (salvo se-
ja!), e que estavam associados a uns cylindros do mesmo calca-
reo, cuja significação, completamente desconhecida, não ouso
aventurar ao tirocínio conjectural.
Não posso, pois, attribuir ás espheras, aos cones e cylindros
a que me refiro applicação alguma de trabalho, porque nem os
objectos dão mostras de uso, nem a isso se prestaria a natureza
da pedra, que me parece ser um calcareo branco marmóreo de
granulação um tanto crystallina.
Núcleos. — Com esta nomenclatura íeem sido grupados uns
certos fragmentos de rochas duras, principalmente de silex, de
quartzo, de crystal de rocha, que apresentam uma superfície lon-
gitudinalmente sulcada em um ou mais pontos, mostrando terem
fornecido tantas laminas cortantes quantos são os sulcos, pela
applicação de choques de percutor,
li
162
Variam de forma c grandeza, se a região em que se acham
é mais ou menos abundante de rochas apropriadas á manufactura
de laminas cortantes, de facas e ponteiros, ou furadores. Na Hun-
gria e na Grécia, onde abunda a obsidiaria, o maior numero de
núcleos é destacado d'essa rocha vitrosa, cujas lascas não são
menos afiladas de corte, que as do crystal de rocha.
O deposito de Aljezur manifestou um pequeno núcleo de si-
lex. donde saíram muitas lascas cortantes, e os dois de crvslal
de rocha, figurados na estampa D, sob os n.os 14 e 15. O pri-
meiro crystal forneceu quatro estreitas laminas cortantes e passou
a ser objecto de ornato, sendo na base betumado numa peça es-
tranha em que haveria algum orifício para se trazer suspenso, ou
n'um cabo para se empregar como instrumento cortante na extre-
midade lascada. O outro apenas forneceu três lascas e não con-
serva indícios de haver sido encabado.
Não se tem por emquanto descoberto em Aljezur estação al-
guma de trabalho, ou logar de officina, em que se tivessem fa-
bricado instrumentos de pedra, e por isso os núcleos são pouco
numerosos; entretanto, dão sufficiente presumpção de que alli
mesmo havia artífices que sabiam preparal-os.
Facas. —A estampa B, fig. 1, 2 e 3, representa os dois
principaes typos de facas de silex da estação tumulus de Aljezur.
As facas mais typicas são geralmente estreitas e de vários
comprimentos, tendo uma face lisa e um tanto curva, em razão
da fractura conchoidal, própria da natureza da rocha, e outra
opposta com uma ou duas arestas longitudinaes, dividindo-a em
dois ou três planos.
As fig. n.os 1 e 2 indicam as que toem a face superior divi-
dida em três planos, e as fig. n.os 3 e 11 as que apenas têem
dois, formando a secção transversal d'estas um prisma e a d'aquel-
las um prisma troncado. A faca de silex propriamente dita,
assim como a de quartzo, de obsidiana, ou de calcedonia, tem
gumes cortantes lateraes, afilados e sem retoques. Quando as
arestas do corte mostram algumas cavidades distribuídas com
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irregularidade, devem considcrar-se como estragos provenientes
do uso; se porem as cavidades tomam um aspecto regular e se-
guido, ou apenas occnpam uma parte da aresta, a faca foi inten-
cionalmente retocada para produzir denticularão c servir de
serra.
A faca n.° 1 mostra pequenos estragos no corte e mede
0m,230 de comprimento sobre 0m,025 de largura máxima. A de
n.° 2 também tem ligeiros estragos nas arestas, mas inferior-
mente mostra uma parte denticulada. É um bom exemplar com
0m,204 de comprimento e 0m,019 de largura, tomada junto aos
denticulos. Além d'estas, tenho outras muitas e excellentes facas
da mesma estação, que reservo para apresentar, se o museu che-
gar a ser reorganisado, como já devera estar.
Laminas cortantes. — Sob esta epigraphe incluo as laminas
destacadas dos planos em que ficou dividida a face superior das
facas no acto de ser percutido o núcleo; os fragmentos de facas
que ficaram com um gume cortante, e todas as lascas extrahidas
de núcleos de rochas duras, quer tenham uma ou mais arestas
afiladas, mas que se reconheça haverem sido assim talhadas in-
tencionalmente c mostrem algum característico de aulhenticidade
que as livre de se confundirem com lascas accidenlalmente pro-
duzidas, ou preparadas por contrafacção.
A estampa C, sob o n.° 5, figura uma lamina cortante, que
visivelmente é fragmento de faca, das que toem a face superior
dividida em três planos, destacado por uma fractura diagonal,
ficando assim com um só corte.
Sendo estes instrumentos mui vulgares cm diversas estacões
neolithicas, a sua forma suscitou a alguns archeologos a idéa de
que tivessem sido usados como frechas de corte transversal Esta
forma tem, porém, muitas variantes, que podem ser separadas,
posto que um tanto arbitrariamente, em dois grupos distinctos,
ficando um representando as laminas cortantes e o outro as fre-
chas de corte horisontal.
Tanto uns como outros instrumentos parece, com effeito, te-
104
rem tido muito uso. As laminas cortantes dariam poderoso auxilio
ás facas de silex, cortando com mais firmeza uns certos objectos,
que poriam as facas em risco de se fracturarem, e mais especial-
mente seriam empregadas no corte das pelles dos animaes, se-
parando cordões e correias para diversas applicações; para ta-
lharem os primitivos vestuários de pelles, que a arte do tecelão,
embora já adiantada, não podia ainda completamente supprir, e
para outros muitos misteres de uso quotidiano. Adiante direi o
que julgo relativamente ás frechas de corte transversal.
Entretanto, considero a referida fig. n.° 5 da estampa C
como representando uma simples lamina cortante das mais typi-
cas, de que se servira a gente que ficou sepultada na estação tu-
mular de Aljezur. Muitas mais, que podem ser incluídas neste
grupo, forneceram outras estações, e por isso se prjde dizer, que
estes utilissimos instrumentos tiveram uso geral em todo este
tracto territorial, que serve de limite sul-occidentel ao continente
europeu.
Serras de silex. — A serra de silex é um instrumento de
trabalho, denteado por acção da pressão, ou por contínuos cho-
ques de percutor anguloso, applicados ás arestas cortantes de
uma lamina ou de uma faca. Ha laminas e facas denteadas numa
só aresta, produzindo a simples serra, e outras denteadas em
duas arestas, dando em resultado uma dupla serra.
Este instrumento, segundo julgo, não surgiu de uma inven-
ção original, mas de um caso fortuito, que necessariamente seria
frequente. A acção do trabalho devia produzir nos gumes das
laminas e das facas repetidas mossas, mais ou menos próximas
umas das outras, e querendo-se assim mesmo empregar os gu-
mes, facilmente se reconheceria o resultado da serragem. Este
conhecimento pratico levaria naturalmente o operador a regulari-
sar aquelle género de corte denteado, abrindo novos sulcos nas
arestas obliteradas, do mesmo modo que para cortar saberia es-
colher o gume mais afilado, e entendendo que os gumes dentea-
dos podiam exercer uma acção mais expedita e vigorosa, a nc-
165
cessidade o obrigaria a transformar cm serras as laminas c facas
cujos cortes já não podiam servir.
As facas n.os 1 e 2, representadas na estampa B, exemplifi-
cam os estragos parciaes que soffreram os seus gumes cortantes,
e as de n.os 3, 6, 8 c 11 mostram de um modo incontestável
terem as suas arestas sido retocadas por um instrumento con-
tundente, que lhes produziu a forte ondulação, assaz visivel,
que era suficiente para poderem cortar a madeira e o osso sem
grande dificuldade. As fig. 9 e 10 são fragmentos, ou antes du-
plas serras de pequenas dimensões, e a fig. 5 ó um fragmento
de faca, similhante ao de n.° C da estampa C, que indico com a
mesma forma das frechas de corte transversal, para mostrar que
foi mui intencionalmente preparada em três lados para exercer
acção de serragem, e que por isso repelle qualquer outra pre-
sumptiva applicação.
Já me referi ao facto de terem sido achados na estação de
Aljezur uns dentes fosseis de Carcharodon, estando alguns, que
represento na estampa D, com a serrilha do bordo inteiramente
obliterada pela acção da serragem, e também já me referi á du-
pla serra n.° 7, figurada na estampa B. A denticulação regular,
uniforme e perfeitíssima d'esta interessante serra, só se acha
idêntica nos dentes de Carcharodon em melhor estado de conser-
vação, que provadamente estiveram á vista do engenhoso imita-
dor. Compare-se esta serra com um d'esses dentes, que só assim
se perceberá que lhe serviram de modelo.
As serras, em razão da continuidade do trabalho, não podiam
deixar de perder a sua primeira denticulação, e por isso algumas
foram retocadas muitas vezes até o ponto de ficarem inutilisadas,
attingindo demasiada espessura, e estreitando proporcionalmente.
Assim achei muitas que conservo nas minhas collecções, tanto
nas que depositei no museu, como na ultima que organisei e re-
servo em meu poder, esperando a possibilidade de reorganisar o
dito museu com toda a amplitude que lhe podem dar os meus
últimos descobrimentos.
Até ha pouco tempo não eram nomeados estes instrumentos.
100
Julgava-se que seriam facas obliteradas, e por isso com ellas
eram indifferentemente misturados. E pois mister que constituam
hoje um grupo especial e independente, porque já não pode
haver confusão entre a faca e a serra.
A serra é portanto um instrumento de trabalho muito mais
antigo do que os actuacs mestres serradores terão julgado. Ha
pois muitas dezenas de séculos, que a serra teve ingresso na of-
íicina do artífice.
Furador. — O furador é um instrumento, geralmente de silex
lascado, mais ou menos longo e espesso, terminado em ponta.
Servia para abrir orifícios em pedra e noutras substancias, e
também de buril, se era mister applicar-se á gravura. O homem
paleolithico dos últimos tempos geológicos foi o operário que
mais habilmente manejou o furador, abrindo orifícios em pedra,
em cryslaes, em conchas, em vértebras de peixes, em osso e em
dentes caninos de lobo, de leão, de rapoza, de lince, de urso,
de veado e de boi, e quem melhor também o empregou como
buril, gravando em pedra, e mais especialmente em ossos de
rangifer (Cervus tarandus), os animaes mais typicos da fauna do
seu tempo, assim como varias espécies da flora então existente.
A agulha de osso, admiravelmente bem feita, é um dos productos
artísticos d'aquella epocha.
O homem neolithico, separado dos tempos geológicos por
uma epocha de transição immensamente duradoura, também nos
seus mui variados trabalhos empregou o furador e o buril, abrindo
orifícios em pedra, em osso, em âmbar e gravando tanto em pe-
dra e em osso, como em louça.
Algumas aguçadas pontas de silex, encontradas na estação
de Aljezur e em mais algumas, parece terem tido taes applica-
ções. O maior e mais custoso trabalho de perforação é o que
representam as numerosas contas, que abundam em algumas esta-
ções da ultima idade da pedra, e mesmo alguns pingentes,
167
Desengrossador. — Em nomenclatura archeologica nenliuin
instrumento tem por emquanto recebido esta designação. Recebe-a
porém agora aquelle a que, em meu entender, se tem muito im-
propriamente dado o nome de polidor. O esboço de um artefacto
de pedra, preparado por choques de percussão1, para poder ser
polido ou brunido, tinha primeiramente de perder todas as esca-
brosidades resultantes da acção do percutor, sendo portanto des-
engrossadas e completamente abatidas.
Para se obter este resultado, os esboços eram amolados em
pedras de grés sobre areia molhada até perderem todas as as-
perezas resultantes do lascamento do percutor. Era, pois, pela
acção do attrito, que ficava definida a sua forma c afilado o gume
dos que se destinavam a ser instrumentos cortantes.
Nem todos, porém, eram totalmente subordinados a este
aperfeiçoamento; pois alguns apparecem só parcialmente assim
trabalhados. A operação do desengrossamento era em geral feita
nas próprias rochas de grés, e por isso algumas ainda em vários
paizes são reconhecidas pelas suas cavidades longitudinaes pa-
rallelas ou um tanto divergentes, como tendo sido ulilisadas pelos
fabricantes de instrumentos de pedra.
Além das pedras fixas havia outras moveis, geralmente de
grés, que se distinguem facilmente dos percutores em terem a
sua superfície dividida em planos bastante lisos, as quaes incluo
neste género de desengrossadores. No museu do Algarve algu-
mas de varias formas assim ha, tanto de grés vermelho como de
foyaite. Depois da referida operação, poucos instrumentos de pe-
dra se acham rigorosamente lustrados pelo polidor ou brunidor.
Entre outros citarei uma perfeitíssima enxó de lydite achada no
I sitio das Vendas Novas, perto de Cacella.
No numero, porém, dos desengrossadores citarei aqui um,
que na estação de Aljezur estava associado a um empilhamento
de enxós e machados, que descobri no ponto a, marcado na
planta A. E de grés vermelho, atravessado por uma incrustação
ou veio de quartzo, cuja superfície parcialmente lisa, mostra ter
exercido um attrito intencional, que não pode confundir-se com
168
o poído Ja rolagem. Não foi, pois, empregado como percutor em
razão da sua branda contextura, e porque em parle alguma da
sua superfície se acha picado. Não o figuro em estampa, mas
pode avaliar-se-lhe mentalmente o volume, sabendo-se que os
seus dois maiores diâmetros, cruzando-se, medem 0m,052 e
0R,,053. Como este, appareceram outros em condições similhan-
tes, associados a instrumentos de pedra lascada e polida e a lou-
ças da mais rude fabricação.
Raspador. — Este instrumento, muito vulgar na segunda e na
terceira epocha quaternária, assim como em numerosas estações
neolilhicas, comquanto geralmente pouco se afaste de uma figura
que tivesse sido parcialmente determinada por dois terços de cir-
culo, tem muitas variantes, sendo porém quasi sempre retocada
por ligeiros choques de percutor toda a aresta, que é arqueada
no seu contorno.
No grupo das variantes talvez possam ser incluídas algumas
lascas de pedra, achadas em poucos depósitos mortuários da ul-
tima idade da pedra, explorados n'esia província; mas rigorosa-
mente a forma que passa por ser typica, não a descobri em mo-
numento algum. Poderá ainda achar-se; entretanto, é mister ac-
cusar a sua falta n'esta região, onde também não ha ver vários
instrumentos vulgarissimos noutros paizes.
Os archeologos francezes chamam grattoirs a estes instru-
mentos, attribuindo-lhes assim a idéa de terem sido raspadores;
mas, se eram raspadores, que applicação poderiam ter na limitada
industria da segunda epocha quaternária? Para rasparem outros
artefactos de silex não prestavam e a manufactura do osso, que
só começou a manifestar-se na terceira epocha. ainda não existia.
Serviriam, pois, para prepararem pelles de animaes, para a ser-
ragem e limpeza de algum objecto de madeira, ou para outro
qualquer trabalho hoje desconhecido.
Admittindo, porém, que naquella plena epocha glaciaria, em
que o homem deixou tantos vesúgios de habitação nas caver-
nas, os raspadores tivessem servido para preparar as pelles dos
ICO
animaes, a fim de serem transformadas cm vestuário, primeiro
que tudo ha de entender-se, que tinham de ser capturados, e,
portanto, o homem era caçador; mas os instrumentos de pedra,
que são typicos d'essa epocha, eram os taes raspadores e outros
da forma de pontas de frecha: eram, consequentemente, os úni-
cos, que podiam ser utilisados como armas de arremeço , o que
deixa immediatamente presumir, que o arco já era usado. Falta
simplesmente achar-se a corda para o arco. Das floras fosseis de
Heer e de Schimper, que tantas vezes tenho admirado, não pa-
rece poder deduzir-se. Emfim, para que o supposto arco não
fique desencordoado, poderá presumir-se que as próprias pelles
forneceriam a corda; e concebidas as cousas com toda esta au-
dácia própria de quem tem de recorrer á fértil fonte das conje-
cturas para querer explicar o que não sabe nem deve affirmar,
antes de abandonar o labyrintho das hypotheses, seja-lhe licito
ainda imaginar, que as chamadas pontas mousterianas não seriam
simplesmente instrumentos de mão, mas terríveis e mortíferas
armas penetrantes de arremeço, e que os taes chamados grattoirs
não só raspariam e cortariam as pelles dos animaes mortos, como
a pelle e os músculos dos que fugiam á perseguição do homem,
sendo-lhes apontados ás pernas, para assim ficarem accessiveis
aos golpes de um robusto pau de teixo, de vidoeiro ou de choupo
dos que lhes cubicavam a carne para se alimentarem, os múscu-
los para supprirem as deficiências de uma flora siberiana mal
provida de espécies filamentosas, e as pelles para se cobrirem e
poderem resistir ao rigor dos gelos.
Tudo isto, pois, não passa de ser mui temerariamente engen-
drado nos vastos domínios da imaginação; mas, ainda assim,
voltarei a este assumpto quando pouco adiante descrever as ar-
mas reconhecidamente de arremeço.
Brunidor, polidor ou alisador. — A industria paleoethnolo-
gica mostra numerosas provas do apuro a que chegaram muitos
dos seus produetos de pedra, de osso, marfim e âmbar. A bru-
nidura em certos artefactos não é invenção de modernos artífices,
170
não é descobrimento que preconise o progresso das sociedades
históricas mais adiantadas; não é invento romano, nem ensina-
mento da arte hellenica; é mais antiga que tudo isso, porque
ainda não cabe a honra da sua manifestação aos homens da pri-
meira idade do ferro, aos da idade do bronze, aos da ultima
idade da pedra. Vae mais longe ; ultrapassa as raias dos tempos
actuaes e arvora as provas dos seus primórdios em plenos tem-
pos geológicos! O homem paleolithico não era um homem polido,
certamente, mas já sabia polir. Era o que, similhantemente, di-
zia Horácio a respeito da pedra de amolar, que, não tendo a
virtude de cortar, dá corte ao ferro.
Foi o homem quaternário o inventor do processo de dar lus-
tre á pedra e ao osso. Pode, emfim, dizer-se, que esta invenção
caracterisa a transição dos tempos geológicos para os tempos
actuaes, ou post-quaternarios, e que é, portanto, pre-neolilhica,
tendo por seus typos principaes perfeitas agulhas de osso, ossos
e pedras com admiráveis gravuras, sendo tudo isso geralmente
brunido. Houve, pois, instrumentos destinados a brunirem varias
manufacturas, e não poucos achei em algumas estações neolithi-
cas, uns que deixei depositados no museu, quando o organisei,
e outros que conservo nas collecções, que posteriormente consegui
fazer.
Já inclui no grupo dos desengrossadores o instrumento de
grés vermelho, que existia na estação tumular de Aljezur; citei
igualmente os dentes de Carcharodon, que vão figurados na es-
tampa D, sob os n.os 18 e 19, e ainda me referi a outros da mesma
estação, existentes nas minhas collecções, com evidentes signaes
de terem sido lustradores ou polidores, mui provavelmente de
artefactos de osso, tendo em attenção o lustre fino esem estrias,
com sensível diminuição da espessura do esmalte natural, que
com effeito n'elles se verifica á simples vista. Os dentes de Car-
charodon foram, pois, algumas vezes utilisados, em razão do seu
resistente e fino esmalte, como brunidores ou polidores.
Alguns calhaus de ribeira se acham nas estações mortuárias,
tendo por único indicio de trabalho uma parte da sua superfície
171
mais lustrada do que o resto, e por vezes essa parle lustrada com
ligeiro abatimento, que bem se pode julgar proveniente de um
aturado uso.
Muitos machados de pedras rijas, ou de contextura fina e
compacta, cujo gume cortante parece ter sido primeiramente obli-
terado, foram preparados para brunidores. Em Aljezur nenhum
achei d'este género, mas em seus logares citarei os que colligi,
apontando desde já como exemplo, para se poder observar, mo-
delado no museu, um excellente polidor de serpentina, que o
sr. Teixeira de Aragão obteve na quinta das Antas, perto de Ta-
vira.
Ha lambem polidores ou brunidores que apenas mostram
uma pequena faceia muito lustrada e sem mais signal algum de
trabalho. Tenho um d'este género, muito perfeito, achado pelo
sr. Serrão no deposito mortuário de Aljezur. Tem a forma de
uma enxó de pequeníssimas dimensões. Mede no comprimento
0m,032, na extremidade mais larga em que se formou a faceta
0m,012, não sendo a sua máxima espessura superior a 0m,005.
A faceta, no seu chanfro diagonal, mede apenas 0m,002.
Já se vê, que serviria para brunir artefactos delicados, mui
provavelmente de osso, como poderiam ter sido os alfinetes de
segurar os cabellos, figurados na estampa D, sob os n.os 1 a 3,
e as mui significativas agulhas \ a que já me referi, e que os
srs. G. de Mortillet e Adriano de Mortillet representam com os
n.os 43, 170 a 174 na sua famosa obra intitulada Mtisée préhis-
tôrique, as quaes teem sido achadas em idênticas condições syn-
chronicas em muitas estações da França, da Bélgica, de Inglaterra
e da Hispanha.
1 As agulhas de osso, encontradas em muitas estações palcolithicas dos últimos
tempos quaternários, suscitam vários conceitos, que levam o observador a umas con-
clusões, embora um tanto arriscadas, ainda assim assaz verosimeis.
As agulhas mais delgadas, cujo fundo ou orifício pouco excede 0in,00l de diâ-
metro, persuadem que o fio, com que eram destinadas a coser, devia ter uma gros-
sura proporcional: portanto, seriam para este fim aproveitados só os músculos mais
ténues dos animaes ou algum vegetal filamentoso. Se a flora synchronica na parte que
tem sido magistralmente estudada, não permitte acertar-se com uma espécie, que po-
172
Passarei agora a enumerar c descrever a famofea collecção
geral dos instrumentos de pedra com gume cortante e parcial-
mente polidos, que estavam acompanhando as relíquias humanas
em amonloamentos separados, nos planos inferiores do deposito
de Aljezur.
Os chamados instrumentos polidos de pedra não são privati-
vos de paiz algum; acham-se espalhados e dispersos na maioria
das grandes divisões geographicas do globo; o que prova que o
globo era quasi todo habitado na ultima idade da pedra.
Em toda a parte, salvo raras excepções, apparecem certos
artefactos communs ; alguns ha, porém, que somente se acham
localisados em determinados paizss. Este facto reclama desde já
uma reservada attenção, porque pode no futuro contribuir para
a solução de um problema propriamente ethnographico, propor-
cionando algumas elucidações concernentes á distribuição geo-
graphica dos diversos typos ethnicos, que fortifiquem, modifi-
desse ter fornecido fibras ou filamentos de susceptível preparação para tecidos e costu-
ras, não se segue que não a houvesse; entretanto, não faltavam os músculos dos animaes,
que o homem, já então essencialmente caçador, atacava e abatia para a sua alimentação.
As tiras de pelle mais estreitas, que as laminas de silex podiam cortar, não passariam,
porem, pelo fundo de taes agulhas; seriam porventura aproveitadas na feitura do ves
tuario de pelles, para que bastava haver aguçados ponções de osso, que abrissem ori-
fícios para por elles se fazerem passar, como ainda se vê nas polainas e outras pelles,
.com que os pastores se defendem das asperezas dos matos, e até em varias obras de
correeiro
Tarcce-me, ainda assim, que na ultima phase do decrescimento das geleiras, po-
deria ter surgido uma flora pbancrogamica na grande área da sua completa extineção
nos tempos geológicos, que fornecesse alguma substancia filamentosa, de que se ser-
vissem os engenhosos fabricantes de tão perfeitas agulhas para fazerem algum tecido
destinado ao seu vestuário, e consequentemente filamentos para o poderem coser; pois,
fora d'este presupposto não se concebe que applicação podessem ter tido taes agulhas.
Julgo ao mesmo tempo, que o vestuário de pelles deve ter precedido qualquer
outro, mas que não carecia de agulhas para se ageitar a cada individuo. As estações
preneolithicas abundam em lascas cortantes, em raspadores, em furadores de silex, e
em ponções rijíssimos de osso. Nada, pois, faltava. As agulhas eram desnecessárias para
este género de vestuário, e se os mais ténues músculos, como é provável, não cabiam
em tão apertado orifício, haveria certamente um filamento qualquer que lhe fosse ada-
ptado. 0 que não parece duvidoso é que a continua acção de um clima aspérrimo quasi
polar obrigaria aquelles míseros viventes a munirem-se de um qualquer vestuário. Esta
necessidade deduz-se naturalmente, sabendo-se que a temperatura era então 8 a 10 graus
inferior á da média actual no centro da Europa.
ALJESUR
Est. C
&,H.^ &.d4>o'%
e^tux^'
/■tfhaqraphici da Imprertsa. JVa.Ct.im.a.1.
quem, ou destruam as lheorias e os theoremas, que ahi estão cor-
rendo, com força de lei, nos vastos arraiaes da biologia.
Outro caso, que suscita ao mesmo tempo sérios reparos, sem'
que ninguém o tenha ainda rigorosamente discutido, é appare-
cerem artefactos do mesmo typo em varias regiões da terra, e
todos nas mesmas condições de synchronismo, umas vezes re-
presentando em cada paiz somente as rochas locaes, e outras
vezes manifestando substancias mineralógicas exóticas, perten-
centes a territórios relativamente longínquos. No primeiro caso foi
a forma typica que se transmittiu e no segundo foi o próprio ar-
tefacto; o que, de feito, persuade a existência de algum meio de
transmissão.
No Algarve, os instrumentos de pedra representam na sua
maioria rochas locaes, havendo entre elles alguns de outras ro-
chas não agora verificadas na região. Os que são parcial ou to-
talmente polidos, e em geral com um só gume cortante, consti-
tuem quatro géneros principaes, machado, enxó, escopro e goiva.
Sob a nomenclatura de machado se tem confundido a enxó e
o escopro, que vou separar com a indicação dos seus caracterí-
sticos principaes è ao mesmo tempo figurar na estampa C.
O machado de pedra varia muito de forma e dimensões em
todo o Algarve. A collecção geral, ordenada geographicamente,
é numerosa e muito importante. Em relação a Aljezur divido este
género em dois grupos distinctos.
Machados de pedra. 1.° grupo — Os machados d'este grupo
são porventura os mais regulares e aperfeiçoados. Os caracterí-
sticos principaes, que os distinguem dos outros, são: secção
transversal elliptica e a longitudinal terminada em angulo agudo
de lados curvilíneos; duas facetas oppostas, convergindo e deter-
minando o gume cortante, mais ou menos arqueado; extremidade
inferior approximadamente arredondada ou convexa; desengros-
samento geral pelo attrito ; toda, ou quasi toda a superfície, com
excepção das facetas, manifestando aspecto de crivagem fina ou
grosseira; rochas diversas, predominando em vários logares o
' 174
schisto amphibolico; diíTcrcntcs dimensões, subordinadas ao typo
geral, com variantes cxcepcionaes.
A estampa G, fig. 4, representa um exemplar d^ste grupo,
dos que descobriu e meoffereceu o sr. Cosia Serrão. São oito
os que continha o deposito de Aljezur. O maior mede 0m,136 de
comprimento, 0m,060 de máxima largura e 0m,041 na maior es-
pessura. O que figuro na estampa tem 0ra,090 de comprimento,
0m,48 de máxima largura e 0m,040 de espessura. O menor mede
de comprimento 0m,087, de largura máxima Oin,04(5 e na maior
espessura 0m,035. A escabrosidade superficial d'estes instrumen-
tos deixa perceber, que seria intencionalmente produzida para
com mais segurança adherir ao^encabamento.
2.° grupo. — Secção transversal approximadamente quadran-
gular, resultante de dois planos parallelos junto ás facetas do
gume cortante e de outros dois mais estreitos, oppostos e per-
pendiculares aos primeiros, formando ângulos abatidos; os pla-
nos mais largos total ou parcialmente desengrossados pelo attrito
com gradual decrescimento até convergirem num corte arqueado
e os menos largos geralmente toscos, havendo-os também com-
pletamente polidos; extremidade inferior quasi sempre estreita,
decrescente e mal acabada; espessura robusta. Ha uma variante,
com os quatro ângulos rectos, cuja secção transversal produz um
rectângulo.
Na collecção que o sr. Co^ta Serrão me offereceu, vieram
dezenove excellentes exemplares d'este grupo e na exploração,
que fiz em junho de 1882 ainda achei mais seis. O maior d'estes
machados mede de comprimento 0m,220, na máxima largura
0m,070, na extremidade inferior 0m,029 e na maior espessura
0m,038. O menor tem de comprimento 0m,107, de largura 0m,059
na extremidade inferior 0m,030 e na maior espessura 0m,030.
Além dos que toem os ângulos abatidos ou rectos, ha n'este
grupo outras variantes de fácil reconhecimento, que para fugir a
escusadas prolixidades não descrevo.
175
Enxós de pedra. Esboços. — Os homens, que na ultima idade
da pedra viveram nos campos em que actualmente existe a villa
de Aljezur, na sua singularissima estação-tumidus, deixaram prova
evidente de saberem fabricar instrumentos de pedra. Lá estava
sepultado um com três esboços em via de preparação, que a
morte lhe impediu de concluir. São uns calhaus rolados de schisto
amphibolico, procurados mui provavelmente nas margens do rio,
das ribeiras próximas ou na praia marítima, lascados a choques
de percutor inteiramente numa face e parcialmente na outra.
Todos três ficaram talhados com a forma intencional, assaz perce-
ptível, que o preparador lhes quiz dar. Com mais alguns reto-
ques, o maior ficaria completamente esboçado para poder ser
levado á pedra de amolar.
Quem observar com attenção os typos das enxós de pedra
de Aljezur, sem a minima hesitação reconhecerá logo, que era
um d'esses instrumentos que se pretendia conseguir.
Um dos esboços mostra, porém, a particularidade, que o dis-
tingue dos outros, de ter um cabo ou punho mui bem determi-
nado para se poder segurar com firmeza, e porque na extremi-
dade larga a faceta do corte foi talhada no lado opposto ao con-
vexo, a intenção do artífice foi certamente ensaiar uma nova forma
de enxó de mão, cujas dimensões deviam ficar reduzidas a 0m,157
de comprimento, a 0m,094 na extremidade cortante, a 0m,037
na do cabo, e a uns 0m,015 na menor espessura junto á faceta.
As enxós de pedra, como indica a fig. n.° 1 da estampa C,
não têem cabo ou punho formado na própria pedra; mas devera
tel-o esta, porque está perfeitamente configurado, como também
o achei nos esboços de uns outros instrumentos, que designo com
o nome de cutelos.
Os outros dois esboços, cuja forma está mui bem figurada,
deviam ser ainda mais trabalhados pelo percutor para se pode-
rem desengrossar em pedras de grés; mas, apesar disso, perce-
be-se distinctamente haverem sido talhados para enxós.
N'estes, não ha signal de punho; os bordos laleraes estão
apontados e a superfície rolada mui engenhosamente aproveitada
176
para ser o lado concavo no mais estreito e o convexo no mais
largo, o qual mede 0m,132 de comprimento, 0m,094 de largura
destinada ao gume cortante, 0m,052 na mais estreita e 0m,023
de espessura junto á extremidade larga, em que a faceta do corte
não chegou a ser lascada, ao passo que na opposta parece haver
já um corte esboçado. Finalmente, o mais estreito mede 0m,145
de comprimento, assim como 0m,055 na maior largura, 0m,022
na maior espessura, tomadas estas medidas junto á faceta já las-
cada para o corte.
Não é possível reproduzir em estampas todos os instrumen-
tos, e por isso é mister que appareçam e tenham publica expo-
sição no museu a que pertencem, porque só assim poderão ser
úteis ao estudo. Não se comprehende, pois, que tendo o museu
do Algarve sido instituído para a comprovação da carta archeo-
logica, esteja desde 1881 arrecadado, quando todas as razões
de conveniência publica e scientifica estão aconselhando a sua
reorganisação na cidade de Faro, com os muitos e importantes
descobrimentos realisados nestes últimos annos.
Para se formar approximada idéa da utilidade de tal reorga-
nisação, bastaria tomar-se nota dòs famosos grupos de instru-
mentos achados em Aljezur e noutros muitos logares, para se
reconhecer a falta que fazem no museu. Os que vou descrever
pertencem ás minhas novas collecções, e certamente não os re-
unirei ás que deixei depositadas, emquanto o museu não tiver o
destino que deve ter.
Enxós de pedra. — Para que hei de eu improvisar uma defi-
nição, que distinga o machado da enxó de pedra, se já está feita
por mão de mestre abalisado, que veiu acabar com as confusões
e preconceitos em que laboravam muitos entendimentos, aliás
eminentes, em meio do grande arraial da sciencia moderna? Me-
lhor é reproduzir, que plagiar, e por isso reproduzo aqui a pala-
vra do sr. Gabriel de Morlillet, um dos maiores athletas da sa-
bedoria moderna.
Ás enxós, que até agora ninguém distinguia dos machados,
177
dá o sr. de Morlillet o nome de herminettes, e diz: «Les hermi-
nettes sont três voisines des haches; si voisines qu'on les a sou-
vent confondues ensemble. La hache a les deux faces du tran-
chant tout à fait semblables, dans Fherminette, au contraire, ces
faces sont différentes. Généralement, il y en a une parfaitement
plate, 1'autre éiant plus au moins bombé et courbe. II est pour-
tant une autre variété d'herminette qu'il est important de signa-
ler. Les deux faces sont plates, mais Finférieure est en retrait
sous la supérieure et reliée à elle par un petit plan oblique. Cest
ce qu'on nomme les herminettes à biseau *.
«Les herminettes à face inférieure plate et à dos bombé sont
surtout françaises, suisses et même espagnoles. . .
«Les herminettes à biseau se rencontrent en Portugal. Elles
sont souvent arquées dans leur longueur. Cest pourtant la Fin-
lande qui est leur pays par excellence. De là elles déscendent
dans la Grande-Russie, en se modifiant un peu. Parfois le biseau
du bas n'existe plus, c'est le poli general qui forme le tranchant,
une face de 1'outil étant verticale et 1'autre oblique. Dans le gou-
vernement d'01onetz les herminettes varient entre 33 et 240 mil-
limètres de longueur. »
No Musée préhistorique, planta li, repete o sr. de Mortillet
os característicos, que separam do grupo geral dos machados as
enxós de pedra (herminettes), dizendo: «Les herminettes ou do-
loires ... ont leur tranchant forme par un plan complòtement
plat sur une des faces et un plan bombé sur 1'autre. Les haches
emmanchées ont leur tranchant parallòle au manche, tandis que
les herminettes ont le leur perpendiculaire. »
Na dita planta li, sob o n.° 470, representa o perfil de uma
enxó, que achei no dolmen coberto da Marcella (freguezia de Ca-
cella), de que tirou um esboço no museu do Algarve em 1880.
e descreve-o assim:
Herminette, plaque arquée de diorite, figurée de profil, pour
montrer le Iranchant oblique. Les deux faces sont reclangulaires.
Musée préhistorique, n0'- 4G8 à 473.
12
178
Tumulus de Marcclla, Algarve (Portugal). Récoltes Estacio da
Veiga (Musée delle Belle-Arti, Lisbonne).»
Apurando c resumindo cuidadosamente os característicos dis-
tinctos d'esle género de instrumentos, acha-se: 1.°, o gume cor-
tante, no typo mais geral, tem uma faceta chata, amolada á si-
milhança das enxós de ferro, e a outra mais ou menos arqueada
e curva; 2.°, o gume cortante é produzido por duas facetas cha-
tas, sendo a inferior retrahida em relação á superior, a que se
liga por um pequeno plano obliquo.
Tendo á vista vinte e cinco enxós de pedra da estação-tamu-
hs de Aljezur, parece-me poder dividil-as nos grupos seguintes:
1.° grupo. — Placas de schisto amphibolico de faces mais ou
menos largas e oppostas, approximadamente planas; bordos la-
teraes angulosos, convergindo para a extremidade inferior, geral-
mente estreita; faceta diagonal, amolada á feição das enxós, for-
mões e outros ferros de carpinteiro, tão somente no plano ante-
rior, formando gume cortante arqueado com o plano posterior.
São sensivelmente curvas para o lado da faceta em maior ou
menor grau.
Na minha collecção de Aljezur já havia dez exemplares antes
de descobrir mais quatro na exploração do deposito. O maior
mede 0m,266 de comprimento, na largura do corte 0m,062, na
extremidade estreita 0m,019, de espessura junto á faceia 0m,007
e de espessura máxima 0m,020. O menor tem 0m,003 na faceta
do corte, na largura junto ao corte 0m,049 e na extremidade in-
ferior 0m,025, sendo a sua máxima espessura de 0m,013. O des-
engrossamento na face externa é feito á similhança de faceta
com 0m,034 de largura.
■
Variante do 1 .° grupo. — Placa rolada, com uma face plana
e outra convexa; bordos lateraes abatidos; gume cortante pouco
arqueado, formado por duas estreitas facetas obliquas; sem ou-
tro algum trabalho. Mede 0m,145 de comprimento, 0m,065 de
largura no córle e 0m,50 na extremidade inferior. Sendo de
179
schisto pouco duro, deixa presumir que fosse um simples instru-
mento funerário, cx voto. No gume não ha signal de uso. É assaz
excepcional.
2.° grupo. — As enxós d'este segundo grupo são de forma
curvilínea como as do primeiro; também têem as faces mais ou
menos planas e mais ou menos polidas; differem porém, das ou-
tras em decrescerem gradualmente para a extremidade mais larga
até formarem um gume cortante arqueado sem signal de facetas
obliquas. Na minha collecção de Aljezur ha três exemplares e
achei mais dois na exploração que fiz. O maior tem 0m,262 de
comprimento, 0m,Q14 de largura junto ao corte, 0m,019 na extre-
midade inferior e na sua espessura quasi geralmente 0m,024, ao
passo que nos outros exemplares decresce mui sensivelmente
para as extremidades em razão da curva descripta pela face pos-
terior ser maior do que na anterior. Os outros exemplares não
attingem tão desenvolvidas dimensões.
3.° grupo. — As enxós d'este grupo têem as duas faces quasi
planas, bordos lateraes angulosos ou ligeiramente abatidos e o
gume cortante formado por desengrossamento gradual nos dois
lados, sendo num d'elles um tanto maior que no outro. Ha só
dois exemplares d'este typo na minha collecção. O maior mede
0m,250 de comprimento, 0m,058 de largura junto ao corte, 0ra,04G
na extremidade estreita, e 0m,18 na maior espessura. O menor
tem 0m,142 de comprimento, 0m,036 de largura junto ao corte,
de largura máxima 0m,05G, de espessura 0m,026, e termina em
ponta lascada.
4.° grupo. — Distinguem-se os exemplares d'esle grupo em
formarem uma ellipse na sua secção transversal e por serem con-
vexas as suas duas faces. O maior tem num lado a faceta do
corte um tanto arqueada, e comquanto lhe falte uma grande
lasca no lado contrario, percebe-se que também teve um desen-
grossamento decrescente até á arcadura do gume. O maior mede
180
de comprimento 0m,220, de largura junto ao corte 0m,080, na
extremidade inferior 0m,025, e 0m,023 de espessura. Ha outro
exemplar em que a faceta do gume cortante é pouco assignalada.
Tem este de comprimento 0m,156, de largura Qm,055, na extre-
midade inferior 0m,025 e de espessura 0m,023.
As differenças acima indicadas, que notei haver na collecçâo
geral dos chamados instrumentos polidos de pedra, me levaram
a formar os quatro grupos precedentes e em cada um d'elles a
indicar os característicos que os distinguem.
Ainda ha pouco tempo, todo o instrumento de pedra com um
gume cortante era geralmente denominado machado; não se lhe
dava outra designação; e comtudo é mui provável, que as gran-
des collecções existentes nos museus abundem em géneros di-
versos.
Só a collecçâo de Aljezur fornece quatro géneros n'esta classe
de instrumentos de pedra polida, havendo alguns, como se aca-
bou de ver em relação ao género enxó, que se subdividem em
grupos distinctos, ou sub-generos, o que também suecede com
os machados propriamente ditos, os quaes envolvem differenças
tão sensíveis, que obrigam igualmente a varias subdivisões.
Resta-me descrever o escopro e a goiva.
Escopro. — O escopro, parecendo á primeira vista uma va-
riedade do machado, é todavia um instrumento diverso, que teve,
mui provavelmente, applicações especiaes em certos trabalhos.
Ha o escopro simples e o duplo escopro. Para se ter approximada
idéa do escopro de pedra, bastará conhecerem-se as varias formas
dos escopros de ferro actualmente usados em varias officinas. Figu-
rando na estampa C, sob os n.os 2 e 2' um duplo escopro, formar-
se-ha idéa do que pode ser o de um só corte, comquanto algu-
mas variantes haja nesse grupo. O n.° 2 representa o plano que
passa pelos gumes cortantes em toda a sua largura, e o n.° 2' a
configuração do instrumento observado nos seus planos lateraes.
As facetas que produzem os gumes cortantes á feição dos
machados polidos, foram desengrossadas pelo attrito em pedra
181
de grés até convergirem symelricamente em córlc aíilado nas
duas extremidades, ficando totalmente polidas e com os bordos
lateraes abatidos. Os gumes deixam ver que estavam falhados
quando o instrumento deu entrada no deposito em que foi achado
e por isso essas falhas podem ser attribuidas á acção do traba-
lho. Medindo, porém, a extensão de 0m,129, seria porventura um
tanto curto para poder ter um encabamcnto central e trabalhar
do mesmo modo que os picões com que os canteiros lavram a
pedra; observando-se, porém, serem os seus bordos todos poli-
dos e lustrados, a ponto de que o corte ou secção transversal,
daria um rectângulo com os ângulos externamente abatidos em
curva convexa, deixa presumir que teria sido uui instrumento de
mão, cujo uso parece ser denunciado pelo estado dos bordos.
No norte da Europa acham-se uns escopros prismáticos e
polidos, ou mesmo apenas esboçados. Mais para o centro são
raros os de secção transversal prismática, sendo mais vulgares
os de secção quasi circular ou elliptica, como são alguns das pa-
lafittas da Suissa e outros da França.
A secção transversal dos poucos que lêem apparecido em
Inglaterra, diz o sr. de Mortillet poderem-se collocar entre os
rectangulares da Dinamarca, e os quasi cylindricos do território
francez. E portanto essa forma intermédia dos escopros de pedra
de Inglaterra, que mais se approxima da do escopro de schisto
amphibolico de Aljezur, a que me refiro.
No Musée préhistorique, planta lii, sob o n.° 486, representa
o sr. de Mortillet um duplo escopro de jadeíte, que deve ser mui
similhante ao de Aljezur (avec denx tranchants, mi a chaque bout.
Bassin de la Durance-Vaachise), que diz ter elle mesmo desco-
berto.
No Algarve têem apparecido alguns escopros de um só corte,
mas descrevel-os todos seria impor ao leitor uma demasiada im-
portunidade. Limito-me, pois, aos que são mais typicos e deixo
os seus congéneres para poderem ser observados no museu logo
que seja permittida a sua reorganisação.
182
Goivas de pedra. — A goiva, diz o sr. cie Mortillet, «... n est
aulre chose quune herminette dont la face plane est plus au moins
creusée. » Com effeito, é a forma das que descobri no Algarve,
com uma só faceta obliqua, formando canelura longitudinal até o
gume cortante, sempre ligeiramente arqueado.
Uma que appareceu no deposito de Aljezur, em vista da sua
configuração geral, poderia ser aggregada ao 4.° grupo das en-
xós, se o único distinctivo, que lhe é próprio, de ter a faceta
concava entre os bordos, não a incluísse no seu género especial.
Mede 0m,154 de comprimento, 0m,062 de largura junto ao corte
e termina em ponta por um lascamento diagonal, sendo de 0ra,030
a sua máxima espessura.
Na quinta da Lameira, junto ao rio de Alvor, onde descobri
os restos de um destruido monumento de crypta circular, con-
servando ainda três pedras dispostas em curva, e junto de
uma d'ellas uns núcleos e fragmentos de facas de silex, ob-
teve o rev.d0 prior da Mexilhoeira Grande, o sr. Nunes da Glo-
ria, um interessante instrumento de pedra todo polido, que foi
primeiramente uma goiva e passou depois a ser amolado, ficando
com um corte similhante ao do formão de ferro, mas ligeiramente
arqueado.
Mede este pequeno instrumento, companheiro de outros mui-
tos com que aquelle bom amigo me obsequiou, 0m,072 de com-
primento, 0m,021 na maior largura c 0m,016 na sua máxima
espessura, formando a secção transversal um plano, que seria
rectangular, se não tivera os ângulos abatidos. A faceta em que
esteve aberta a canelura, cujos restos visivelmente conserva, tem
de altura 0m,010. Sendo portanto um instrumento tão estreito,
que mais se approxima dos formões que das enxós, tem com-
tudo de ser incluído neste ultimo género.
As goivas são raras em muitos paizes, mas assaz conhecidas
numa parte do norte da Europa e vulgares nas nações scandina-
vas, principalmente na Dinamarca. A Finlândia abunda em bel-
los exemplares. Na secção geológica de Lisboa ha exemplares
mui perfeitos.
183
Cutelos de pedra. — Em alguns Jogares, onde abundam vá-
rios instrumentos de pedra lascada e pedra polida, apparcccram
uns calhaus de ribeira, geralmente planos nas suas duas fac*es
oppostas mais largas, e de pouca espessura, cuja forma natural
é mui similhante a de certos cutelos de ferro não rematados em
ponta, de folha larga e cortante, a que adhere um cabo de lar-
gura menor, permittindo assim uma empunliadura fácil e bem
resguardada para a mão.
Estes cutelos naturaes não escaparam á vigilância dos artífi-
ces da pedra, que logo mentalmente lhes viram um préstimo
qualquer, e por isso os foram colligindo. Um d'estes calhaus
apresenta o cabo completamente preparado a choques de percu-
tor, ficando-lhe um punho quasi cylindrico ; outro, num lado do
bordo mostra principio de desengrossamento pela acção do altrito,
e finalmente ha mais um, cujo bordo está inteiramente picado,
deixando perceber que serviu de percutor. As suas formas, com-
quanto sempre subordinadas á do cutelo de ferro, são mui va-
riáveis e de diversas dimensões.
Pertencem estes instrumentos á minha collecção ultimamente
organisada e não depositada no museu, tendo-me sido remetti-
dos, com outros objectos, de Aljezur, de Alcalá e da Torre dos
Frades, pelos srs. Gosta Serrão, Nunes da Gloria e António Mar-
cellino Madeira. Alguns mais, de formas similhantes, vieram com
aquelles, mas sem indicio algum de trabalho. Estariam porven-
tura em deposito, a fim de serem preparados quando fossem
precisos.
Para dar, finalmente, approximada idéa da configuração
daquelles calhaus, que suppra a deficiência da minha descripção
e a impossibilidade de representar n'este livro uma tão copiosa
variedade de objectos, indico os instrumentos figurados com os
n.os 107 a 111 no Musée préhistorique, que o sr. De Mortillet
denomina pointes à cr cm, com a diff crença, porém, de que os
cutelos, a que me refiro, não são pontagudos. Se o museu do
Algarve chegar a ser reorganisado, os apresentarei nos seus re-
spectivos logares. Antes d'isso, não, porque não os quero ver se-
184
pultados e quiçá expostos a serem-me usurpados com os que lá
tenho; prefiro conserval-os aqui, na minha rústica habitação cam-
pestre, junto á margem esquerda do rio, que banha esta praia
de $. João da Barra, habitada pelo povo marítimo das Cabanas
da Conceição, onde os homens de mais qualificada sabença são:
primeiro o sacristão, logo em seguida o padre prior, o regedor
da parochia, o professor de instrucção primaria, o mestre bar-
beiro, que ao mesmo tempo é sangrador, dentista e clinico, e eu,
em ultimo logar, por isso que também presumo saber alguma
cousa de primeiras letras, e já fui sócio da real associação dos
architectos e archeologos portaguezes.
Já se vê, pois, que aqui por estes sitios não ha sábios de
marca maior, como os que me cubicaram o museu do Algarve,
para poderem lavrar sentença acerca d'estes instrumentos, de
que ainda não ha noticia; mas, em compensação d'esta falta, não
ha também quem queira figurar de sábio á custa do entendi-
mento alheio. Os cutelos de pedra aqui ficam, por emquanto, como
protestando contra a inépcia dos destruidores das instituições
que em todos os paizes, menos neste, são mantidas e respeitadas
em beneficio da sciencia e do decoro- nacional.
Seguindo com a enumeração dos instrumentos de pedra,
cumpre-me registrar um outro género, que julgo não ser vulgar
nas collecções existentes no paiz.
Ponteiros de pedra. — O ponteiro é um instrumento da forma
de parallelipipedo, ou cylindrico, geralmente desengrossado pelo
attrilo e terminado em ponta numa extremidade. Em toda a ex-
ploração feita nesta província apenas appareceram dois, um em
Aljezur, bastante estragado, e que supponho ter-se extraviado, e
outro, que em seu logar descreverei, no sitio do Saragoçal, per-
tenccnle á freguezia da Mexilhoeira Grande, o qual me foi offe-
recido pelo rev.d0 prior Nunes da Gloria, e vae figurado na es-
tampa íx sob o n.° 2. Ha actualmente ponteiros de aço mui si-
milhantes áquelles, e mui provavelmente serviriam para abrir
185
cavidades em pedras de menos rijeza, como eram as dos graes,
de que adiante darei noticia.
Trituradores. — O género triturador abrange varias espécies,
ou antes umas adversas especialidades, cuja maior parte mais
propriamente podéra inscrever-se na classe dos instrumentos de-
nominados armas de guerra. Tal é o que se julga feliz indepen-
dente, quando usa e abusa dos (mal empregados!) recursos da
sua opulência para deprimir os deslembrados da fortuna ; tal é o
politico de má catadura, que, quando sobe ao poder, já leva o
azedado bestunto inclinado a arrazar todos os vencidos para pôr
em relevo as mais achatadas mediocridades do seu bando; tal é
o magistrado bronco, o burocrata cabeçudo, ou qualquer outro
empavezado mandão, quando sophisma, torce ou retarda a jus-
tiça que deve, ou faz o que não deve; tal é o inepto a quem uma
desatinada fortuna abriu carreira, e que na carreira a todos quer
deter; tal é o impostor, quando pensa valer tudo quanto aos ou-
tros pretende tirar! Não é, porém, d'estes nefandos trituradores,
que são a lepra, o opprobrio e a miséria das sociedades viventes,
que me cabe aqui esboçar a synopsis. EUes ahi andam, e em tão
alevantado plano, que não ha quem os não lobrigue e conheça.
Passarei a fallar dos outros, dos de pedra (menos duros tal-
vez), que foram prestadios instrumentos de trabalho nas mãos
d'esses selvagens dos tempos neolithicos, que dizem ser nossos
avoengos, e elles, ainda para peior, descendentes em linha recta
de uns animalejões recentemente baptisados sob o nome de an-
thropopithecos, com que a sciencia moderna nos quer prender á
pelluda raça dos anthropomorphos, mas em que eu ainda não
estou muito crente, em razão de umas certas razões, que não
vem aqui a propósito expender.
Os trituradores de pedra, emfim, são uns calhaus de varias
formas, alguns quasi cylindricos, que serviriam para pisar e
reduzir a miúdos fragmentos algumas substancias duras, que
juntamente com elles encontrei em vários depósitos neolithicos,
taes como a limonite e o cinabrio, apreciados mineraes de que
186
provavelmente se serviam os homens da ultima idade da pedra,
para fazerem as tintas com que pintavam a pelle, sem que toda-
via fossem elles os primeiros que tão singular adorno usassem,
porque a tatuagem é originariamente paleolitliica.
A estação de Aljezur reservava ainda um d'esses calhaus,
tendo uma extremidade ligeiramente picada pelos ângulos dos
fragmentos triturados, e appareceu um na Torre dos Frades,
conservando adherentes algumas partículas ou pequenos grumos
de hematite vermelha.
Existem, pois, confundidos em varias collecções muitos in-
strumentos de trabalho, que tiveram necessariamente applicações
especiaes, sem que todavia se possam indicar, e é d'esse grupo
assaz confuso, que me parece ter podido separar os trituradores
de pedra, os quaes só poderão ser bem reconhecidos quando fo-
rem directamente observados e comparados no museu.
Pilões. — Com preferencia a qualquer outro termo, emprego
este para designar uns calhaus, geralmente de forma oval, sendo
alguns de mui pequenas dimensões, que colligi em depósitos neo-
lithicos e até n'oulros da idade do bronze. Quem os observar á
simples vista, julgará serem apenas uns seixos rolados de ribeira,
mas sabendo-se que alguns foram achados juntamente com graes
de pedra, e notando-se que a sua superfície não é embaciada,
como a das pedras roladas, mas quasi sempre lustrosa, não dei-
xará de attribuir esta circumstancia ao uso que tivessem tido
num qualquer trabalho, e por isso poderão facilmente confun-
dir-se na serie dos brunidores.
Ha, porém, em alguns pilões d'esta forma um indicio que
melhor os caracterisa, e vem a ser quando numa, ou nas suas
duas extremidades, apparecem estrias provenientes do attrito,
em geral de forma curvilínea, cruzando-se e cortando-se irregu-
larmente em numerosos pontos, o que muitas vezes só se pôde
observar com o auxilio do microscópio; e é o que similhantemente
todos podem ver nos pilões ou mãos de gral, de que se faz uso
nas drogarias, laboratórios e n'oulras officinas para reduzirem a
187
pó varias drogas de rija consistência, principalmente as que são
crystallisadas, cujas arestas angulares riscam todas as superfícies
em que o trabalho se exerce.
Além d'estes descobri outros pilões, que muito melhor seria
mostral-os que descrevel-os, porque as suas variadas formas,
sempre irregulares, não permittem ser descriptas sem o emprego
de uma prolixidade fastidiosa e importuna, de que somente re-
sultaria confusão.
Tal é, pois, uma das grandes conveniências que os museus
offerecem ao estudo publico I
Referindo-me, porém, aos que consegui colligir, divido-os
em dois grupos distinctos, comquanto julgue terem todos eiles
sido destinados á polvorização dos cereaes, que cerlamente já
eram uíilisados como substancias alimentícias na ultima idade
da pedra, embora haja quem supponha terem sido os homens
da idade do bronze os primeiros agricultores e fabricantes de
pão ; poisque, se assim fora, não haveria modo de explicar qual
teria sido a applicação de uma infinidade de pedras, de que
adiante faltarei, visivelmente preparadas para a moagem, que
com frequência apparecem em quasi todas as estações neoli-
thicas.
Ao primeiro grupo pertencem umas pedras planas numa face
e na outra convexas, assim como as que têem planas e paralle-
las duas faces. Para estas pedras servirem de pilões, foram ne-
cessariamente amoladas, a fim de se poderem ajustar sobre ou-
tras pedras fixas, igualmente planas, que permittissem a moagem
dos trigos e cevadas, cujas espécies já então eram cultivadas.
No segundo grupo inscrevo uns outros pilões, cuja superfície
geral é dividida em dois e mais planos convexos, os quaes pare-
cem ter sido adaptados a umas pedras concavas de moagem, de
que tenho alguns exemplares, tanto no museu como nas novas
collecções que organisei n'esta província. Aljezur forneceu um
d'estes calhaus, cuja rocha é a foyaite de Monchique.
188
Mós de pedra. — O homem, obrigado pelas necessidades da
vida, teve de inventar e reunir uns certos processos para poder
aproveitar os fructos que a lerra produzia. No período neolithi-
co, ou esta parte da Europa foi invadida por uma nacionalida-
da, que comsigo trouxe o conhecimento da agricultura, os ce-
reaes destinados a uma parte da sua alimentação para serem
semeados e reproduzidos pela terra, o processo de reduzir os ce-
reaes a farinha e, mais ainda, os da fabricação e cozedura do
pão, ou as populações indígenas foram obtendo e descobrindo
cada um d'estes elementos até o ponto de poderem ser emprega-
dos para produzirem o seu pratico resultado.
Pouco importa, n'este logar, optar por uma ou outra hypo-
these, porque, em qualquer delias, logo que os cereaes foram in-
tencionalmente semeados para servirem de alimentação, a con-
sequência immediata era preparal-os para a moagem apóx a
colheita, ou nas occasiões em que fossem precisos. Também
pouco importa saber-se agora, se foi a Ásia que enviou á Eu-
ropa o primeiro moleiro, ou se a Europa, independentemente da
Ásia, logrou o condão de poder improvisar essa utilissima enti-
dade industrial.
O que, em meu conceito, está perfeitamente demonstrado, é
que em pleno período neolithico o processo da moagem da fari-
nha era geralmente conhecido e usado; o que prova que naquelle
período foi que a industria agrícola fez a sua apparição n'estas
plagas, tão distantes do Cáucaso, d'onde se diz terem vindo as va-
riedades classificadas pelo sapientissimo Heer; o que para mim
ainda não é caso suficientemente averiguado.
Não somente nas palafittas, mas também em varias estações
terrestres da ultima idade da pedra, tem o trigo sido achado, e este
facto deixa immediatamente perceber que já então era conhe-
cida e praticada a sua pulverização.
Em quasi todas as estações neolithicas, que explorei, havia
grandes pedras com uma superfície plana e outras com espaçosa
concavidade, acompanhadas daquellas que acima ficam descri-
ptas sob a designação de pilões. Até esta data umas e outras
189
íêem sido consideradas corno instrumentos destinados á moagem
de cereaes, e, a meu ver, não me parece que possa ser-lhes at-
tribuido outro destino, salvo uma única excepção; pois ao passo
que em tão imperfeitos apparelhos o trigo era moído, o operador
moía também os braços e a paciência com a mais admirável per-
severança. Tal era a força da necessidade, que a tudo obriga!
A estação de Aljezur forneceu vários fragmentos d'cssas pe-
dras, assaz frequentes nas outras estações neolitbicas d'esta pro-
víncia. Se me tivesse disposto a colligil-as, poderia com ellas
carregar uma carreta. Arrecadei porém algumas, que podem ser
observadas no museu, emquanto não as mandarem deitar fora, e
nas ultimas collecções que organisei, onde não ha que temer de-
liberações boçaes, sendo notável que, na sua maioria, represen-
tam a rocha foyaitica até á estação da Torre dos Frades, situada
na extremidade oriental, distante muitas léguas do tracto eru-
ptivo monchicano.
Graes de pedra. — Neste género de utensílios de trabalho
encontrei três typos principaes, que mui cuidadosamente col-
ligi, por serem de fácil acondicionamento e não em demasia abun-
dantes: o primeiro é representado por varias pedras em que ha
uma cavidade pouco funda e de curto diâmetro; o segundo é o
gral perfeitamente fabricado, como os que represento na estampa
vií, cuja descripção darei em seu competente logar; e o terceiro
é o duplo gral, isto é, a pedra com duas cavidades oppostas,
ou com duas e mais cavidades no mesmo plano, não deixando
estes serem confundidos com alguns percutores em que foram
excavadas umas depressões adaptadas á fixação dos dedos.
Tenho um duplo gral de calcareo oolilhico, achado em Monte
de Roma, perto de Silves, que n'aquella cidade me foi offerecido
pelo cavalheiro João de Mascarenhas Netto. É muito regular e
bem trabalhado; tem a configuração que toma uma pequena es-
phera de borracha, sendo ligeiramente apertada com dois dedos
n'um dos seus diâmetros, e mede no transversal 0,n,067 e no
que passa pelo centro das duas cavidades 0m,033. Com o mi-
190
croscopio divisam-se num dos fundos umas ténues adherencias
rubras, que julgo serem restos de tinta, e não me admira que
assim seja, porque um outro gral da minha collecção, tendo ap-
parecido impregnado de hematite vermelha, veiu mostrar qual
havia sido a sua applicação e confirmar o conceito, geralmente
admittido, de terem os pequenos graes servido, talvez exclusi-
vamente, para a moagem das tintas com que os indivíduos
d'aquelles tempos pintavam a pelle, alguns adornos e outros
objectos.
0 uso das tatuagens é porém muito mais antigo ; pois são
numerosas as estações paleolilhicas em que se têem achado mui-
tos graes acompanhados de substancias colorantes, e bem assim
grande quantidade de ossos partidos, deixando perceber que as
medullas eram empregadas na preparação das tintas. A estes
graes parece corresponderem os primeiros pilões a que me re-
feri.
A collecção dos graes extrahidos dos depósitos neolithicos e
dos da transição da ultima idade da pedra para a idade do
bronze, como mostrarei no segundo volume d'esta obra, tem ex-
cellentes exemplares. No museu estão apenas dois, que deixei
depositados, pertencentes á estação neolithica de Alcalá.
A estação de Aljezur forneceu-me um único gral, ou pedra
em que apenas ha uma depressão ou cavidade, que bem se reco-
nhece ter sido feita intencionalmente. Existe na minha collecção
não depositada.
Armas de caça c de guerra
As estações neolithicas da Europa têem manifestado varias
armas de silex e de outras rochas, que ainda não encontrei n'esta
provinda, nem me consta que se tenham achado no território
portuguez; taes são os bem manufacturados punhaes de silex
dos paizes scandinavos, as lanças de folha estreita e alongada,
o picarete, e varias outras que têem apparecido em diversas re-
giões, que o sr. De Mortillet representa no Musée préhistorique.
191
Com referencia aos descobrimentos ate hoje effeituados no
Algarve, podem ser indicados quatro géneros principacs, tendo
porem cada um d'elles diversas variantes, e são o machado, o pi-
cão, a ponta de frecha e a ponta de lança.
Machado. — O machado, que já descrevi com duas formas
mais geraes, pertencendo a cada uma d'essas formas diversas va-
riedades, embora seja considerado como tendo sido o mais po-
deroso e generalisado instrumento de trabalho, não pode deixar
de ser ao mesmo tempo admittido como uma das mais terríveis
armas de combate, oííensiva e defensiva. Nenhuma outra arma
poderia suppril-o no encontro de dois bandos inimigos, em que
a arma de arremeço já não podesse ser utilisada com tão fácil
agilidade e destreza como o machado encabado, brandido por
braço adestrado e vigoroso.
Mesmo como arma de caça, seria indispensável para abater
a fera na sua investida contra o homem, o veado, o boi, a cabra e
todo o animal simplesmente ferido pela frecha. Era o compa-
nheiro inseparável do homem nas lides do trabalho, no campo
de batalha, e no exercício venatorio; era o constante fiador da
sua individualidade, o defensor da sua existência, o seu muilas
vezes primeiro e outras tantas extremo recurso. Não pode por-
tanto o machado ser excluído do arsenal de guerra d'esses tem-
pos, em que o estado de paz não seria porventura o mais seguro
e permanente.
Picão. — Esta nomenclatura poderá causar estranheza aos
archeologos, por ser nova e não partir de algum patriarcha da
sciencia; mas como a forma dos instrumentos, a que a refiro, não
é nova, e até hoje têem elles ido passando sem designação espe-
cial, sou eu que lh'a dou, deixando a todos o livre direito de aco-
lhel-a ou rejeital-a. Façam isso como quizerem. Eu é que não
posso deixar ignorados por mais tempo uns instrumentos, que
descobri em diversos logares, cuja forma parece derivada da do
celebre instrumento de silex lascado das alluviões quaternárias
m
de Saint-Acheul, com a differença porém de serem polidos, ou
desengrossados pelo altrito, lodos os do Algarve.
Um d'estes instrumentos é de quartzo um lanto crystallino,
de forma amygdaloidal, totalmente desengrossado e alisado em
pedra de amolar, terminando em ponta aguda uma das suas ex-
tremidades. Foi necessariamente encabado para ferir de ponta.
Achou-se avulso no serro do Haver, perto de Bensafrim, e ahi
mesmo o comprei. Tem de comprimento 0m,084, de máxima lar-
gura 0m,053, e de espessura 0m,041.
Obtive outro da mesma forma no monte de Roma, perto de
Silves, de rija diorite, atravessado diagonalmente por um veio de
quartzo, tendo de comprimento 0m,083, de largura 0m,046 e de
espessura 0m,032. Este vae figurado na estampa xiii sob o n.° 3
e o antecedente na estampa iv sob o n.° 1
Colligi outros três exemplares na Torre dos Frades, cuja for-
ma, na sua secção vertical, é a da pyramide cónica, tendo po-
rém convexa a base, assim como é a dos dois já indicados. Estes
da Torre dos Frades são quasi das mesmas dimensões e todos de
quartzo, desengrossados e alisados em pedra de amolar. O maior
mede no eixo longitudinal 0m,144, no tranversal máximo 0m,001
e no perpendicular a este 0m,048. Foram achados em 1876 na
galeria de um dolmcn coberto, que explorei em 1882, sendo-me
offerecidos pelo sr. António Marcellino Madeira. Tenho dois de-
positados no museu do Algarve, e o outro existe aqui na mi-
nha habitação campestre. Represento um na estampa xxiii, sob
o n.° 2.
Não ha ver em alguns d'estes instrumentos o minimo indicio
de uso, parecendo assim não terem sido applicados ao trabalho,
ao passo que seriam necessariamente penetrantes e destruidoras
armas de guerra, sendo encabados e manejados por mão ro-
busta e habituada a não errar o golpe. Incluo-os, pois, na classe
das armas de guerra, emquanto não houver prova em contra-
rio.
ALJESUR
Est. D
eÚ>». d.J.td yJa Graça
J.UAofrKphi*. fàJmprtnsa, Nacioruã.
193
Fgintas de frecha. — Estes artefactos, mais geralmente de
silex, comquanto os haja de quartzo, de obsidiaria e ainda de
outras rochas, são considerados em todos os paizes como armas
de guerra entre outros géneros de armas de arremeço da balística
prehistorica. As suas formas variam muitíssimo; algumas po-
rém não chegaram a esta extremidade occidental da Europa,
onde comtudo ha exemplares, não conhecidos n'outros paizes,
que dão um certo característico a esta região. Para melhor se
perceber este asserto, bastará comparar as formas que vão figura-
das n'este livro e no immediato com as que reproduziram os srs.
Adriano e Gabriel de Mortillet no seu utilíssimo Musée préhisto-
riqae.
É um caso singular, certamente, mas não é o único que
dá a esta zona geographica uma feição especial.
Não são tão variados como os de Alcalá, os da Nora e os da
Marcella os typos das frechas de silex de Aljezur. Predomina nos
d'esta ultima estação a forma de triangulo isosceles com diversas
variantes na base, que é approximadarnente rectilínea, mais ao
menos concava, aberta em angulo reintrante, ou formando arco,
sendo as suas arestas lateraes onduladas ou denteadas por effeito
de pressão ou por cuidadosos toques de percussão. Taes são
os exemplares que figuro na estampa D com os n.os 4, 5, 7 e
8 a 12, e ria estampa E com os n.os 1, 3, 4, 6 e 8.
Duvida alguma pode haver acerca da significação das pon-
tas de frecha , pois em muitas estações têem apparecido craneos
e outros ossos humanos, assim como ossos de animaes, penetra-
dos por essas mortiferas lascas de silex, o que dá inteira prova
de que eram, com effeito, armas de guerra e de caça. Muitos ca-
sos foram verificados pelo dr. Prunières nos dolmens e caver-
nas que explorou no departamento de Lozère, entre os quaes
também achou ferimentos que não produziram a morte, sendo
cicatrizados por uma excrescência de ossificação, que chegou quasi
a envolver e cobrir o projéctil.
Não são as mais bellas as pontas de frecha de Aljezur ; ver-
se-hão nas estampas seguintes, principalmente as de Alcalá, da
Í3
104
Nora o da Marcclla, entro as quaes ha formas novas e exempla
res perfeitíssimos.
Frechas cortantes.- — Em muitas estações prehistoricas têem
os exploradores achado umas lascas de silex, parecendo fra-
gmentos de facas, de forma proximamente triangular ou de trapé-
zio, com a aresta mais larga terminada em gume cortante; e, com
effeito, algumas são fragmentos de facas obliteradas, embora ou-
tras pareçam haver sido lascadas intencionalmente. Muitos (Tes-
tes instrumentos, no conceito de alguns archeologos, são consi-
derados como laminas cortantes, emquanto outros julgam terem
sido frechas, que se fixavam em delgadas varas de madeira fen-
didas numa extremidade, onde seriam entaladas e seguras com
betumes, ficando-lhes a aresta cortante collocada em sentido ho-
risontal, a fim de poderem ser apontadas ás pernas dos animaes
para lhes cortarem os músculos e os deterem na carreira.
O caso é que no grupo das laminas cortantes andam confun-
didas muitas das referidas frechas, como bem se podem denomi-
nar, sabendo-se que ainda actualmente ha povos selvagens que
as usam nos seus exercícios venatorios como meio de facilitarem
a captura dos animaes. E uma invenção propriamente barbara,
mas ao mesmo tempo engenhosa.
Sob a epigraphe lascas cortantes, já fiz referencia a um in-
strumento que figuro na estampa E sob o n.° 5, o qual pode ap-
proximadamente dar idéa das frechas cortantes, sendo comtudoum
fragmento de faca de silex, destacado por fractura diagonal, ficando
por isso com uma só aresta e com a feição de uma excellente la-
mina cortante.
Na collecção geral dos instrumentos de silex lascados poder-
se-hão separar algumas formas que mais se approximem dos ty-
pos, que o sr. barão de Baye inscreveu sob a nomenclatura de
flèches á tranchant transversal e que eu denomino frechas cortan-
tes, por me parecer assim dar sufficiente idéa do objecto, dei-
xando aos archeologos o livre arbítrio de preferirem o que me-
lhor lhes pareça.
ALJESUR
tf*t. JB.
&e*J)jLE<?<i V
Chu. i& J?. €£t*\y&ÍO&
195
A estação de Aljezur sómenle forneceu a referida lamina n.° 5,
figurada na estampa E, e outra similhante, que já ficou repre-
sentada na estampa B com o n.° 5, a qual poderia também con-
fundisse com as frechas cortantes, se não fosse um fragmento de
faca habilmente transformado em serra de fina dentieulação.
Nos seus respectivos logares indicarei os exemplares que
julgo poderem ser incluídos no grupo das frechas cortantes.
Pontas de lança. —A estampa D, sob o n.° G e a estampa E
sob os n.os 2 e 7 mostram a forma e dimensões das três pontas de
lança de silex que havia na estação mortuária de Aljezur, reuni-
das a ossos humanos e a vários grupos de artefactos de pedra la-
scada e de pedra polida. Todas estas têem a forma do triangulo
isosceles. A base da primeira é quasi rectilínea, salvo um pequeno
desvio, que lhe dá o aspecto de ligeira concavidade parcial; as duas
ultimas, ao contrario, deixam ver uma pouco sensível excrescên-
cia peduncular, havendo quasi no centro da de n.° 2 uma falha na-
tural. Todas foram lavradas a choques de percussão em placas de
silex, cuja espessura máxima no eixo vertical mede apenas 0m,006,
decrescendo as suas bem trabalhadas faces convexas e oppostas
até formarem os bordos lateraes arestas onduladas, como se
observa nas melhores serras de silex, sem que coro tudo se pos-
sam inscrever n'esse género de instrumentos, porque, a ser assim,
seria mister juntar-lhe também todas as pontas de frecha, que,
na sua maioria, têem o mesmo característico.
A forma d'estas armas de arremeço é excepcional e como
privativa d'esta região geographica, sendo similhantes no typo ás
pontas de frecha triangulares que figuro em diversas estampas
d'este livro.
Os srs. A. e G. de Mortillet representam no seu Musée pré-
historique, pi. xliv, sob n.° 400, um exemplar pertencente ao
museu geológico da escola polytechnica de Lisboa, denominan-
do-o, porém, pointe de javelot; mas nem as pointes de lance, que
mostra na pi. xli, nem as de javelot na pi. xlii, têem a mí-
nima similhança com estas mui bellas e bem trabalhadas placas
19G
triangulares de silex. Os srs. de Mortillet, sábios e atiladíssimos
classificadores da industria prehistorica, parecem hesitar ácêrca
da nomenclatura correspondente a esíes instrumentos, que muito
attrahiram a sua atlenção quando honraram com as suas visitas
o museu archeologico do Algarve, onde viram uma ponta de
lança do dolmen coberto de Alcalá e duas mui perfeitas, de base
rectilínea, do da Marcella.
Eis-aqui o que a este respeito refere o sr. G. de Mortillet no seu
precioso livro intitulado Le Préhistorique (pag. 526): «En Por-
tugal, il y a aussi de pointes de javelot qu'on pourrait même ap-
peler pointes de lance, qui ont une forme toute spéciale. Ce sont
des plaquettes de silex, largement triangulaires, retouchées tout
ou partout sur les deux faces ayant à la base (refere-se a da
escola polytechnica) comme un três court, mais três large appen-
dice en guise de pédoncule».
Faltam portanto n'esta região geographica os typos de lan-
ças e dardos característicos, principalmente, das estações neoli-
thicas do norte. No Algarve, por emquanto, não tenho achado
outros e por isso, para os differeuçar das pontas de frecha de
formas similhantes, os inscrevo aqui sob a nomenclatura depon-
has de lança. Quem melhor souber o uso que lhes deu o povo
que vivia neste ultimo torrão do Occidente na ultima idade da
pedra, dirá com mais acerto como se devem denominar.
O arsenal de guerra neolithico, se mais alguma cousa por
aqui teve, jaz ainda escondido nos mantos de terra que ninguém
até hoje ousou desdobrar. A medida que forem sendo abertas as
dobras e pesquizadas as pregas d'esse manto, interessantes no-
vidades poderão talvez apparecer. Por ora as armas são pouco
variadas; mas ainda assim poderiam ter armado duas aguerridas
legiões, uma de porta-machados e outra de frecheiros. Não inven-
taram elles a pólvora, é verdade, mas eram mestres no preparo
e manejo da pedra; e pode suppor-se que seriam adestrados
guerreiros, sendo por necessidade obrigados ao exercício da caça.
Como caçadores tinham de ser vigilantes, resolutos e ágeis.
Era a caça a sua escola de evoluções estratégicas; era n'essa
197
escola pratica que o atirador exercitava a pontaria, o ataque con-
tra o inoffensivo que ia fugindo, c a lueta com aquclle que o in7
vestia; finalmente, sem exageração, pode julgar-se que aquelles
pelejadores tinham desenvolvido aptidões mais radicalmente mar-
ciaes do que os soldados de hoje, não ainda experimentados na
varia sorte dos combates ; c chego verdadeiramente a sympathi-
sar com os que viveram aqui, n'esla região algarviense, pelo sim-
ples facto de não usarem armas traiçoeiras ; pois não ha encon-
trar um único punhal de silex nos seus depósitos mortuários; o
que me leva a memoral-os com a convicção de que não eram si-
cários como os scandinavos e os do norte da França, exímios
fabricantes e portadores d'essas armas nefandas.
Passando agora a registrar os restantes característicos da es-
tação neolithica de Aljezur, darei noticia das placas de schisto
ardoziano com gravuras geométricas, de um amuleto de pedra
da forma de machado, de uma conta de stealite, e da cerâmica,
que tudo isto acompanhava.
Plagas de schisto gravadas. — A estação de Aljezur é de to-
das as de Portugal que forneceu maior numero de placas de
schisto com gravuras. Na minha collecção entraram dezesete por
obsequioso offerecimento do sr. José da Gosta Serrão, mas appa-
receram mais algumas, que se diz terem sido obtidas pelo sr. Jú-
dice dos Santos. Calculo que haveria alli umas vinte a vinte e
duas.
Reservo para o acabamento d'este livro uma noticia geral
das placas gravadas, até hoje descobertas em Portugal, acompa-
nhada de uma carta geographica em que indico as cavernas, os
dolmens e outros monumentos em que têem sido achadas. Absle-
nho-me pois de descrevel-as neste logar para evitar a repetição
de um assumpto que já merece ser especialmente tralado.
Amuleto da forma de machado. — O machado de pedra, total
ou parcialmente polido, era o mais possante, o mais útil, e o
mais generalisado de todos os instrumentos. Symbolisando a de-
198
feza individual, era ao mesmo tempo o famoso auxiliar de todas
as industrias, de todos os commcttimentos. Era, finalmente, o in-
dispensável companheiro do homem. A superstição creou-lhe um
culto de veneração, considerando-o privilegiado donativo da di-
vindade, e foi elevado á categoria de amuleto. O culto era ainda
extensivo a certas pedras naturalmente furadas e por isso algu-
mas têem apparecido em dolmens.
O delicado machadinho de Aljezur, figurado na estampa G
sob n.os 3, 3' e 3;/, foi furado com uma ponta de silex junto á
extremidade inferior, e ficou assim tendo uma dupla symbologia.
O furo mostra-se gasto pelo attrito de um cordão em que teria
sido enfiado para se trazer pendente do pescoço. Devera ter tido
grandes virtudes esse bocadinho de calcareo jurássico represen-
tando a imagem do machado de pedra! E quem sabe se ainda
hoje faria a fortuna de uma bem intencionada mãe de família,
que podesse lançal-o ao pescoço cio filhinho adorado para que
as bruxas e os lobishomens lhe não chupassem o sangue a horas
mortas da noite, para ficar a salvo dos maus olhares de mal-
fazejos, e isento de outras muitas calamidades! Sendo pois um
amuleto tão antigo, a dizer verdade, melhor condão não poderão
ministrar ás creanças de berço ecollo o signo de Salomão, afigui-
nha de ouro e a esgalhinha de coral. O caso é que estas e outras
superstições trazem ainda muita gente filiada na ultima idade da
pedra !
Conta de pedra polida. — Os indivíduos que ficaram sepul-
tados em Aljezur, como agora se chama áquella terra, não usa-
vam somente como pendentes as placas de schisto, e os amule-
tos de formas symbolicas ; também traziam contas ao pescoço, e
talvez nos pulsos, assim como braceletes e collares de varias con-
chas e de dentes de animaes. Uma d'essas contas offereceu-m'a
o sr. Costa Serrão; e comquanto fosse uma só, vale bem um
rosário! E de forma sub-cylindrica, atravessada por um orifício,
furado com ponteiros de silex pelas duas extremidades, onde
junto ao bordo interno se nota, para o mesmo lado, o sulco pro-
199
duzido pelo attrito do cordão cm que foi enfiada, c sendo bas-
tante fundo o sulco, deve entender-se que só poderia resultar de
um aturado uso.
Tem a dita conta, que figuro na estampa B sob n.° 4. o as-
pecto de rocha porphyroide ; faz lembrar, á primeira vista, o por-
phyro verde antigo ; mas logo reconheci que não era, tanto mais
que a simples ponta de silex não a furaria sem esforço vigoroso
e paciente. Tal é a rijeza d'aquelle porphyro, que os romanos
sabiam serrar, talhar e polir admiravelmente, como verifiquei,
achando numerosos exemplares quando puz á vista uma parte
da extincta cidade de Ossonoba. Devia pois pertencer a rocha
mais branda, e afigurou-se-me poder ser de mármore verde de
Calábria; mas, sendo tocada com alguns ácidos, não produziu
a minima effervescencia.
Era, finalmente, de steaíite a famosa conta de Aljezur, sen-
do, como tal, ultimamente verificada pelo distincto mineralogista
o sr. Alfredo Bensaude. O muito uso que revela, mostra ter sido
objecto de adorno assas estimado, se é que também não tinha
alguma virtude especial para ser considerada como amuleto.
Alfinetes de osso. — A estampa D, com os n.os 1 a 3, figura
três fragmentos de alfinetes de osso, ao que parece de prende-
rem o cabello. Os de n.os i e 3 deviam ter sido simplices esqui-
rolas de osso desengrossadas em pedra de grés e rematadas
em cabeça, formada por um pedaço de. outro osso medullar em
que o remate mais grosso do prego ou espigão ficaria firme. O
de n.° 2 representa a cabeça de outro alfinete, que foi talhado
de uma só peça, e para seu ornato lhe foi aberto a dentes de
serra de silex um sulco em espiral. Estes alfinetes parece te-
rem sido empregados no penteado das mulheres. São toscos pe-
rante a arte moderna, mas seriam então do mais apurado gosto :
entretanto não eram ridículos, extravagantes e de mau género,
como o são muitos adornos e enfeites usados por varias damas
cTestes tempos que vão correndo.
200
Nenhum outro artefacto de pedra e de osso havia na estação
de Aljezur. Resta-me fallar da cerâmica.
Urnas funerárias. — Uma terra negra, que parece de allu-
vião, mesclada de ténues granulações de quartzite, constiíue a
massa plástica representada por duas urnas, uma inteira e outra
partida, ambas de forma espheroidal; a inteira com pequeno
bordo inclinado para fora e a outra com o bordo convergindo um
tanto para dentro. Mede a primeira no eixo vertical 0m,064, no
diâmetro máximo do bojo 0m,076 e no da boca 0m,0õ7. A que está
partida tem de altura Om,077 e no diâmetro maior do bojo 0m,085.
Esta urna conserva apenas uma fracção do bordo superior. O
fabricante d'estes vasos, inteiramente lisos, ainda não conhecia o
torno ou roda do oleiro, e por isso estes produetos da sua in-
dustria mostram haver sido feitos á mão. Appareeeram fragmen-
tos de outras urnas^ maiores, mas em minguada quantidade, o
que mostra que não estavam bem providos de louça os sepulta-
dos no deposito de Aljezur.
Vaso de suspensão. — Este vasoé formado por dois corpos
circulares convexos, que se ajustam e ligam, lendo superior-
mente uma abertura, também circular, com 0m,037 de diâmetro,
assim como quatro furos em cruz, que lhe atravessam horisontal-
mente a espessura, os quaes mostram, por deteriorações parciaes,
ter estado suspenso por cordéis de alguma substancia fibrosa já
então conhecida' e aproveitada. E fabricado á mão e tem toda a
secção inferior em depressões, como se, ainda fresca a massa plá-
stica, igual a dos outros vasos, tivesse soffrido a pressão dos de-
dos. A sua altura mede 0m,036 e o máximo diâmetro do bojo
0m,078.
Em 1880 ainda não havia noticia de que em algum museu
estrangeiro existissem vasos d'este venero e forma. Nenhuma
obra os descrevia, nenhuma estampa os representava. Ao con-
gresso de Lisboa apresentei eu um perfeito exemplar que tinha
obtido em 1876 no sitio da Torre dos Frades, em propriedade
20!
de D. Maria dos Martyres e Silva, o qual será descripto no logar
em que me compete exhibir os descobrimentos que n'aquelle si-
tio fiz em 1882.
Gommunicou-me depois o sr. E. Cartailhac, numa das suas
frequentes e sempre agradáveis visitas ao museu archeologico do
Algarve, ter achado um vaso similhante entre as louças da sec-
ção geológica de Lisboa; mas não fiquei sabendo em que logar
e condições fora descoberlo.
Visitando posteriormente a secção geológica, pedi informa-
ções acerca d'esse vaso, tanio mais para saber em que condições
de epocha havia sido achado. Não era alli conhecido. Carlos Ri-
beiro chegou a figural-o sob o n.° 95, pag. 85 da sua memoria
publicada em 1880, apresentada á academia real das scien-
cias, com o titulo de Noticia de algumas estações e monumentos
prehistoricos, sem comtudo haver reparado nos orifícios, dispos-
tos em cruz, que atravessam a espessura do corpo convexo su-
perior.
Achou-o Carlos Ribeiro n'um monumento excavaclo em rocha,
numa das grandes elevações da serra de Cintra, perlo da pyra-
midedo sitio do Monge, marcada na carta geographica com a cota
de 488 metros sobre o nivel do mar; e porque alli também des-
cobriu louças ornamentadas, similhantes ás das grutas artificiaes
da quinta do Anjo entre Setúbal e Palmella, e mais uns cones
de calcareo subcrystallino com lavor ornamental, referiu o depo-
sito á epocha de transição da ultima idade da pedra para a pri-
meira dos metaes; o que não se dá em relação ao vaso de sus-
pensão da estação de Aljezur e ao da Torre dos Frades, por terem
apparecido associados a produetos de uma industria propriamente
neolithica, podendo por isso julgar-se que o uso d'esses vasos se
prolongasse até á idade do bronze ; pois com effeito a classificação
que Carlos Ribeiro impôz á estação-tumuhis do Monge da serra
de Cintra não deixa de ter algum fundamento.
Tendo a mais inteira confiança na superior perspicácia do sr-
Cartailhac, sempre fiquei convencido de que o referido vaso de
suspensão deveria existir na secção geológica, e indo alli um dia
202
com o reservado intuito de procural-o, consegui descobril-o no
armário n.° 49, sob o rotulo de Granja do Marquez, e apresen-
tei-o nessa mesma occasião ao sábio naturalista o sr. Berkeley
Cotter, a quem pedi o obsequio de communicar o meu descobri-
mento ao sr. Nery Delgado, director da secção.
Está portanto verificada a existência de três vasos de sus-
pensão nos depósitos prehistoricos de Portugal, dois do Algarve
e um de Cintra.
Uma circumstancia impede admittir-se que fossem vasos de
simples consagração funerária, exclusivamente destinados a se-
rem reunidos aos indivíduos a quem tivessem pertencido ou fossem
dedicados; pois não se pode julgar que ficassem suspensos no
interior das cryptas, mas somente depositados sobre o logar da
sepultura. Reconhecidamente, o de Aljezur, antes de ter entrada
n'aquelle deposito mortuário, já tinha sido usado, a ponto de que
dois dos seus orifícios transversaes e fronteiros estavam inteira-
mente inutilisados, não restando mais do que os outros dois,
também fronteiros, para deixarem enfiar um cordel pouco mais
grosso que o barbante ordinário, a fim de ser assim suspenso.
Portanto, não era unicamente em usos funerários que os vasos
d'este género seriam empregados. Suscitam a idéa de que tives-
sem sido lâmpadas, que se preparassem com cebo derretido,
tendo no centro uma substancia vegetal susceptível de alimentar
a combustão para dar luz e guiar a recônditos abrigos os homens
que não tivessem outra habitação.
A própria côr escura, e o seu aspecto macio, tirante a lus-
troso, deixam vagamente pensar que alguma gordura se tivesse
infiltrado na massa argillosa, embora ao mesmo tempo se deva
entender que mal poderia ter-se conservado impregnada na ténue
espessura de tal vaso qualquer matéria oleosa, resistindo á pas-
sagem de tantos milhares de annos.
Poderiam também estes vasos, cuja forma não permitte sup-
por-se que servissem para conter comidas ou agua de beber, ter
tido algum destino especial nas ceremonias de um culto super-
sticioso, em que houvesse sacrifícios, servindo como baldes para
ALJESUR
Ett.F
£c&. 2* &.
J/xs^ti&a,
L1.th0qra.phia. da. Imprensa. NolcUtiolI .
203
com elles se tirar agua de algum deposito, que precisa fosse para
purificações, ou mesmo para receberem o sangue, sendo intro-
duzidos nas entranhas das victimas destinadas aos banquetes que
fosse costume fazerem-se em honra dos mortos.
Não faltam pois conjecturas todas as vezes que a verdade
dos factos não pode ser averiguada; e é este um dos casos da
ousadia que pratica todo o individuo que pretende explicar o que
não sabe.
Os três vasos a que me tenho referido, vão figurados na es-
tampa F; este ultimo com o n.° 1 e os outros dois com os n.os 2
e3.
Escripla esta noticia, recebi quatro annos depois o famoso
livro do sr. Cartailhac, Les ages préhistoriques de FEspagne et du
Portugal, indicando estes vasos como encontrados em muitas se-
pulturas portuguezas e irlandezas. Representa um da Irlanda
(fig. 169) e outro (fig. 170), que diz ser de uma gruta sepul-
chral de Palmella, certamente por equivocação, porque é o de
Cintra, a que já me referi.
É mui provável que mais alguns exemplares se achem, se
alguma vez se tratar, a serio, do único modo de se poderem re-
conhecer e inventariar as antiguidades prehistoricas de Portugal:
entretanto, somente existe na secção geológica o que foi desco-
berto em Cintra na Granja do Marquez, bem como em a minha
collecção reservada o que em 1881 estava no deposito de Alje-
zur e o que em 1876 (de todos o maior e mais perfeito) fora en-
contrado no sitio da Torre dos Frades, sendo este o primeiro que
o sr. Cartailhac viu neste paiz, e de que me parece ter levado
um desenho, comquanto não o figure no seu esplendido livro.
Se o exemplar de Cintra ficou attribuido á transição da pe-
dra polida para a idade do bronze, os dois do Algarve, não
obstante serem mais aperfeiçoados, pertencem a estações neoli-
thicas.
Dos da Irlanda não tenho noticias especiaes ; vejo que são
de forma similhãnte a dos três de Portugal, com a simples diffe-
rença de terem estes os orifícios horisontalmente abertos na es-
204
pessura do plano superior, ao passo que naquelles os furos a atra-
vessam de lado a lado.
É assaz notável, que só em Porlugal e na Irlanda tenham
estes artefactos cerâmicos sido achados, sabendo-se que as
ilhas britannicas, no período neolithico, já estavam separadas
do continente europeu. Se este facto não leva a suppor-se a
existência de cominunicações marítimas entre aquelle paiz e o
continente, não sei por outro modo explical-o, comquanto as pi-
rogas, de que ha conhecimento, não possam, a meu ver, afian-
çar a probabilidade de tão arriscadas viagens.
E caso que anda preso a outros problemas, que no futuro
poderão ser porventura resolvidos, só depois de emprehendidos
methodicamente grandes trabalhos de reconhecimento archeolo-
gico em vários paizes.
Tem-se trabalhado muito; mas sem plano determinado. . .
A seu tempo se conhecerá esta verdade, que aqui deixo regi-
stada.
Em vista, pois, de todos os característicos da estação-iumu-
lus de Aljezur e do facto cie não se ter alli achado um único ar-
tefacto metallico, quando ainda havia alguns planos intactos con-
servando os objectos nas suas primitivas posições, julgo poder
considerar aquella estação como rigorosamente pertencente ao
periodo neolithico, igualmente denominado ultima idade da "pe-
dra, idade da pedra polida, ou idade da pedra neolithica.
A importância da estação de Aljezur poderá desde já com-
prehender-se, sabendo-se que no Algarve é a que mais se ap-
proxima, com os seus característicos de epocha, da primeira até
hoje verificada no Alemtejo.
Seguindo a ordem determinada na carta prehistorica em re-
ferencia ás antas ou dolmens sob íiimuli com galerias cobertas,
passarei a dar noticia da estação immediata á de Aljezur.
Monte amarello. — Tomando como ponto de referencia a
igreja de Bensafrim, o Monte Amarello está situado approxima-
damente a noroeste e distante da torre uns 3 kilometros, ele-
205
vando-se a 13(3 melros em plena região carbonífera com dila-
tada encosta ligeiramente accidentada, tendo ao sul e a sueste
a estreita faxa triassica, que corta toda esta província de oeste
para leste, em que assenta com a sua igreja a velha aldeia do
mesmo nome, cuja área foi oceupada por varias populações pre-
historicas e por algumas dos tempos históricos anteriormente á
fundação da monarchia portugueza.
O Monte Amarello já eu conhecia desde 1878 e estava re-
presentado no museu por um machado de pedra, que comprei a
um camponez em Bensafrim, onde aquelle sitio me fora muito
recommendado juntamente com o da Sernadinha, que lhe fica ao
norte e em distancia de 1:200 metros numa cota menos eleva-
da, por serem terrenos muito abundantes de instrumentos de
pedra.
Diziam os informadores, que se tinha alli descoberto uma
cova muito larga e funda, inteiramente rodeada de pedras gran-
díssimas, com muitos ossos, pedaços de louça e outras cousas,
que não sabiam explicar, mas que aquella grande cova, que mais
parecia uma nora antiga do que sepultura em que gente tivesse
sido enterrada, fora entaipada havia muito tempo, e por isso se-
ria bastante difficil atinar-se ainda com o logar d'ella, por ter
sido emparelhada com a terra cultivada.
Para quem explorou tantos dolmens cobertos bastaria esta sin-
gela informação para ficar percebendo, que no Monte Amarello
existia um d'esses monumentos, e que deve ainda achar-se, sa-
bendo-se procurar!
Era aquelle monte um dos pontos que linha projectado pes-
quizar em 1882, quando passei de Alcalá para Aljezur, tencio-
nando para este fim demorar-me uns dias em Bensafrim, onde
outros logares próximos lambem projectei examinar; mas como
só tinha quarenta dias para a exploração complementar, de que
o governo me encarregou para o preenchimento de varias lacu-
nas que havia na carta prehistorica, e os trabalhos importantíssi-
mos de Alcalá já me tinham absorvido os primeiros trinta, entendi
não dever prejudicar os estudos em Aljezur e na Torre dos Fra-
20G
des por serem esses pontos, principaes estações d'esta provín-
cia, os que exigiam maior cuidado pela homogeneidade das suas
manifestações e pela sua importância geographica, por isso que
este era o que mais se approximava das estações prehistoricas
da Andaluzia e aquelle o que de mais perto se ligava com as do
Alemtejo.
Segui logo para Aljezur, acompanhado do meu prestadio
amigo Nunes da Gloria, novo prior de Bensafrim, que mui obse-
quiosamente se tinha offerecido para me auxiliar com os seus mi-
mosos trabalhos de desenho ; e assim ficaram o Monte Amarello,
a Sernadinha, a Fonte Velha e mais alguns logares sem o reco-
nhecimento que lhes havia destinado.
Faltando-me indicar na carta o Monte Amarello, acabados os
trabalhos em Aljezur, foi o intelli gente padre Nunes da Gloria, já
mui pratico interprete dos critérios archeologicos, visitar aquelle
monte para poder offerecer-me as suas, para mim, bem concei-
tuadas informações. Mostrou-lhe o lavrador que alli reside uma
farta collecção de machados e outros instrumentos de pedra, em
que havia alguns de quartzo e núcleos de crystal de rocha, tudo
por elle extrahido, porventura de algum monumento destruído,
cujas noticias reservou.
O padre Gloria, percorrendo as encostas do Monte e das
serras mais próximas que circumdam o casal, achou entre os
matos e mesmo em logares menos agrestes umas como calça-
das de configuração circular com 2 a 5 metros de diâmetro,
notando além d'isto uns montículos artificiaes de figura mammi-
lar, similhantes aos que já tinha explorado e visto explorar em
Alcalá, concentrando monumentos dohnenicos, de que elle próprio
havia magistralmente levantado plantas e perfis, como adiante, e
principalmente no segundo volume d'esta obra mostrarei, e en-
controu também esparsos no matagal grandes pedaços de pedra
de moagem de aspecto granitoide, mui provavelmente da rocha
da Foya, como confirmando um característico dos lares ha mui-
tos milhares de annos desertos e arrazados.
Não ha pois que por em duvida a significação d'esses monticu-
207
los. tão conhecidos, tanlo mais em presença de tantos artefactos
em grande parte similhanles aos de Alcaiá e Aljezur, que alli
tinham sido achados.
E que podem significar aquellas calçadas circulares por en-
tre os cistaes c outras vegetações silvestres, guarnecendo as en-
costas dos serros circumvizinhos do casal, senão monumentos,
ainda assignalados, ou restos fundamentaes de habitações re-
motas?
E mister saber-se que na ultima idade da pedra, embora
muitas grutas e cavernas servissem de abrigo e vivenda, assim
como também serviram para depósitos mortuários, outras habi-
tações construíram as populações neolithicas, ora sobre esta-
caria cravada nos lagos, ora formando agrupamentos no solo
enxuto, quando certas condições favoráveis á vida assim o exi-
giam.
Pertencem a essa idade remotíssima, como já disse, as mais
antigas palafittas ou cidades lacustres, fundadas mais geral-
mente nas margens molhadas dos lagos sobre a estacaria, que
o poderoso machado, a enxó e o escopro de pedra conquista-
vam ás florestas, cidades que continuaram a construir os homens
da idade do bronze e da idade do ferro em vários paizes, como
foram, sobre todos, a Suissa, em que o sábio Keller já cm 1879
contava cento sessenta e uma e bem assim, além de outros, a
Itália, o Wurtemberg, a Baviera e a Áustria.
Mas não eram as grutas, as cavernas e as palafittas as úni-
cas vivendas humanas. Onde não podia haver taes abrigos, as
populações tiveram de construir habitações terrestres, ora sobre
o solo, ora exeavando-as na terra. Para estas moradas procu-
raram os homens da ultima idade da pedra os plan'altos, ou
logares melhor defendidos por condições naturaes, comquanto
oceupassem também as rampas mais próximas de ribeiras e al-
gumas vezes as planícies. De tudo isto ha varias provas já veri-
ficadas, principalmente na França e na Itália.
Estas habitações, como já disse, eram exeavadas no solo, va-
riando o seu diâmetro de lra,50 a 8 metros e a sua profundidade entre
208
lm,15 e 2 metros. São já raras as que se conservam intactas, por-
que a agricultura, os agentes meteorológicos e outras diversas
causas as têem destruído, apagando-lhes os próprios vestígios,
alguns dos quaes ainda todavia se manifestam com um typo es-
pecial e se fazem reconhecer mesmo nas terras lavradas, quando
nellas apparecem manchas circulares de uma cor mais escura,
que se formaram de terra vegetal e cinzeiros mais ou menos
mesclados de carvões.
Bem deixam estes característicos entender, que em taes vi-
vendas se accendia lume e que ao lume se preparavam alguns ali-
mentos, tendo apparecido numerosos pedaços de vasilhas de
barro e pedras tostadas pela acção do fogo, sobre as quaes as-
sentariam as louças e talvez mesmo seriam assadas algumas
iguarias. Ahi têem apparecido também facas e lascas de silex,
machados, enxós, percutores, objectos de osso trabalhado, e ossos
dos animaes, de que se alimentavam os donos da casa, sendo os
mais frequentes os de boi, carneiro, cabra, cavallo, porco, e de
varias aves, não faltando ao mesmo tempo conchas de vários
molluscos marítimos, taes como de Ostrea, PuUastra, Cardium,
Mytilus, e de outros; o que mostra que a cozinha neolithica po-
deria ser insípida a falta de sal e de adubos, mas mui soffrivel-
mente variada e substanciosa.
O sr. de Mortillet indica e descreve alguns d'esses logares de
habitação, especificando o planalto de Gampigny, no Senna-In-
ferior, o Campo de Chassey, no Saône et Loire, e muitos outros
na Itália, em que taes vivendas, cobertas de cabanas, constituíam
as povoações terrestres no período neolithico.
Eis-aqui porque as calçadas circulares das rampas do Monte
Àmarello e das serras próximas bem podem representar assen-
tamentos d'essas cabanas, que desde então até hoje, mais ou
menos modificadas, ainda são construídas e habitadas em mui-
tos paizes, tanto nos campos, como nos centros de populações
marítimas. A sua situação naquelles montes e serras permitte
presumir-se que estariam sobre o solo em vez de serem n'elle
excavadas, comquanto não faltem n'esta província, e na própria
209
aldeia de Bensafrim, muitos subterrâneos, que a tradição refere
terem sido celleiros antigos, mas que também podem ter sido
primitivamente togares de habitarão, embora depois aproveitados
por nacionalidades históricas para arrecadação de cereaes.
Só na rua da Igreja e na de Santo António, em Bensafrim,
explorei eu 25 cTesses receptáculos, e muitos nas ruas de Pa-
derne, os quaes estavam cheios de entulhos, mesclados de fra-
gmentos de louças e vidros romanos e de louças árabes, com
muitos ossos de gado grosso e miúdo e abundantes conchas de
molluscos marítimos, que foi o que mais me admirou, pela
grande distancia a que d'alli estão as praias do oceano.
Ficam portanto indicadas as antiguidades do Monte Ama-
rello a quem um dia as souber explorar.
Houve alli, sem duvida, alguma uma estação neolithica, cujas
característicos, colligidos pelo lavrador d'aquelle monte, são idên-
ticos aos de Aljezur, se ainda se lhes acerescentarem alguns fra-
gmentos de placas de schisto com gravuras, que a curta distan-
cia têem sido achados, assim como no próprio sitio cia Mortinha,
a pouco mais de 1 kilomelro ao norte da aldeia, em proprie-
dade do rev.d0 prior de Lagos, o sr. Manuel José de Barros, a
quem sou devedor do offerecimento de quasi todos os machados
de pedra que trouxe de Bensafrim e das pedras com inscripções
desconhecidas, que tinham sido achadas em sepulturas no sitio
da Fonte Velha, também chamado Sellões da Mina.
Por não ter podido fazer pesquiza alguma entre Bensafrim e
Aljezur, não me aventuro a indicar outros logares que notei
nesse trajecto, onde julgo deverem existir mais alguns monu-
mentos, como se deve suppor, havendo entre aquelles pontos
uma distancia approximadamente de quatro léguas métricas ; e
é o que também penso dever-se achar entre Aljezur e Odeseixe,
onde não faltam indícios apparentes na configuração de certos
montes que se avizinham das muitas ribeiras que sulcam aquelle
terreno até á margem esquerda do rio Odeseixe, Deseixe, ou tal-
vez rio de seixos, outrora navegável.
ii
210
Serro grande. — Toda a área da freguezia da Luz, perten-
cente ao concelho de Lagos, occupa uma parle do cretáceo in-
ferior (?), comprehendida entre o jurássico superior, ao norte, e
a raia marítima, ao sul, em que uma secção da rocha, batida
pela continua acção erosiva das aguas do oceano, tem desco-
berta uma espessa camada de molluscos fosseis do género Ne-
rincea, de aspecto fusiforme, espécie nova, que o sr. Choffat de-
sigou com o nome de algarbiensis.
A igreja da Senhora da Luz está situada a oes-sudoesle de
Lagos, e a noroeste da torre dos sinos, distante pouco mais de
1 kilometro, vê-se o chamado Serro Grande, attingindo sobre o
nivel do mar a elevação de 143 metros.
O Serro Grande é abrangido pela denominada Quinta da
Luz, pertencente aos herdeiros de José Maria de Mello. Álli brota
um copioso manancial de excellente agua, que hoje rega a horta
daquella quinta, e outr'ora forneceu as piscinas de um grandioso
edifício de banhos, assim como outros muitos adherentes ao rico
estabelecimento de salga de peixe, cujos vestígios apparentes
ainda oceupam a extensão de 156 metros, que os romanos, me
parece, terem já achado em menor escala; pois a este conceito
fui levado em vista dos diversos cimentos que notei nos tanques
de salga e de alguns materiaes já servidos, que observei na con-
strucção do edifício balneareo, o qual ainda se prolonga muito
para noroeste e mais uns 90 metros para o sudoeste, podendo
assim calcular, pelo que resta á vista, e pelos cortes que fiz, um
alinhamento de construcções, no parallelo da raia molhada, não
menor de 300 metros.
O próprio Serro Grande e os terrenos que pendem para a
praia, mostram abundantes signaes de edifícios romanos, devendo
entender-se que toda aquella parte cia região lacobrigense já ti-
nha sido muito anteriormente utilisada, porquanto foi mesmo junto
da nascente do Serro Grande que o seu antigo proprietário
descobriu e estragou um dolmen coberto, que mostra ter tido a
mesma configuração dos que explorei na Marcella, na Torre dos
Frades e n'outros logares. Restam de pé três monolithos, dispôs-
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Uhojraphia. Rua de Moinho de Vento
211
tos em curva, sem intervallo sensível entre si. mostrando a dis-
posição dos que fechavam uma crypta circular, cuja galeria de
accesso foi também destruída pelo dito proprietário, arrancando
toda a pedra dos seus flancos, assim como a que falta na cry-
pta. E porque o próprio pavimento do monumento tinha também
sido excavado, não foi possível cotar com exactidão a altura pri-
mitiva do eixo vertical. Junto porém dos monolithos existentes
mandei excavar, assim como desentupir os interstícios que entre
elles havia; o que deu em resultado achar ainda alguns caracte-
rísticos assaz valiosos para a classificação da epocha que deve
representar aquella estação.
A estampa i, sob n.° 1 , representa cinco lascas pont'agudas,
(tendo a primeira perdido a vértice) que podem ter sido furadores;
afig. n.° 2 pode ter sido um instrumento perforante, por ter duas
pontas acutissimas, uma lasca cortante, por ter um gume afila-
dissimo, ou uma frecha cortante, se fora encravada na haste pelo
lado opposto ao corte. Sendo objecto de tão minguada corpulên-
cia, podia pois ter tido diverso préstimo e ser utíl em assignala-
das applicações, ao contrario do que succcdc relativamente a
muitos indivíduos, que para tudo se julgam superiores a todos os
viventes, mas que ainda não comprovaram as suas aptidões. Os
de n.os 3 e 4 foram indubitavelmente lascas cortantes, e o n.° 5,
que é fragmento de faca de silex, não teria outro préstimo.
Os n.os 6 e 7 são pontas de silex troncadas, de feição gros-
seira, ou talvez furadores obliterados; não se pode julgar que fos-
sem pontas de frecha, em vista do apurado trabalho que distin-
gue este artefacto no período neolithico. O n.° 8 é fragmento de
uma faca de quartzo ; o n.° 9, que o desenhador inverteu, e o
n.° 10, também de quartzo, parece terem sido instrumentos
pont'agudos accidentalmente troncados. Os n.os li e 12 são vi-
síveis fragmentos de facas de silex e o n.° 13 uma faca mui per-
feita com dois gumes afilados. O instrumento n.° 14 é uma pe-
quena enxó cuneiforme de schisto amphibolico, com uma só
faceta formando o corte: é todo polido. O n.° 15 representa um
fragmento de instrumento polido de schisto aphanitico, cujo corte
212
é formado por duas faceias opposlas e convergentes: parece um
escopro.
Tanto este como o antecedente mostra uma faxa escura e
vertical no centro, representando o rotulo que a photographia re-
produziu e que o desenhador fielmente respeitou, não lhe occor-
rendo ser um objecto estranho áquelles instrumentos! A fig.
n.° 16 representa um osso, cuja espessura máxima entre as fa-
ces lateraes é de 0m,021. Na face inferior é desbastado no sen-
tido das extremidades, a curta distancia das quaes tem dois
orifícios que passam ao lado opposto. Mede 0m,130 de compri-
mento e 0m,029 de largura máxima. Parece ter sido insigniaou
objecto de adorno que se usara enfiado e suspenso, e que ao
entalho do bordo inferior teria ligado ou adherente uma outra
peça de suspensão. As superfícies estão polidas.
Appareceram também alguns fragmentos de ossos humanos,
e de placas de schisto negro com gravuras geométricas, e final-
mente colligi mais 35 lascas de pedra calcarea, de varias for-
mas, quasi todas com arestas cortantes, parecendo que pela
maior parte teriam sido ponfagudas, á similhança de farpas
de frecha, mas cujas secções termihaes foram separadas por
fractura.
Todos estes objectos estão ordenados no museu, permittindo
o seu conjuncto julgar-se, que o destruído dolmen coberto do
Serro Grande pode caracterisar o periodo neolithico.
Era esta a estação mais occidental do Algarve em relação aos
descobrimentos que effectuei até ao fim de 1878, e portanto a pri-
meira que poderia ligar- se com as de característicos similhantes
já conhecidas no Alemtejo. Havia, pois, uma grande distancia,
cujo intermédio bem deixava persuadir a existência de outras
estações não ainda descobertas. Com effeito, a exploração com-
plementar em 1882 confirmou esta supposição, indicando a do
Monte Amarello, e a de Aljezur, que ficou marcando o ponto de
passagem d'esta para aquella província, comquanto se deva pre-
sumir, que mais alguma estação se poderia descobrir, se fosse
procurada por pessoa competentemente pratica em taes pesquizas.
213
Escusado é dizer, que o estado de destruição do monu-
mento do Serro Grande não permittiu que se figurasse em
planta. Só foi possível medir os Ires monolithos, cuja altura aclíei
ser de im,25 a im,37, com larguras pouco menores.
Alcalá, Dolmen coberto sob tumulas. — Alcalá, ou Alcalar,
pertencente ao concelho de Portimão e freguezia da Mexilhoeira
Grande, é um largo campo, dividido em propriedades ruraes,
cuja orographia não attinge relevo muito accidentado. A sua
maior cota mede 74 metros sobre o nivel do mar. Poucos mon-
tes habitados tem. Francisco Furtado é alli residente e possui-
dor, com o lavrador Manuel Duarte, da freguezia do Marmelele,
de um cercado arborisado de oliveiras e alfarrobeiras, quasi in-
teiramente coberto de pedras soltas, provenientes de outeiros
artificiaes destruídos, em que de oeste para leste se ergue com
ligeira ondulação uma pouco elevada collina, que não excede no
seu ponto culminante a altura de 7 metros em relação á pla-
nície adjacente, a qual d'csse ponto para leste decresce até o
plano do caminho que segue do sitio da Torre para Monchique
pela Senhora do Verde, onde começa de novo a levantar-se em
rampa suave, já ahi pertencente á herdade de D. Maria Firmi-
na, da villa de Alvor, formando n'esse terreno a sua maior sum-
midade com 10m,80 de altura em referencia ao plano do dito ca-
minho.
Ao poente abre passagem para a Mexilhoeira Grande, for-
mando á entrada do cercado um angulo obtuso, e a sueste corre
a que parte do Poço e da Torre para o ribeiro do Pereiro e Pe-
reira. Ao norte está separado pelo muro da cerca do lavrador
José Vicente, do sitio da Meia Vianna, pertencente á freguezia de
Monchique, e pelo sul chega até o caminho, que no rumo de
nor-nordeste vae, como dito fica, pela Senhora do Verde para
Monchique, e da Torre, no de nor-noroeste, para o mencionado
ribeiro e também para a Mexilhoeira, que lhe fica a sudoeste e em
distancia de uns 5 kilometros.
Com immensa difficuldade eslava sendo parcialmente apro-
214
veitado para lavoura o cercado de Alcalá, porque a pedra solta,
cobrindo-o quasi todo, impedia o trabalho da cultura, e por isso
anteriormente jazia quasi inculto.
Um presbytcro exemplar, de minguado volume physico, mas
de elevada estatura intellectual, artista por Índole, e por costume
laborioso, sem nunca faltar no seu posto evangélico, achando-se
durante muitos annos isolado na freguezia da Mexilhoeira Gran-
de, onde todo o povo o estimava e reconhecia como sendo um
dos parochos mais distinctos que alli tinha havido, dividia lodo
o tempo que lhe ficava livre em estudos, em percorrer toda a
área da sua freguezia para lhe conhecer as necessidades locaes,
e em obras que estavam ao alcance, mais do seu animo e espi-
rito engenhoso, do que dos seus modestos haveres; e assim, uma
das obras que alli o deixaram memorado, com gratíssima lem-
brança, foi a restauração da igreja, em que tomou parte tão acti-
va, que não houve trabalho que não dirigisse e em que deixasse
de pôr mão.
O templo foi renovado e estucado até o tecto. Carecia de no-
vas pinturas e dourados e de um novo quadro pintado a óleo,
que representasse sobre o fundo da câpella mor a padroeira Vir-
gem d'Assumpção. Tudo isso fez com especial acerto e mestria
o presbytero artista António José Nunes da Gloria, parocho di-
gníssimo, esculptor, estucador e pintor distincto. A igreja ficou
pois um primor de compostura e como reflectindo as alegrias
com que o seu respeitável e bondosíssimo pastor a tinha embel-
lezado. Quando alguém alli vae de fora e pergunta quem moldou
os relevos em gesso, quem fez os dourados e pinturas, e quem
pintou o grande quadro da capella mor, todas logo acodem di-
zendo ser tudo obra do padre Gloria.
O padre Gloria tinha tempo para tudo ; conhecia palmo a
palmo todos os cantinhos da freguezia; levantou a planta de
toda a sua circumscripção parochial, tomando particular gosto e
cuidado pelas antiguidades locaes que descobria. Quando em
junho de 1882 foi transferido para Bensafrim, já também era
archeologo.
215
Em 1878 tinha eu ido ao silio da Mesquita fazer o reconhe-
cimento de umas ruínas parcialmente apparentes, de que dava
noticia Silva Lopes na Chorographia do Algarve, e como não era
possível, depois de conhecida a epocha a que pertenciam, para
o logar poder ser marcado na carta, desenvolver a exploração a
ponto de ficar totalmente á vista a planta dos edifícios arraza-
dos, levantei um esboço cotado do que tinha descoberto, para
d'alli seguir logo para outro ponto.
Constou porém ao padre Gloria, que n'aquelle dia tinha eu
trabalhos a fazer na Mesquita; foi ao meu encontro, e ficámos
logo conhecidos; mas vendo elie que havia ainda muito por des-
cobrir, offereceu-se-me para explorar o resto á sua custa e man-
dar-me a planta do que achasse. Acceitei, agradeci e despedi-
me. Pouco tempo depois enviava-me uma planta geral das ruinas
da Mesquita com a classificação do edifício que representavam.
Ficámos amigos e até hoje em correspondência de noticias re-
lativas aos nossos estudos.
Em 1880, sabendo o padre Gloria que eu estava incumbido
de fundar o museu archeologico do Algarve, lançou as suas vis-
tas para os lados de Alcalá; viu alli um outeiro, que não lhe
pareceu obra da natureza; chamou gente, e ao cortara cúpula do
montículo, apparcceu-lhe um monumento; mas como lhe ficava
a uma légua da igreja, onde tinha obrigações quotidianas, a que
nunca faltava, limitou-se a pôr á vista o que lhe foi possí-
vel, e tendo d'alli extrahido tantos objectos que encheram cinco
grandes caixas, levantou a planta do que chegou a ver, e man-
dou-me offerecer todos os productos d'aquella bem aventurada
pesquiza. O resto da exploração, dizia elle, ficava reservado para
mim, e com effeito ficou.
Agora vae ver-se até que ponto chegou o que até então pa-
recia um simples curioso.
A estampa n representa o trabalho que o padre Gloria fez á
custa da sua intelligencia, e da sua bolsa, já habituada a abrir-se
unicamente para cousas úteis e boas.
A figura central sob o n.° 1 mostra a configuração c o typo do
216
monumento. Copiou fielmente o que viu, porque em obra dese-
nhada á penna, os que poderem imital-o, não poderão excedel-o
na exactidão.
O monumento mostra um perímetro polygonal, approximan-
do-se do circulo. E composto de alentados monolithos de grés,
formando circuito, cravados no solo com inclinação convergente
para. a extremidade superior, sendo reforçados por uma outra or-
dem de grandes pedras que externamente os circumda. O seu curto
vestíbulo de entrada n. aponta para o sul proximamente, e é fe-
chado por uma grande pedra (porta) encostada aos esteios late-
raes. Todas as outras pedras figuradas na contiguidade do mo-
numento seriam talvez os travessões (mesas) que serviam de tecto
antes de deslocadas por alguma antiga invasão. A fig. 2, desenhada
em maior escala com o mesmo numero, mostra uma delgada lage
de schisto de lm,70 de comprimento e 0m,40 na maior largura,
com uns sulcos gravados, que estava diagonalmente atravessada
na camará sepulchral. Junto d'esta lage achou-se a pedra calca-
rea subcylindrica 3, toscamente trabalhada, a qual vae figu-
rada em maior escala sob o mesmo n.° 3, tendo de altura 0m,55
e nos dois planos horisontaes e parallelos, de configuração pro-
ximamente circular, 0m,46 por 40m,0 nos diâmetros que perpen-
dicularmente se cruzam.
E assaz mysteriosa a significação d'aquella estreita lage ; pois
deixa lembrar a existência de uma mesa interna, ou altar com
seus symbolos gravados, tendo junto de si uma outra, que pode
ter sido destinada a alguma ceremonia no aclo da entrada dos
cadáveres, ou a servir de pedestal de algumas relíquias huma-
nas mais veneradas, se é que não esteve primitivamente collo-
cada no angulo superior immediato para deixar assentar uma
extremidade da mesa, se a outra estava inserida no angulo em
que se vê figurada na planta, formado por dois monolithos, como
parece.
A secção comprehendida entre a lage, fig. 2, e o topo da
crypta manifestou muitos ossos em desordenado amontoamento,
como se para alli tivessem sido lançados no acto de uma inva-
217
são, como chegou a ser percebida quando o monumento foi to-
talmente explorado.
O corte ou perfil acima figurado na estampa representa ha-
ver sido feita a construcção no solo natural e em torno de uma
grande lage.
A fig. 7 mostra o corte vertical pelo centro do dolmen e do
outeiro que foi artificialmente levantado por três camadas de
pedras, sendo muito gradas a do plano inferior, muito miúdas
a da camada sobreposta e menos miúdas a da camada su-
perior.
Nestas pedras vegelam muitas cryptogamicas, e entre ellas
alguns arbustos silvestres l>, o9 d9 e9 f . Pareceu á primeira
vista estarem as camadas de pedra partida ligadas por um ci-
mento de cal; verifiquei, porém, que o que parecia ser cimento,
era apenas o resultado da decomposição do calcareo, formando
depósitos que os ligavam, e até pequenas estalactites, como se
podem observar no museu.
As fig. 5 e fi indicam pedras de grés vermelho, precipita-
das no interior do monumento, parecendo terem feito parte inte-
grante da cobertura da crypta, que não seria á feição de mesa, mas
de cúpula, e fechada pela pedra cuneiforme n.° 4, na qual foi
abatida por choques de percutor uma saliência natural um tanto
hemispherica.
A planta n.° 9 representa uma parte da galeria de outro mo-
numento já destruído, de que o explorador nada mais achou.
Tinha o pavimento empedrado com lages de schisto, a porta 10
no seu competente logar, mas já lhe faltavam alguns menhirs
n'um e noutro flanco.
Todo o espaço que circumda o monumento, e que no corte
sob letra g* mostra ter interrompido a disposição regular das
camadas de pedra com que o tumulas foi formado, representa o
âmbito de uma invasão. O hábil explorador encontrou alli nu-
merosos fragmentos da louça que fora extrahida do interior da
camará mortuária, muitos ossos partidos e outros objectos. A in-
vasão operou-se pelo tecto da crypta e pelo lado direito, d'onde
218
foi arrancado o segundo menhir, como vae figurado na planta
rectificada.
Foram numerosíssimos os artefactos descobertos e colligidos
pelo explorador. Todos me offereceu e remetteu em cinco gran-
des caixas. Vão alguns reproduzidos em estampas e todos elles
estão depositados no museu.
A exploração não ficou porém completa; fui concluil-a, e tudo
se pôz á vista, achando ainda interessantes objectos. Foi en-
tão que o padre Nunes da Gloria pôde levantar a nova planta,
que vou descrever, com a mais rigorosa exacção.
A estampa iia mostra o resultado da minha exploração.
O monumento, como se observa na planta e no perfil, é ri-
gorosamente dolmenico. Oito corpulentos monolithos de grés, de
que só falta um, formam o polygono. 0 1.° do lado de nordeste
mede de largura lm,60 e de altura 2m,30; o 2.°, de largura
Om,7õ; o 3.° im,10; o 4.° 0ra,90; o 5.° lm,60; o 6.° 0,n,9:>; o 7.°
(0m,50?) falta; e o 8.° 0m,70. Este ultimo servia ao mesmo
tempo de batente da poria, que deve ter também encostado no
outro esteio transversal, que forma o flanco fronteiro de entrada
para a crypta e tem de largura lm,25. Do lado de nordeste o
flanco do vestíbulo é composto de dois monolithos, formando in-
ternamente um angulo obtuso: o 1.°, adherente ao batente da
crypta, tem a largura de 0m,85 e de altura l'°,90; o 2.° mede de
largura 0,n,65. O flanco de sudoeste apenas tem um menhir com
i,n,65 de largura. De encosto a este e ao do lado opposto as-
senta a porta externa do vestíbulo com 0Tn,70 de largura, me-
dindo a abertura da entrada somente 0m,63. A: porta é firmada
com duas pedras grossas, cravadas no chão, mas de pouca sa-
liência. Estava intacta.
O eixo longitudinal do dolmen, partindo da porta do vestíbu-
lo, apontada a sueste, corre no sentido de noroeste. O \^nbulo
é mui curto; mede apenas de extensão lm,60. O diâmetro da
crypta no eixo longitudinal tem 2m,70 e no transversal, de nor-
deste a sudoeste, 2m,60. Portanto, o eixo total interno mede de
extensão 4m,30.
JPs/: TIA
Wfcexxx-vesíÀAxJ /)^xJ jX^.^c^M^/eÀ/caJ y^CvuAÃ)*
hA&aJtòU d& A : %0$
<£**. CU. 3. %. JàaJ fb>UaJ.
lith.epra.phi*- tln. Imprens*. WeucLona.1 .
219
A crypta é externamente reforçada por outro circuito de
enormes monolithos, e o pavimento quasi tomado por uma
grande lage não trabalhada, que serviu de fundamento á con-
strucção.
O sitio de Alcalá occupa uma extremidade da faxa do trias,
que alli corre com largura superior a 1 kilometro; mas estava
apenas separado do contacto da região carbonífera pouco mais
de 100 metros. O ponto, porém, mais perto de Alcalá, em que as
afflorações de maior vulto se manifestam, é o de Pegos Verdes,
relativamente assaz distante, e comíudo é mui provável que d'alli,
á custa de incalculável trabalho, fossem transportados os enor-
mes monolithos que entraram na construcção d'aquelle dolmen e
de outros monumentos do mesmo campo, de que hei de oceu-
par-me em seu competente logar, por pertencerem á transição da
ultima idade da pedra para a idade do bronze.
Na planta rectificada (estampa iia), respectiva á minha ex-
ploração, reproduzo o desenho de mais uma d?aquellas pedras
ornadas de sulcos, a que já me referi, suppondo que taes pedras
sejam fragmentos das mesas que cobriam o dolmen, e que o
seu lavor ornamental inspire qualquer significação, a que o
meu curto entendimento não possa chegar; pois é possível
qué os especialistas de hierogliphicos cheguem a descobrir no
cruzamento de tão enredadas linhas alguns característicos em-
blemáticos de uma paleographia rudimentar, ou a idéa que pre-
sidiu áquelle, para mim, indecifrável trabalho.
Mandei arrecadar aquellas pedras juntamente com uma
grande esphera de calcareo que havia no interior do dolmen e
mais uns fragmentos, que ainda consegui colligir da faxa orna-
mentada dos famosos menhirs de grés vermelho, que em 1878
descobri na cumeada de S. Bartholomeu de Messines, bem
como outro de uma das pyramides de calcareo com o mesmo
ornato, que tinha visto erguida no monte da Pedra Branca, perto
de Silves, monumentos que então me propuz salvar, requisitan-
do-os para o museu do Algarve, e que o governo deixou des-
truir, receiando talvez a despeza do transporte; pois quando em
220
1882 voltei áquelles sitios, a pyramide, que havia dado o nome
ao monte da Pedra Branca, tinha sido aproveitada para uma
farta fornada de cal, e os menhirs de grés estavam transforma-
dos em grandes pias para o gado beber agua!
Todos esses pedaços de pedras estão resguardados dentro
de grades de madeira na administração do concelho de Porti-
mão, esperando por um governo que comprehcnda a necessidade
de não ter por mais tempo inutilisado o museu archeologico do
Algarve, e queira, consequentemente, proteger a sua rcorgani-
sação, em vez de consentir á academia de bellas artes (que
já deslocou a collecção dos mosaicos por mim colligidos, col-
locando-os no seu celebre museu das Janellas Verdes) * ou a
qualquer outra instituição, que vá lançado mão de objectos que
devem estar methodicamente reunidos para não perderem a sua
genuína significação e importância scientifica.
As mencionadas pedras com ornatos, que figuro na estampa n
sob os n.os 5 e 6 são as que na estampa ha reproduzo em me-
nor escala com as letras a e t>, e a que vae marcada com a
letra o é a que achei em dois pedaços, que perfeitamente se aju-
stam, como no desenho se mostra,' e mandei arrecadar com as ou-
tras.
Com referencia ao monumento, resta-me accrescentar, que a
porta do átrio está apontada para sueste e que o seu eixo longi-
1 A academia de bellas artes, estando depositaria do museu que tudo me deve, man-
dou para o palácio das Janellas Verdes 40 exemplares dos mosaicos que eucolligi no Al-
garve e tinha no museu, collocados em rigorosa ordem geographica, para representarem
as terras que os romanos deixaram assignaladas com os famosos edifícios, que devo des-
crever no terceiro volume d'esta obra e indicar na carta archeologica dos tempos históri-
cos. Mas qual foi a minha surpreza, quando ao entrar n'aquelle chamado Museu nacional
de bellas arlcs (onde a desordem nasceu da inépcia e a inépcia da incompetência dos seus
instituidores); dei logo de frente com os preciosos mosaicos, que tantas fadigas e traba-
lhos me custaram, vendo-os collocados sem a minima ordenança, como tudo quanto lá
está, e já peia maior parte sem os rótulos que indicavam o concelho, a freguezia e a
terra, que cada um representava, e que ninguém é capaz de lh'os tornar a pòr senão eu?
Os que tanto apregoam a sua sabedoria, querendo dirigir instituições que não sa-
bem compreliender nem organisar, são precisamente áquelles que praticam estes e ou-
tros vandalismos !
Permitta-se-me que, em presença de tão lamentáveis desconcertos, aqui registre
um brado de indignação e um firme protesto contra tanto barbarismo !
221
tudinal corre no sentido de noroeste, tomada a orientação pelo
norte magnético. Registre-se desde já esta circumstancia, para,
em vista da orientação dos outros monumentos preliistoricos, se
ficar entendendo, que na ultima idade da pedra, e ainda mesmo
na idade do bronze, a orientação dos jazigos não era intencional
nem subordinada a qualquer preconceito, ou idéa religiosa.
Tratarei agora dos caracteristicos ethnicos c industriaes que
o monumento manifestou.
Os ossos encontrados no dolmen coberto de Alcalá estavam
reduzidos a pedaços. Pouco podem significar com referencia ás
revelações ethnicas que deviam fornecer, se ainda alli se conser-
vassem algumas cabeças ósseas, ou craneos, em estado de se po-
derem stereographar e medir. Os fragmentos de craneos colligi-
dos mui cuidadosamente pelo intelligente padre Gloria, são pou-
cos e deficientes. A maior peça que achei foi um osso frontal,
tendo ainda intacta a arcada orbitaria esquerda. A pouca con-
vexidade d'este osso, a grande proeminência supraciliar e a pe-
quena saliência da correspondente bossa frontal, são caracterí-
sticos que deixam presumir, com as devidas reservas, pertence-
rem a um craneo dolichocephalo.
Entretanto, apparecendo também dois fragmentos de mandí-
bulas, e conservando ainda um d'elles dois dentes incisivos, um
canino e o primeiro premolar, nota-se não haver sensível pro-
gnatismo alveolar nem dentário, geralmente frequente nas raças
inferiores ; mas como nenhum d'estes fragmentos conserva o ramo
montante com o seu condylo mandibular, e não se pode por isso
determinar o angulo da mandíbula, ignora-se portanto o grau de
inclinação que poderiam ter os incisivos, ou se com effeito o typo
dentário era orthognata. Ha porém nos ditos quatro dentes o cara-
cterístico assaz commum, nos que são verdadeiramente prehisto-
ricos, de se mostrarem igualmente arrazados e gastos, como se
tivessem sido roçados em pedra de amolar, sendo ao mesmo
lempo notável a saliência, perfeitamente conservada, da apophyse
geni, que por isso não pode considerar-se pithecoide, como a ce-
lebre mandíbula da Naulette. . .
222
Entre os ossos longos ha uns fragmentos de fémures com
muita elevação, espessura e fundo sulco na linha áspera,
Fie. i
como se nota haver nos de Cro-Magnon ; a secção transversal da
tibia não é prismática ou triangular nos três quintos superiores
Fig.2
como geralmente o é nas raças européas actuaes, mas sensivel-
mente propendente para a platycnemia, isto é, não tendo mais
que duas faces bem determinadas, sem que a superior forme an-
gulo elevado. E também característico da família de Cro-Magnon,
e de muitos depósitos neolithicos.
Outro osso se indica como característico muitas vezes apre-
ciado em depósitos d'esses tempos e é o perono-canellado, como
o que represento sob a
Fig. 3
A perforação do hiimerus na cavidade olecraneana é cara-
cterístico de antigas raças européas, comquanto não seja geral;
entra em proporções mui variáveis e por isso não o julgo assaz
seguro: assim, na caverna do Homem Morto (Lozère) em cem
223
humeros, dez eram perforados, do mesmo modo que nos dol-
mens d'aquelle departamento da França.
Esta proporção augmcnta, porém, na razão de vinte e um por
cem nas estações neolithicas de Vaurcal, d'Orrouy e Chamans. No
dolmen coberto de Alcalá colligi Ires fragmentos de humeros do
braço esquerdo, sendo um d*e)lcs somente perforado, mas nos
outros dois ha tão minguada espessura entre o fundo da cavidade
olecraneana e o da coronoidea, que, apontada á luz, se nota ter
passado ao estado de translucidez; o que parece mostrar que a
força muscular exerceu vigorosa acção n'aquclles pontos de in-
serção.
O conjuncto d*estes característicos ainda assim não permitte
seguras conclusões: entretanto parece offerecer incontestáveis re-
ferencias ás raças neolithicas.
A paleontologia era representada no deposito mortuário de
Alcalá por ossos e dentes de veado, de boi, de javali, de cabra,
de coelho e de aves, e pelas conchas de vários molluscos maríti-
mos comestíveis. Tudo isto foi achado no interior do monumento,
envolto nos entulhos, e portanto em completa desordem; mas
por isso mesmo que tantos ossos e conchas alli tinham tido en-
trada, quer pertencessem aos depósitos propriamente do dolmen,
quer n'elle se introduzissem com os entulhos que o encheram, mo-
stram ser restos inaproveitaveis da alimentação do único povo que
n'aquelle escampado deixou provas de occupação, e tanto assim
parece dever-se considerar, que basta observar-se o estado chi-
mico em que taes ossos e conchas se acham, já com grande perda
de matéria orgânica, para não poderem ser attribuidos a uma
nacionalidade menos antiga.
Os molluscos representam oito espécies, quatro univalves e
quatro bivalves: as primeiras são o Murex trunculus, Lin., Cas-
sis canaliculata, Brug., Cassis graniáosa, Lamk. e Patella clongata,
Fr.; as segundas são o vulgarissimo Càrdium edule, Lin., a Pui-
lastra decussata, Lin., abundantíssima também, um Pectuncidm,
cujas valvas se acham com frequência na praia marítima do sul,
e a Ostrea edidis, Lin.
224
Com excepção da Patella elongala, que não me recordo de
haver encontrado nas minhas excursões a raia marítima e que só
se acharia nos rochedos submersos, todas as outras espécies po-
deriam ter-se mariscado na próxima praia de Alvor ao sul de
Alcalá uns 8 kilometros; o que não julgo inverosímil, tendo
achado tantos vestígios neolithicos por toda a margem esquerda
da ribeira do Farello e do mesmo modo em todo o flanco direito
da ribeira do Verde até ás praias do oceano.
As reminiscências das sociedades paleolithicas autocthones
não podiam deixar de subsistir nos tempos neolithicos, tendo-se
n'esta região conservado o typo ethnico mais antigo da Europa.
A industria da pedra lascada e do osso manufacturado, em vez
de se extinguir, altingiu novas formas e aperfeiçoamentos, que
ficaram sendo característicos d'aquella epocha, em que também
surgiram outras industrias até então não conhecidas em parte
alguma. Alguns instrumentos que nos tempos geológicos eram
simplesmente lascados, passaram a ser parcial ou totalmente po-
lidos, assim como outros anteriormente não usados. O uso do
silex lascado vae até os tempos terciários, embora não tenha
apparecido com elles algum vestígio da cabeça que os inventou
ou das mãos que os produziram ; mas o silex lascado paleolithico
não se pode confundir com o neolithico, sobretudo nos instru-
mentos mais typicos.
Apenas uma excepção de inexplicável progresso na manu-
factura do silex appareceu com as grandes laminas biponfagu-
das, admiravelmente trabalhadas, na terceira epocha quaterná-
ria, mais conhecida pelo nome de Soluiré, que poderiam sem
repugnância julgarem-se neolithicas, se tivessem sido vistas em
depósitos de pedra polida e de louças. Esse trabalho, verdadei-
ramente surprehendente, terminou porém com aquella epocha,
pois não se tornou a ver em estações da ultima phase geoló-
gica. O lascado fino, certeiro e aperfeiçoado das grandes e del-
gadas laminas de silex das estações de Solutre só reapparece nas
famosas pontas de lança e pontas de frecha na ultima idade da
pedra. Em fim, o dolmen coberto de Alcalá vae manifestar todos
ALOALA.
Mtjsr
2á5
os produclos industriaes, que acompanhavam os indivíduos que
nelle foram sepultados; e porque estou failando em pedra las-
cada, começarei por esses artefactos, ha exemplares notavelmente
admiráveis.
A estampa 111 representa dezesete pontas de frecha de silex, pela
maior parte de formas não vulgares, entre as quaes as de n.os 1,
2 c 8 julgo serem inéditas. Não descrevo cada uma de per si,
porque toda a descripção, depois do que já expendi acerca dos
diversos typos d'estas armas de arremeço, seria escusada repe-
tição. Bastará olhar para a estampa e observal-as com attenção,
ou recorrer ao museu, onde deixei depositados todos os origi-
naes. A fig. 18 da mesma estampa mostra a secção superior de
uma ponta de lança de silex, da mesma feição das de Aljezur e
de outras que descobri no monumento da Marcella, como adiante
se verá.
Esta forma é talvez quasi privativa do território portuguez e
com certeza raríssima na Europa. Nos seus competentes logares
se irão observando os exemplares das estações neolithicas do Al-
garve. O sr. de Mortillet representa na estampa x sob o n.° 59,
do seu Musée préhistorique uma d'estas pontas de lança, incluin-
do-a entre os instrumentos chelleqnos, correspondentes á primeira
epocha do quaternário, comquanto lhe pareça poder com prefe-
rencia referil-a á immediata, ou Mousteriana, que nas cavernas,
é caracterisada, paleontologicamente, pelo Ursas spelceus. A este
respeito diz o sábio auetor: «Les instruments triangulaires, pres-
que inconnus dans les alluvions, sont três rares partout*. Esta
forma appareceu também figurada no mesmo dolmen de Alcalá
por uma lamina de schisto, que bem parece ter sido, se não des-
tinada a uma haste como arma de arremeço, alli depositada como
objecto de consagração. Vae figurada sob o n.° 3 na estampa iv,
e comquanto na linha inferior não seja idêntica, é comtudo simi-
lhante a outras de base pedunculada. Quanto a mim, não levo
tão longe as pontas triangulares de silex.
Na dita estampa m figuro com os n.os 19 e 20 dois fra-
gmentos de facas de silex, achados pelo primeiro explorador, e
lo
226
na estampa iv, sob os n.os 9 a li, represento três facas incom-
pletas, divididas na face posterior em três planos, cujos gumes
já manifestam ligeiros retoques, ou falhas provenientes do tra-
balho. Achei também um fragmento de serra de silex, ou antiga
faca retocada. Estes typos são precisamente neolithicos, assim
como os da frecha 5 a 7.
Todos os mais artefactos figurados na estampa iv são objectos
de adorno. Mais adiante os descreverei.
Na estampa v com o n.° 1 figuro um perfeito machado cie
schisto amphibolico, todo desengrossado em pedra de grés, com
duas facetas decrescentes e convergindo em gume cortante, um
tanto arqueado, em que ha ligeiras fracturas. Ficou reduzido a
menores dimensões pela photographia ; mas o original mede
0m,13 de comprimento, 0m,Q54 na maior largura e 0m,043 na
máxima espessura. Foi-me offerecido com os outros instru-
mentos representados na mesma estampa pelo rev.d0 Nunes da
Gloria, e todos estão depositados no museu.
O de n.° 2 é uma perfeita enxó de diorite policia. Tem afi-
lado corte e larga faceta, como se vê; mas as suas dimensões
medem de comprimento 0m,087, de largura junto ao corte
0m,043, e na máxima espessura 0m,015. Já deixei grupados e
descriptos estes instrumentos e por isso não julgo mister descre-
ver este com maior desenvolvimento. Lá está no museu para po-
der ser observado.
O instrumento n.° 3 foi primitivamente machado, mas pas-
sou a ser famoso polidor. E de diorite negra e fina, de rija
consistência. Tem duas faces largas e duas lateraes mais es-
treitas, formando quatro ângulos abatidos, e superiormente um
plano sub-rectangular, que serviu de polidor, cujos eixos me-
dem 0m,047 e 0m,019. O comprimento lemOm,U2, a largura
0m,054 e a espessura maior 0m,037. Junto á extremidade es-
treita está fracturado.
O n.° 4 representa um pequeno escopro com duas facetas
que decrescem até convergirem em gume cortante. Mede de com-
primento 0m,057, de largura 0m,022 e de espessura 0m,009.
ALCALA
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ALCALA
A
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U
227
Tenho agora de referir-me a outros instrumentos similhan-
tes, que descobri na exploração complementar em 1882, quando
as estampas antecedentes já estavam impressas, e são os que
voa figurar na estampa vi.
O machado que represento com o n.° i, é de schisto amphi-
bolico. Tem quatro faces, duas da largura de 0n,,0GQ junto ao
corte e duas lateraes com 0"\038, tendo porém os ângulos aba-
tidos. E quasi todo preparado com tosco trabalho. As facetas
formam duas curvas convergindo no corte, e são completamente
polidas. É instrumento assaz possante e muito denso. O seu
comprimento dá exactamente 18 centímetros. A espessura geral
é figurada á margem e representa o corte longitudinal. O corte
transversal daria uma figura proximamente rectangular, se os
ângulos não tivessem sido arredondados.
A enxó n.° 2 é de schisto amphibolico. Não é curvilínea c
portanto entra como variante no grupo das do Algarve, sem que
comtudo o seja no dos instrumentos d'este género mais vulgares
na Europa. A face posterior ó plana e não arqueada; a anterior
ó aquella em que a faceta diagonal determina o corte em arco de
circulo, sendo totalmente polida. Tem faces lateraes formando ân-
gulos rectos com as mais largas. O corte é perfeitíssimo. É exem-
plar digno de figurar nas mais selectas collecções. Mede 0m,136
de comprimento, 0m,061 de largura no corte e 0m,020 de espes-
sura.
O instrumento n.° 3 é um escopro todo polido de schisto am-
phibolico. Mede 0m, 145 de comprimento, 0m,034 na maior lar-
gura, e na máxima espessura 0in,023. E de secção transversal
quadrangular com os ângulos abatidos. Achei-o, com mais seis
instrumentos, entalado entre dois esteios do monumento. O corte
manifesta indícios de trabalho ; está ligeiramente lascado. E pro-
dueto da exploração complementar. Foi por mim descoberto no
fim de maio de 1882. E talvez o mais perfeito no seu grupo.
O instrumento, que vou figurar, foi um pequeno machado po-
lido de rija diorite, posteriormente transformado cm brunidor. E o
que represento sob o n.° h.
228
A letra A indica a face mais larga com 0m,031 junto ao
bordo superior; A' mostra o plano resultante do trabalho com
Qm,031 por 0m0U, e A" o perímetro lateral com a largura má-
xima de 0m,026, sendo a sua maior espessura de 0m,030. O
plano inferior B tem signaes de percussão. São similhantes a este
duas metades de machados, que parece terem sido assim prepa-
radas para brunidores. Todos três são de schisto amphibolico. Este
porém, n.° 4, é mui similhante ao de n.° 3 da estampa v, desco-
berto pelo rev.d0 Nunes da Gloria.
Um outro pequeno instrumento achei eu com os anteceden-
tes: é o que indico sob o n.° 5. Pela sua configuração deveria
incluir-se no género escopro. Parece porém um brunidor. Tem a
forma rectangular, como se vê, no plano transversal C e na
face C, e comquanto termine em bocca de escopro, não o podia
ser de rocha tão branda. O seu aspecto avermelhado e micaceo
fez-me a principio julgar que fosse de mármore griotte; era po-
rém menos duro, e de granulação, embora mui fina, muito mais
áspera, porque era de grés, e por isso não podia ter sido empre-
gado como instrumento cortante. Nas suas facetas ha estrias
e no gume duas falhas, parecendo provenientes da acção do tra-
balho.
Poderia pois ter servido para desengrossar e aperfeiçoar
objectos delicados, ou entraria no deposito como simples symbolo
de um instrumento cortante. Finalmente, é um enigma, como ha
muitos. Os que sabem tudo, e os que facilmente inventam, quando
não sabem, que o baptizem a seu gosto, emquanto eu fico igno-
rando as applicações que leve na ultima idade da pedra.
Um grupo de quarenta e cinco calhaus de varias rochas, pre-
dominando as diorites, o basalto, os schistos, a foyaite e o grés,
com diversas formas e grandezas, colligiu o padre Nunes da Glo-
ria no monumento de Alcalá em 1880. Ha entre elles muitos per-
cutores, alisadores e pilões de moagem. Todos deixei depositados
no museu. Com elles veiu uma pedra de moagem de grés vermelho
escuro, de granulação grosseira, com mescla de calhaus de quartzo
e de ferro granular (?), mostrando um aspecto tirante a bre-
ALCALA
EST. VII
229
cbiforme. Estava no interior do dohnen. Outra pedra de moa-
gem, de rocha granitoide, parecendo ser da foyaite de Monchi-
que, também lá estava. Esta é concava n'uma face e convexa na
outra. Devia ser a pedra fixa ou mola de um apparelho de moa-
gem; e caso notável é que alguns calhaus da mesma rocha, mos-
trando terem tido muito uso, se adaptem perfeitamente á conca-
vidade da dita pedra, a qual mede nos dois máximos diâmetros,
postos em cruz, 0m,25 e 0m,22, sendo de 0m,12 a sua espes-
sura.
A estampa vn mostra a configuração de dois graes de calca-
reo branco fino e compacto, formando bojo e gargalo proxima-
mente circular, e internamente uma cavidade regular. Foram
achados no interior do dolmen de Alcalá pelo rev.d0 Nunes da
Gloria, e tenho-os depositados no museu. Quem visse isolada-
mente obra tão perfeita, como é principalmente o segundo, sem
saber das condições archeologicas em que ambos jaziam, entre
ossos humanos, instrumentos de pedra lascada e polida e tantos
outros objectos neolithicos, não hesitaria em attribuil-os a uma
civilisação histórica assaz adiantada. A primeira vista parecem
torneados e polidos no torno, mas nenhum d'elles é rigorosa-
mente circular. Mede o primeiro no diâmetro externo do bordo
0m,074, no interno 0m,057. O diâmetro do bojo é de 0m,83, a
espessura entre o fundo concavo e a base externa é de 0m,029,
e o eixo do espaço concavo é de 0m,054.
O segundo é perfeito. Tem o gargalo mais levantado, for-
mando entre o bordo externo e o bojo uma cannelura mui aber-
ta. O diâmetro externo do gargalo mede 0m,071, o do bordo
interno 0m,056, o do bojo 0m,083, o eixo da capacidade con-
cava, 0,030 e a altura total 0,054. Este gral tem no plano
do bordo um sulco, que mostra ter servido para vasar as sub-
stancias liquidas que n'elle se preparavam, e taes seriam as tin-
tas para as tatuagens da pelle ou para a pintura das armas de
guerra e de vários adornos, como ainda hoje usam alguns povos
selvagens.
E não é sem o preciso fundamento que julgo terem os graes
230
de pedra servido para a trituração e preparo de tinias; pois ou-
tro de Alcalá, de que darei noticia, conserva ainda adherentes
restos de hematite vermelha. Achei depois na minha propriedade
da Arrancada, junlo ao flanco esquerdo da ribeira de Almargem,
perto de Tavira, outro gral de calcareo brando com uma barra
interna de cor quasi preta. N'outras estações neolithicas da Eu-
ropa tôem-se encontrado bocados de limonite ou ferro oxidado
hydratado, que produz um bello vermelho, assim como pedaços
de manganez, que, reduzido a pó, dá tinta escura quasi preta.
N'esta mesma província achei eu n outros dolmens cobertos a
limonite e o cinabrio, como em seu logar relatarei; mas nalgu-
mas estações estrangeiras, em que se teem achado tintas mine-
raes, appareceram ossos longitudinalmente partidos, de que se
extrahiu a medulla, com que se presume que seriam moidas as
tintas que a natureza offerecia áquellas gentes, que já amavam
o luxo e a bclleza, procurando os mais exquisitos enfeites para
se adornarem.
Ora, as tatuagens não ficaram porém reservadas para o es-
tado selvagem; modificadas, e com outros diversos appellidos,
subsistem, e cada vez em maior grau em meio das sociedades
mais elevadas. Façam uma súbita pesquiza nos escaninhos do
toucador de uma dama elegante dos nossos dias e achar-se-hão
em meio de um complicado deposito de drogas e de preparados
milagrosos, dos que rejuvenecem o rosto já rugado, restituem a
belleza, a frescura da mocidade e os próprios encantos que já
iam de abalada envoltos na passagem da estação florida para a
da queda das folhas. . . E, emfim, uma tatuagem de novo géne-
ro. O carmim suppre a hematite e a limonite, o pó de arroz sup-
pre o manganez com justificada preferencia e o coldcreme substi-
tue a medulla dos ossos de boi, de veado e de carneiro, dando
estas felizes substituições pasmosos resultados.
Tal seria pois o uso das tintas nos tempos da ultima idade
da pedra, e mesmo na transição para a idade do bronze, a que
pertence um dolmen de Alcalá, que forneceu á minha exploração
mais um gral, uma lasca de pedra com uma cavidade, que pode
231
lambem ter lido a mesma applicação, e com estes objectos um pe-
queno calhau oval, que bem parece haver sido pilão de algum
d'elles.
Se porém os graes de pedra polidos dão que admirar a quem
sabe o tempo que caraclerisam, muito mais deve maravilhar uma
ténue taça de calcareo branco fino, com 0m,137 no diâmetro ex-
terno, 0m,128 no interno, e approximadamenle com 0m,060 de
altura. Achei d'este delicado artefacto seis fragmentos, havendo
quatro que se ligam pelo bordo superior, um tanto saliente e
formando ligeira cannelura com o bojo, cuja espessura varia de
0m,003 a 0m,005. Tem cinco orifícios junto ao bordo e mais dois
no bojo.
A sua configuração é um tanto similhante á do primeiro gral.
Custa a conceber como em taes tempos, sem o auxilio de instru-
mentos de aço, se tivesse podido concluir uma tão difficil como
perfeita obra de arte, que, a ter-se achado inteira, seria admirá-
vel ornamento para um museu. Nos dois fragmentos maiores só
ha junto ao bordo um orifício em cada um. No mesmo dolmen
colligi um fragmento de vaso de barro, bastante espesso, tendo
no bordo um orifício, e outros assim achei em vários monumen-
tos, havendo porém um entre elles com muitos buracos no
fundo.
O dr. N. Joly, no seu excellente livro intitulado UHomme
avant les mètaux, referindo-se ás louças neolithicas, enumera en-
tre outras uns «vases a faire égoutter le fromage presque ideníi-
ques a ceux qui servent encore au même asage dam le midi de la
France; lampes, prises quelque fois pour des vases à creme (?),
etc», pag. 285. E pois mui provável que alguma d'estas appli-
cações tivessem os de Alcalá, cujos fragmentos se acham atra-
vessados de orifícios, no bojo e no fundo; porquanto, os que o são
somente no bordo, deixam presumir que seriam por ahi pendu-
rados para o escoamento de líquidos supérfluos, ou para não se
quebrarem.
Não estava o dolmen de Alcalá destituído de enfeites, e jóias
próprias do tempo e da gente que então vivia.
232
Placa de schísto negro com gravura. — O especialíssimo cara-
cterístico neolithico das estações d'esta região, que já se viu lar-
gamente exemplificado em Aljezur e no Serro Grande, também
se manifestou no dolmen coberto de Alcalá, acompanhado de
muitas outras laminas de schisto existentes no museu. A es-
tampa vm representa o maior fragmento alli achado na explora-
ção que dirigi em 1882. Já disse, que reservava para o fim
d'este livro a monographia das placas de schisto gravadas de
Portugal, e por isso me limito a registrar aqui a terceira esta-
ção, a partir de Aljezur, com este singular característico.
Voltarei agora ao resto do que ficou figurado na estampa iv,
de que ainda não dei noticia alguma. Convido pois os benévolos
leitores a dirigirem de novo as suas vistas para essa estampa, a
fim de ficarem conhecendo os poucos objectos de ornato que havia
na estação dolmenico-tumular de Alcalá; e aproveito a occasião
para lhes explicar, que o motivo d'estas alterações, que fui obri-
gado a fazer, proveiu de já estarem impressas muitas estampas
antes de conhecidos os resultados da exploração complementar,
ordenada pelo governo em 1882.
A fig. n.° 1 representa uma conta; mui conhecida em nume-
rosas estações neolithicas estrangeiras e também em algumas do
território portuguez. Os archeologos francezes, fallando das con-
tas idênticas á de Alcalá, referem-n as a uma substancia mineral,
que denominam callais e calaite.
Plinio, querendo mostrar a estima que o topázio lograva, como
preferido a todas as mais pedras preciosas, passa a descrever
uma substancia de côr verde-pallido (viridi pallens), a que dá o
nome de callais, e continuando a sua curiosa enumeração das
pedras mais apreciadas, falia ainda da callais no livro xxxvn ca-
pitulo lvi, dizendo imitar a saphira, sendo porém menos escura,
e tirante a côr da agua da borda do mar: «Callais saphinim imi-
tatur, candidior, et littoroso mari similis». Distingue finalmente
a callais da callaina, designando esta como parecida áquella,
mas de côr túrbida ou pouco limpa: «Callainas vocant et tnrbido
calíaino», pag. 554 e 561.
ALCALA
EST. VIII
233
Não obstante a distincção com que estrema estas duas pedras,
nota ao mesmo tempo acharem-sc juntas. Refere-as ao Cáucaso,
mas recommenda a callais da Carmania como sendo a mais lirn-
pida e faella, e accrescenla ser mais estimada a de cor verde. E
o que a final não escapou ao erudito naturalista, foi a tradição de
que, não só a gente de bom gosto costumava adornar-se com
aquella pedra engastada em ouro e fabricada em contas, como
também o melancorypho, pássaro da Arábia, a levava para o ni-
nho: *Sunt qui in Arábia inveniri eas dicantin nidis avium, quas
melancoryphos vocant».
Alguns mincralogistas modernos consideram a calaite como
synonymo de tarqveza de velha rocha.
Brard * cita um trabalho importante de Fischer, publicado em
1818 no volume vm dos Annales des mines, sob o titulo de Essai
sur les turquoises, no qual distingue duas qualidades: a turqueza
oriental de velha rocha, a que dá o nome de calaite, e a turqueza
occidental ou óssea, que denomina odontolithe, juntando á calaite
as variedades agaphite e johnite.
A calaite, diz Brard, acha-se cm massas reniformes ou ma-
millares ; tem côr azul celeste claro, que pode chamar-se azul-
turqueza ou azul-calaite, sendo perfeitamente opaca e com o peso
especifico de 3,86. Accrescenta haver-se somente encontrado
nos arredores de Nichabour, no Khorasan, e, ainda na Pérsia,
em terras de alluvião.
Fallando da agaphite, diz ter a côr azul celeste com diversos
tons mais ou menos pallidos ou escuros, que é opaca ou ligeira-
mente translúcida nos bordos; tem por peso especifico 3,25, e que
também se acha perto de Nichabour em camadas delgadas, acom-
panhadas de ferro argilloso.
Quanto á johnite, diz o mesmo auctor achar-se em camadas
muito delgadas n'um schisto silicioso negro, que tem côr azul
celeste claro tirante a verde, que a sua fractura é escamosa, e
risca o vidro, sendo portanto mais dura que as precedentes.
Brard, Nouveaux èlèmens de minéralogie, pag. 500—1838.
234
Estas três variedades, no entender de Brard, parece conte-
rem acido phosphorico, alumina, cal, oxydo de ferro e oxydo de
cobre.
As odontolithes são dentes e ossos fosseis de veado, de al-
guns carnivoros e de outros animaes, coloridos de azul pelo phos-
phato de ferro. São menos duras que as calaítes; têem o tecido
folheado; são solúveis nos ácidos e perdem a côr, sendo simples-
mente atacadas pelo vinagre distillado, o que não suecede ás ca-
laítes ou turquezas mineraes. As turquezas ósseas acham-se na
França, na Bohemia, na Suissa, e n'outros paizes da Europa.
Dufrénoy1 também inclue sob a epigraphe de turqueza a ca-
laite, a agaphyte eajohnite; diz quaes são os componentes da tur-
queza e indica as suas percentagens, mas não deixa distinguir
estes synonymos por variações qualificativas, nem por acere-
scimo ou diminuição quantitativa cada um dos elementos consti-
tutivos: entretanto, não parece essencialmente desviar-se cTaquel-
les já enumerados por Brard, designando do seguinte modo os
da calaite:
Acido phosphorico . . . 31
Alumina 44,5
Agua 19
Cobre la 5
Enviei um exemplar das contas neolithicas do Algarve ao
sr. conselheiro Pereira da Costa, lente de mineralogia e de geo-
logia da escola polytechnica, mas este sábio, não desejando estra-
gal-o, deixou de proceder á competente analyse chimica e limi-
tou-se a uma reservada apreciação, simplesmente apparente,
parecendo-lhe poder referil-o á callainite de Dana, que é um
mineral massiço, de textura ceroide, de dureza 3, 5, 4, de côr
verde-esmeralda, e translúcido, contendo acido phosphorico, alu-
mina, agua, algum oxido de ferro, etc, em pequena quantidade.
Dufrénoy, Trailé da ínincralotjic. tomo n, pag\ 482—1856.
235
Notou porém ser um pouco diverso na cor, comquanto mal se po-
desse observar, por estar a conta inteiramente coberta de uma pa-
tina esbranquiçada, proveniente de alteração superficial, ou tio
estranha matéria que no seu deposito lhe houvesse formado um
tal invólucro revestidor. Já se vê, pois, que, não tendo procedido
á analyse chimica, não podia emittir um conceito franco e defini-
tivo.
Carlos Ribeiro, achando no clolmen de Monte Abrahão, perto de
Bellas, algumas contas idênticas ás que já eram conhecidas com
a denominação de calaite, não as designou com este nome na sua
memoria, publica em 1880, intitulada «Noticia de algumas esta
ções e monumentos prehistoricos* pag. 53 e seguintes, e diz que
as da estampa iv, a, c, t>, seguindo a analyse feita pelo sr. Ri
cardo Wittnich, «são um silicato de magnesia com alguma alumina
e oxydo de ferro, do grupo das steatites compactas mais duras e
impuras, pedras olares, chlorites siliciosas, serpentinas, ensta-
tite, etc. ; d'essas Ynais provavelmente a serpentina impura em ro-
cha, que muitas vezes tem certa aspereza, e cuja dureza chega
até 5.
«Ha também talcschistos siliciosos, e talcschislos endurecidos
posto que não super-siliciosos, e chloritoschistos duros e não se-
paráveis em laminas, e portanto próprios para o fabrico de mui-
tos objectos.
«A peça maior das duas triangulares o9 porém, deu uma
forte reacção de alumina, e as substancias que se lhe approxi-
mam mais são as halloy sites verdes: a peça menor parece de igual
natureza.»
Se pela analyse do sr. Wittnich se esclarece até certo ponto
a natureza mineralógica das contas, a sua nomenclatura especial
não ficou determinada. Veiu depois o sr. A. Bensaude, e achando
o chromio cm vez do cobre como substancia coloranle, conside-
rou o mencionado mineral como variedade da calaite.
O sr. Alfredo Bensaude, cm vista da sua analyse, teve, com
effeito, bastante fundamento para considerar como variedade da
calaite a substancia das contas achadas em alguns depósitos pre-
230
históricos. Quando esle distincto naturalista se occupava do es-
tudo chimico das ditas contas, mui provavelmente julgou não te-
rem sido até então descobertas em Portugal senão as que Carlos
Ribeiro possuia na secção geológica, e descrevera em 1880 na
memoria a que já me referi. D'este modo dedicou a variedade,
com o nome de Ribeirite, ao seu chefe, movido certamente por
um mimoso sentimento de boa recordação.
De mui bom grado acceilaria eu a mencionada nomenclatura,
do mesmo modo que acceilo e registro com muito apreço a de
outros instrumentos de pedra polida, cujas rochas não me foi pos-
sível reconhecer, se ácèrca das mencionadas contas não tivesse em
vista umas considerações, que julgo attendiveis.
Em outubro de 1805, quando comecei o reconhecimento de
alguns logares com antiguidades para os indicar na carta choro-
graphica do Algarve, achei á flor do chão, no sitio da Torre dos
Frades, uma d'aquellas contas, que a principio me pareceu um
calhau, e em 1877 comprei em Portimão a um homem do campo
um pequeno machado de pedra, três moedas romanas e uma das
taes contas, dizendo-me elle que tinha achado mais algumas, mas
que só conservava aquella. O homem era da freguezia da Mexi-
Ihoeira, e por isso a conta poderia talvez ser de Aícalá, onde mais
tarde descobri muitas.
Lá estavam no museu do Algarve em 1880, na collecção das
contas que tinham sido achadas avulso, e não voltam sem que
o museu seja reorganisado; mas muito antes de eu achar contas
de calaíte, e de terem tido entrada na secção geológica as que
Carlos Ribeiro indica na sua memoria, já eram conhecidas na
Europa, e portanto, nem a mim nem a Carlos Ribeiro per-
tencia a prioridade no descobrimento. A variedade, seguin-
do-se as regras geralmente estabelecidas, parece-me que devera
ser com preferencia dedicada á memoria do primeiro archeologo
que descobriu na Europa as mencionadas contas, porque d'este
modo indicava-se ao mesmo tempo a epocha, o paiz, o descobri-
dor e a primeira obra que registrava o descobrimento.
Das diversas analyses anteriores tinham pois resultado varias
237
nomenclaturas. Uns archeologos francezes diziam, que as contas
eram de callaís, e outros de calaite. Da analyse do sr. Wittnich
deduzira Carlos Ribeiro, que as substancias que mais se appro-
ximavam da matéria das contas, eram as halloijsites verdes, e da
que o sr. Bensaude enviou para o Compte renda do congresso
de Lisboa, via-se que representavam aquellas contas uma varie-
dade da calaite, a que impôz o nome de Bibeirite.
Julgando porém não haver por emquanto senão uma analyse
qualificativa, operada num pequeno fragmento, talvez superficial-
mente muito alterado, como em geral apparecem as ditas contas,
pode esta circumstancia haver concorrido para impedir o rigoroso
conhecimento quantitativo dos componentes mineralógicos natu-
raes.
Parece-me pois preferível não se alterar ainda a nomencla-
tura que fez conhecidas essas contas perante o mundo scientifico,
sem que primeiramente se proceda a uma segura analyse quan-
titativa, sacrificando-se-lhe uns grammas da substancia mineral
que se pretende comparar com as analyses já feitas por Fischer,
Dana, Brard, Dufrénoy e outros distinctos mineralogistas.
Quando por este processo se haja chegado ao conhecimento
bem determinado de cada componente e ao da percentagem cor-
respondente a cada um, ter-se-ha então um resultado definitivo,
a fim de se ficar sabendo, se com cffeito se pode manter a deno-
minação de calaite, se poderá referir-se á callaís, de Plinio, como
preferiu o sr. Gazalis de Fondouce, fundando se em que Plinio
diz ser mais estimada a de cor verde, se é ou pode melhor appro-
ximar-se da variedade Johnite, ou se todas estas nomenclaturas
deverão ser substituídas por outra.
Entretanto, entendendo haver sempre alguns inconvenientes
em se adoptarem nomenclaturas diversas d'aquellas com que cer-
tos objetos são universalmente conhecidos, designarei por contas
denominadas de calaite as que descobri nas estações prehistoricas
do Algarve, para que d'este modo todos fiquem percebendo a mi-
nha referencia.
Além das contas chamadas de calaite, havia outras duas, uma
238
de schislo, que represento sob o n.° 2 na estampa ív, c outra,
mui perfeita e bem policia, de serpentina. A mesma estampa, com
os n.es 12 e 13 reproduz dois fragmentos de alfinetes ou estiletes
de osso, que podem ter servido para segurar o penteado do ca-
bello, ou para algum trabalho.
Não havia naquelle deposito outros ornatos, ou adornos, além
das contas conhecidas pelo nome de calaite, que podem ao
mesmo tempo ter sido objectos de grandes virtudes; pois diz
Brard, que a turqueza era em tempos antigos considerada como
amuleto.
No museu deixei depositada uma pedra das que formavam
as camadas do montículo tumular, achada superiormente e já
coberta de lichens. Deixei também umas estalactites formadas no
interior d'aquellas camadas do montículo circumdante do dol-
men.
Louças. — Nenhum vaso inteiro foi achado; mas não falta-
vam fragmentos de louça quebrada. Recebi e depositei no museu
o fundo de um grande e grosseiro vaso; um fragmento de outro
grande vaso, mostrando ter tido bojo quasi espherico com gar-
galo curto voltado para fora e aza adherente. Para dar idéa da
diversidade d'aquellas louças, reuniu o rev.d0 Padre Gloria os nu-
merosos fragmentos que deixei no museu.
Toda a louça era grosseira e de aspecto o mais rudimentar;
somente com ornato appareceram os seis fragmentos que vão
figurados na estampa ix, cujo lavor é similhante ao das pedras
(mesas), que cobriam o' monumento. A pasta cerâmica mostra
terra negra, talvez de alluvião, mesclada de grãos de quartzo, pa-
recendo ter tido externamente um revestimento avermelhado. É
porém provável que esta differença de cores seja proveniente da
acção do fogo.
No segundo volume d'esta obra fallarei mais largamente de
AlcaLá, onde deixei á vista, para poder ser observada por todos
os visitantes, a famosa necropole dolmenico-tumular, que cara-
cterisa a transição da ultima idade da pedra para a idade do
ALCALA
EST. IX
#?*%.
M-
239
bronze. Não faltam alli novidades em typos de construcção c cm
productos de arlc industrial.
Palmeiriniia. — Este sitio, pertencente á freguezia da Mexi-
Hioeira Grande, não vac indicado na carta prehistorica como re-
presentante de um monumento dolmenico, mas na ordem geral
dos que forneceram instrumentos de pedra, achados avulso nas
terras cultivadas. Tenho muitos, que ultimamente me offereceu
o rev.d0 Nunes da Gloria, taes como percutores e machados. No
museu do Algarve podem ver-se alguns fragmentos de louças
achados na Palmeirinha, assim como um machado de diorite, que
vac figurado com o n.° 3 na estampa ix, pertencente á serie geo-
graphica dos instrumentos isolados.
Julgo existirem n'aquelle sitio alguns monumentos, assim como
com o mesmo fundamento presumo havel-os no Saragoçal, na
Cavoada, no Figueiral Velho, na própria aldeia da Mexilhoeira,
no sitio das Areias, na Cerca Nova, nos Arneiros, no Branquinho,
no sitio chamado Detraz das Vinhas, e n'outros muitos, todos
pouco distantes entre si; pois de todos me offereceu o rev.d0 Glo-
ria vários instrumentos, que attestam haver sido habitados aquel-
les pontos no período neolithico.
Cerca nova. — No museu estão dois fragmentos de grossei-
ros vasos de louça, muito espessos, e fabricados sem o auxilio
da roda de oleiro : um pertence ao fundo e o outro ao bojo de
grandes vasos, mostrando aquellc uma gibosidade mui saliente
no bordo inferior. Também d'este sitio me remetteu o digno
padre Nunes da Gloria vários instrumentos de pedra, juntamente
com muitos mais do sitio da Cavoada, perto da igreja, e por isso
acima disse que a própria aldeia da Mexilhoeira devera ter mo-
numentos, vindo também na mesma occasião alguns machados
e percutores do sitio do Poio, muitos dos Arneiros, da Gasga,
da Cruzinha e da ribeira do Verde. Não indico, porem, na carta
estes sítios como sedes de monumentos, por não terem sido ex-
plorados.
240
Monte Canellas. — A região dolmenico-tumular de Alcalá,
onde muitos monumentos ficaram por descobrir, estende os seus
vestigios sobremaneira significativos até mais longe, não querendo
com isto dizer que seja por um alinhamento não interrompido.
É porém muito vasta, abrangendo talvez o tracto territorial mais
habitado nesta província nos tempos prehistoricos. Gompõe-se
de vários grupos de monumentos, que bem visivelmente se vão
achando indicados por montículos artificiaes, similhantes aos que
ainda ficaram intactos em Alcalá, e esses grupos estão observa-
dos até o Moinho da Rocha na ribeira do Verde.
Abaixo d'aquelle moinho são apontados outros montes com
os mesmos característicos pelos homens práticos das localida-
des, e um dos mais nomeados é o Monte Canellas, situado
a 1:200 metros ao norte de Alcalá, quasi com a mesma cota
de elevação, e distante uns 400 metros da margem direita
da mesma ribeira, Posso ainda acerescentar que em toda a
área comprehendida entre a Ribeira de Odiáxere e as bellissimas
ribeiras do Roina e de Odelouca são assaz numerosos os dolmens
que ficaram oceultos, e que todo esse terreno concentra um dos
mais ricos thesouros archeologicos/que, se me tivera sido possí-
vel exploral-o, não seria fácil encontrar outro similhante no resto
do reino, nem dar-se por explorado em menos de dois annos de
activo trabalho ; e se especialiso aqui o Monte Canellas, é porque
já me deu provas, que bem confirmam não ler elle escapado ao
aproveitamento dos homens que alli foram construir abrigo se-
guro para depositarem as relíquias inanimadas dos que tinham
sido seus companheiros na vida.
Não explorei os monumentos dolmenicos de Monte Canellas ;
não me chegou o tempo; se o tivera tido livre e sufficiente, en-
tão esse monte e tantos outros ficariam tendo mais honrosa no-
meada. Alguns curiosos, porém, já por alli andaram em alcance
das milagrosas pedras de raio, porque o preconceito de que os
machados polidos são pedras de raio e de cenlelhas, tem ainda
uma crença muito arraigada; e vão lá dizer aos possuidores
d'essas pedras caídas do céu, que são antigos instrumento des
251
trabalho e armas de guerra, que ninguém será capaz de conven-
cel-os.
Não me deram somente machados de Monte Canellasf o
rev.d0 prior Gloria também alli obteve uns percutores, fragmen-
tos de louças iguaes aos de Al cala e varias lascas de pedra,
cTaquellas que são frequentes nos dolmens cobertos. Escusado é
descrever aqui um a um esses instrumentos; bastará dizer que
são das mesmas rochas dos de Aljezur e de mais algumas esta-
ções neolithicas.
Em meu conceito, os montículos e os instrumentos achados
em Monte Canellas asseguram-me alli uma construcção dolme-
nico-tumular, e mais algumas assaz próximas até o moinho da
ribeira do Verde, onde não consta que se tenha até hoje achado
algum artefacto metallico, e com este um tanto temerário funda-
mento o indico na carta paleoethnologica como fazendo parte do
trajecto neolithico. É possivel que uma exploração em grande
escala, como a está reclamando o riquíssimo tracto archeologico
já indicado entre as ribeiras de Odiáxere, de Arão, do Farello,
do Verde, do Boina e de Odelouca, possa, como julgo, manifes-
tar abundantes critérios de outras idades posteriores á da pedra
polida; eu mesmo já os indica em vários pontos da carta; mas
esse trabalho, para se fazer em devida regra, requer mais tem-
po, só elle, do que custou o reconhecimento geral da província.
Tal é a riqueza de característicos que notei em toda aquella
região. Nem a carta prehistorica, na escala em que vae, de
1.200:000 pode permittir a marcação de tantos pontos, como
bem se comprehenderá, olhando-se simplesmente para o que já
ficou diliicilmentc indicado.
Monte da Rocha. — Pertence este monte á quinta da Lameira
e está situado sobre o flanco direito do rio de Alvor. Não podia
ter escapado aos homens da ultima idade da pedra uma situação tão
privilegiada pela natureza. Mui bem sabiam escolher os terrenos
de habitação, elles que já conheciam certos segredos da industria
agricela e os da domesticidade dos animaes que mais úteis po-
io
242
diam ser nos usos da vida. Precisavam terras ferieis c abundantes
de agua, c por isso com frequência se acham os vestígios d'essa
já adiantada civilisação pelas margens das ribeiras até ás suas
nascentes e nos fundos cios valles, onde em vários paizes, e prin-
cipalmente na Itália, se toem achado assentamentos de cabanas de
habitação e artefactos ou manufacturas que attestam a idade
(Tessas construcções, algumas das quaes jazem porém já sepul-
tadas sob espessos mantos depositados pelas alluviões modernas.
E não procuravam somente as margens das ribeiras, mas as
do oceano, d'onde tiravam uma parte da sua alimentação, em-
pregando o exercício da pesca e mariscando diversas espécies de
molluscos com tal abundância, que em muitos logares formavam
com as suas valvas enormes amontoamentos a similhança de ou-
teiros e collinas, como são na America, e nomeadamente no Bra-
zil, os celebres sambaquis. Por isso, pois, nas estações prehis-
toricas do Algarve se acham a cada passo os géneros Triton,
Murex, Purpura, Cassis, Trochus, Patella, Haliotis, Helix, Lu-
traria, Vénus, Pullastra, Donax, Sollen, Cardium, Ostrea, Tellim,
Pecten, Mytilus, Pectunculus, etc.
O Monte da Rocha lograva as duas condições mais propi-
cias: estava propinquo ao rio de Alvor e a curto passeio da
costa marítima, e tinha famosos terrenos para a sementeira de
ecreaes, pastos para gados, e agua abundante, pura e crystal-
lina, que descia das rampas do Marmelete, das alturas da Foya
e da Cruz da Picota, por quatro importantes ribeiras, a de Odiá-
xere, de Arão, do Farello e do Verde, unindo-se as duas primei-
ras ao braço occidental do rio de Alvor e as outras duas ao ra-
mal oriental, até se misturarem todas e correrem para o mar pela
barra de Alvor.
O Monte da Rocha teve um dolmen coberto, de que achei
assignalados vestígios. Conservava ainda uma parte da crypta,
que três megalithos soterrados, dispostos em curva, deixavam
perceber que fora construído como o tinham sido quasi todos
os da região. Á crypta ou camará circular devia corresponder
um corredor rectangular de accesso; mas tudo estava destruído
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SERRO DAS PEDRAS
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í Kho^ra^iô Rua de Moinho deVerre 60
c243
e mal figurado. Sc a destruição foi obra do ali rito dos séculos,
ou dos invasores romanos, que tantas afirmações por alli deixa-
ram do seu domínio, não será fácil perceber-se.
N'um ligeiro reconhecimento junto dos esteios que ainda de-
nunciavam aquella estação mortuária, colligi uns pequenos nú-
cleos de um silex alvacento, que represento na estampa X, sendo
o de n.° 6 um fragmento de faca. O instrumento n.° 8 é um pe-
queno calhau de ribeira, alongado, estreito e pouco espesso, com
uma superfície plana e alisada pela acção do attrito, que visivel-
mente mostra ter exercido noutras pedras, trabalhando em plano
horisontal. No lado opposto é convexo, e vê-se ler sido desen-
grossado até formar um gume arqueado, produzido por uma
faceta indeterminada. Tem as dimensões ligeiramente reduzidas
na estampa, onde o maior eixo mede 0m,054, ao passo que o
original aceusa 0m,Q58. Pode* ter sido um alisador, comquanto
pareça um esboço de escopro não concluido. Também appare-
ceram uns fragmentos de placa de schisto com gravuras, como
se tem achado noutros dohnens cobertos, e por mais este indicio
se pode julgar que houve alli um d'estes monumentos.
Muitos outros artefactos teria descoberto, se houvesse podido
fazer as precisas exeavações. Não foi porém possível demorar-me,
por haver noticia de outros pontos próximos com indícios de
antiguidades, que deviam ser indicados na carta archeologica ;
pois os prasos que me foram dados para o reconhecimento ge-
ral da província não permittiam demora em parte alguma.
O dolmen destruído da quinta da Lameira ficou portanto sem
a exploração que lhe competia, como ficaram muitos outros, e
bem assim as ruinas das grandes cidades extinctas, cujas sedes
comtudo consegui descobrir e deixar indicadas, para quando
outros futuros exploradores lograrem a fortuna de não irem en-
calhar nas mesmas difficuldades em que me achei, por não ter
logo a principio sido bem comprehendida a natureza d'este ser-
viço.
. Q
44
Serro da Pedra. — No concelho de Loulé, a noroeste do ca-
stello de Salir e distante uns 1:800 metros, está situado o Serro
da Pedra, ou das Pedras, como promiscuamentc o denominam.
E logar que foi habitado por antigas nacionalidades, attestadas
por numerosos vestígios, começando desde tempos remotíssimos,
como bem o mostra um outeiro ou montículo artificial que co-
briu um dolmen actualmente destruído, mas de que ainda restam
de pé dois menhirs ou esteios descobertos, um com 0m,89 de
altura apparente e o outro com lm,10.
Perto d'este mais saliente ha algumas grandes pedras pro-
stradas, que parece terem feito parte do monumento, e consta que
muitas outras de grandes dimensões d'alli têem sido levadas para
diversas obras, assim como abundantes pedras de menor volu-
me; e porque tantas havia, que a muitas cdnstrucções deram
aviamento, seria aquelle outeiro denominado Serro das Pedras.
O outeiro conserva ainda a base circular, em cujo centro foi con-
struído o dolmen. O que resta d'aquella pedreira artificial é o
que vae figurado na estampa xi.
Junto ao menhir mais baixo fiz uma ligeira excavação, que
não excedeu 0m,30 de profundidade, para reconhecer se o me-
nhir estava muito enterrado no solo, e achei quatro fragmentos de
silex com arestas cortantes, sendo o de n.os 1, 2 e 4 (estampa x),
talvez d'aquelles instrumentos que alguns paleoethnologos deno-
minam frechas de corte transversal, acerca das quaes, como já disse,
correm opiniões diversas, dizendo uns que taes objectos não po-
dem ter sido pontas de frecha logo que se queiram considerar
como armas de arremeço, por isso que deixavam de ser pene-
trantes levando o corte para cima em vez de uma extremidade
pontaguda; ao que outros redarguem, dizendo que os ditos
instrumentos, adherentes a uma haste, são ainda hoje usados
entre algumas tribus barbaras da Africa como armas de caça,
que se apontam ás pernas dos animaes para lhes impossibilitar
a corrida, e d'este modo ficarem accessiveis ao caçador; o que,
com effeilo, não deixa de ser admissível; pois sabido é que qual-
quer animal, por mais veloz que seja, recebendo um golpe que
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245
lhe corle algum musculo das pernas, fica impossibilitado de
fugir á perseguição.
N'outras estações do Algarve têem apparccido mais lascas
de silex parecidas com estas, e não deve admirar que os caça-
dores as usassem, sabendo-se que n'essas estações e em terre-
nos adjacentes se acham com frequência abundantes ossos de
um Cervus (elaphuú), do Sus scroplia, já todavia mui raro. Na
epocha romana, tal abundância ainda havia de veados e javalis,
que em todas as minas de edifícios d'aqueíles tempos appare-
cem os seus despojos envoltos nos entulhos; o que bem deixa
perceber o que a carta archeologica dos tempos históricos mos-
tra, apresentando grandes áreas de terreno inculto ou inhabi-
tado, em que a procreação d'aquellas espécies poderia operar-se
em grande escala.
Na mesma estampa x, sob o n.° 7, represento um fragmento de
dente de javali, também encontrado junto do menhir mais largo,
assim como os tarsos n.os 5 e 6 de dois pequenos gallos com
seus esporões, mas de dimensões inferiores aos dos gallos de me-
diana corpulência, o que a principio me fez julgar, com a devida
reserva, que fossem do pequeno gallo do mato, que os francezes
denominam petit coq de hruyère, ou do chamado gallo dos sal-
gueiros; mas o primeiro (Tetrao tetrix) habita as regiões do
norte, e só raro tem apparecido na Europa central, e o segundo
(Tetrao albus) é uma das espécies européas emigradas par^ °
norte no começo dos tempos actuaes: além d'isto, os esporões no
género Tetrao são recurvados para baixo, como verifiquei na
secção ornithologica, e portanto os tarsos com os esporões para
cima só podiam competir ao género gallus. Pertenciam, pois,
aquelles tarsos a um gallo de medíocre volume, então existente,
mas cuja espécie não posso determinar. !
Finalmente, com os objectos indicados estavam alguns fra-
gmentos de placa de schisto com gravura e uma rodella de schisto
Tsa estampa saíram invertidos os tarsos ! Mas não me admira, porque houve um
desenhador, que entendeu dever desenhar os rótulos de alguns objectos.
246
ardosiano de cor cinzenta, approximadamenle circular, com ori-
fício central, como represento na dita estampa sob o n.° 8, tendo
0m,005 de espessura e 0m,027 de diâmetro. Mostra ter sido
objecto de adorno, com ornato numa face, onde ainda são visí-
veis dois sulcos parallelos, ou talvez um amuleto.
Senti não poder exeavar todo o outeiro do Serro da Pedra.
Certamente teria feito mais alguns descobrimentos de valioso in-
teresse; mas além do pouco tempo de que podia dispor, acere-
scia a falta, que repetidas vezes notei, de um pequeno cofre am-
bulante, que permittisse o prompto pagamento dos operários nas
localidades onde só houvesse algum ligeiro trabalho a fazer. O
systema do pagamento por quinzenas, seguido pelas direcções
de obras publicas, não podia certamente applicar-se a reconhe-
cimentos de passagem ou a explorações de curta demora. Muitos
pontos foram por isso reconhecidos á minha custa e muitos mais
ficaram sem pesquiza.
Não soffrem estes trabalhos resíricção alguma: ou se hão de
fazer com plena liberdade de acção e sem tropeços, ou melhor é
não emprehendel-os. Os prasos e os pagamentos por quinzena
são dois poderosos empecimentos, que nenhum explorador deve
acceitar. É a experiência que o affirma, e por isso aqui previno
os que houverem de sueceder-me para que rejeitem umas tão
absurdas imposições, que bem pouco abonam o entendimento de
quem as inventou.
Em toda a freguezia de Salir são frequentes os instrumentos
de pedra polida. Acham-se geralmente isolados nos trabalhos
agrícolas, provando assim que foi assaz aproveitado todo aquelle
terreno durante o período neolithico.
O dolmen coberto do Serro das Pedras está situado entre
duas importantíssimas cavernas, ficando-lhc a noroeste, em di-
stancia de 6 kilomelros, a do Poço dos Mouros, na Serra da
Pena, e a sueste 4/4 este, a da Solestreira, na freguezia de Que-
rença, a 4 J/2 kilometros. Salir fica central entre o Serro das Pe-
dras e a Solestreira.
Já deixei descriptas as particularidades de que achei noticias
247
ácêrca cTaquellas cavernas. A tradição aponla-as como lendo sido
habitadas. Com relação á da Solestreira já eu sabia terem sido
achados muitos fragmentos de louças grosseiras, logo que come-
çou a extracção do guano depositado pelos morcegos que habi-
tam os seus recônditos compartimentos. No capitulo respectivo
ás cavernas noticiei os resultados da exploração que o dr. Gadow,
de Cambridge, fez naquella caverna.
A descoberta de um esqueleto humano e de contas de ca-
laite naquella caverna, veiu confirmar as minhas já antigas con-
vicções e justificar o empenho com que em 1877 propnz ao go-
verno me permitlisse começar pelas cavernas o reconhecimento
geral das antiguidades do Algarve, de que me tinha encarrega-
do. Coube porém ao illustre naturalista inglez aquelle descobri-
mento devido ás minhas indicações.
Valha-nos, ao menos, a dedicação que a sabedoria estran-
geira consagra ás antigualhas d'este paiz em presença do menos-
prezo com que aqui são tratadas por quem tinha por obrigação
cstimal-as e adquiril-as em beneficio da sciencia.
Passados alguns annos, quando os museus estrangeiros co-
meçarem a enriquecer-se com os nossos thesouros monumentaes,
ou quando o paiz se veja obrigado a procurar logar honroso nos
grandes certames da sciencia moderna, para não ter de recuar en-
vergonhado perante as nações que proseguem na vanguarda do
progresso, os homens que houverem de substituir os menospreza-
dores de hoje, terão talvez de lamentar o atrazamento em que os
seus antecessores o deixaram, por não terem sabido preparal-o
para lhe conquistar o posto que lhe compete ao par das mais
privilegiadas nações, em razão da sua opulência archeologica ; e
haverá então, é possível, quem, ao ler estas linhas que aqui fi-
cam registradas, me queira honrar com o reconhecimento do que
pretendi fazer, não certamente para engrandecer o meu nome,
mas com o sincero intuito de querer ser útil, no pouco que valho,
á terra em que nasci e á sciencia em que me alistei.
Os meus leitores me perdoarão esta passageira digressão,
que um justo resentimento me suscitou, logo que tive noticia de
248
haver sido descoberto na Solcslreira um esqueleto humano,
acompanhado de um característico de epocha.
Vejam que já tudo isso estava por mim previsto e indicado
na carta prehistorica.
Nora. — E este o nome de uma quinta, na freguezia de Ca-
cella, pertencente ao sr. visconde de Horta, em que descobri e
explorei um dolrnen coberto, de que vou dar noticia; mas antes
d'isso desejo expender algumas reflexões, que entendo dever
recommendar aos futuros exploradores das antiguidades do Al-
garve.
Note-se na carta prehistorica a situação do Serro da Pedra,
na freguezia de Salir, e a da Nora, na de Cacella, e observe-se
que a distancia entre estes dois pontos mede em linha recta
47:500 metros, ou 9 e y2 legoas métricas, ficando o largo
tracto de terreno que abrange os concelhos de Loulé, Faro,
Olhão e Tavira sem um único dolrnen! Não pode ser. Necessaria-
mente, o trajecto dolmenico-tumular não ficou interrompido em
tão largo espaço de um dos mais ricos tractos de terra de toda
esta região, cortado por uma infinidade de ribeiras e rios até as
arenosas praias do oceano.
Se não me foi concedido o preciso tempo, de que carecia,
para procurar as estações comprehenclidas entre aquelles dois
pontos relativamente longínquos, não se segue que ellas não exi-
stam. Devem existir e devem achar-se, procurando-se, e sirvam de
guia para essa pesquiza os numerosos pontos que nessa grande
área vão indicados com signaes neolithicos e da idade do bronze.
E difficil, bem o sei, acharem-se vestígios apparentes d'esscs
monumentos nos terrenos agricultados, como são os que indico, e
pode mesmo presumir-se que muitos d'esses monumentos tenham
sido destruídos nas zonas litoraes mais favorecidas pelo lavor agrí-
cola; mas outro tanto não terá succedido na região propriamente
serrana, onde surgem as nascentes das ribeiras de Cadavai, do
Ludo, de Aquém, de Marim, de Alportel, do Arroio, de Barna-
che, de Asseca, da Gafa, do Almargeni, e d'onde partem os pri-
EST. XII
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Mariarrj des.-
Litho6raphia-Rja doMownc de Vento -60.
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meiros sulcos que abrem o álveo do rio Valle Formoso, do rio
Sêcco, do rio da Fuzeta, do rio Gilâo, e mais ainda para oesíe
as numerosas afíluencias do rio de Quarteira.
Muitas estações intermédias relativamente ao Serro da Pe-
dra c á Nora devem ainda achar-sc : eu mesmo, não sendo obri-
gado a prasos absurdos, iria descobril-as, se não fora o firme
proposilo de não acceilar commissão alguma de serviço official
n'esle paiz, quando venha acompanhada de reslricções ineptas.
Ficarão porém reservados esses descobrimentos para quando
a instrucção publica começar a ser uma realidade nacional e os
altos estudos concernentes á paleoelhnologia d'este território po-
derem ser comprehendidos por quem não devera já hoje ignorar
a sua superior importância.
Fique por emquanto sem preenchimento essa vasta lacuna,
que entendi dever aceusar, simplesmente para mostrar as razões
que me impediram de suppril-a, e para ao mesmo tempo a deixar
recommendada a quem no futuro se propozer desenvolver os tra-
balhos que emprehendi n'esta região.
Passo a fallar do monumento do sitio da Nora.
A estampa xii, sob o n.° 1, representa a planta e o perfil do
notável monumento da Nora, cuja configuração somente n'esta
província se acha exemplificada no Serro do Castello a noroeste
de Castro Marim. O perfil mostra haver sido formado por exea-
vação e dividido em três corpos distinctos, contíguos e ligados
por um eixo que passa pelo centro de todos na orientação do
nascente ao poente, em que termina. A crypta ou camará mor-
tuária MM e o átrio J adherem a um curto corredor ou galeria
rectangular L, de lm,90 de extensão sobre 0o, 90 de largura. A
camará mortuária e o átrio propendem para um aspecto trape-
ziforme.
Todo o perimetro da construcção foi guarnecido de uma con-
tiguidade de menhirs, medindo os da crypta lm,40 de altura. De-
crescem, porém, reduzindo-se a 0in,50, os da galeria de accesso
até a divisória do átrio, em que houve uma porta, cujos baten-
tes são indicados transversalmente entre L c J, por isso que a
230
passagem para a crypta, medindo 3m,10 desde a entrada no
átrio, foi aberta em declive, como se vê no perfil. A extensão
total interna do dolmen mede 8 metros e a máxima largura to-
mada no fundo da crypta é de lm,90. Todas as mais dimensões
podem ser tomadas com a respectiva escala de 1 : 100. Estava já
muito destruído quando o explorei.
O pavimento do átrio ainda se conservava calçado de pedra
miúda, mas fallava-lhe a porta que devia encostar aos batentes
lateraes da galeria e fallava também a outra porta com os ba-
tentes, que mui provavelmente teve no fim da galeria, para o en-
cerramento da crypta mortuária. Nòs flancos e no angulo do suf,
como se observa na planta, já muitos menhirs tinham sido arran-
cados, ou porque causassem estorvo aos trabalhos aratorios, ou
porque tivessem sido extrahidos para alguma obra. Os NN indi-
cam menhirs prostrados no interior da crypta. Todo o espaço in-
terno do monumento estava completamente entulhado, mostrando
serem mui antigas as destruições que soffreu. Todo o pavimento,
com excepção do átrio, era de terra endurecida ou batida. Da
galeria descia-se para a crypta por um degrau da altura de
0m,30. E muito provável que a primitiva altura geral d'este mo-
numento tivesse sido acerescentada em todo o seu perimetro por
fileiras de grandes pedras que assentassem sobre o bordo supe-
rior, avançando para o interior com alguma saliência para a col-
locação das mesas, que deviam servir de tecto ou cobertura, por-
que de outro modo a entrada pelo átrio seria impraticável.
N'estas circumstancias, pouca esperança podia haver de se
encontrarem em bom estado de conservação, e nos seus respecti-
vos logares, os despojos humanos e quasquer objectos que os
tivessem acompanhado. Foi o que suecedeu. A extracção de tan-
tas pedras, que faltavam em toda a construcção, não podia dei-
xar de causar uma alteração quasi completa no interior do mo-
numento.
Os craneos e os outros ossos estavam reduzidos a fragmen-
tos, assim como todas as louças. Pretendi recompor um craneo,
tendo encontrado alguns fragmentos que me pareceu pertencerem-
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251
lhe, c com effeito ainda consegui reunir grande parte da região
frontal, acompanhada de uma arcada supraciliar bastante proe-
minente, mas com o bordo orbitario muito obliterado. Não attin-
gindo, porém, ao menos o bregma, não posso afílrmar se seria
um dolichocephalo da velha raça, como a grande proeminência
supraciliar deixa presumir. Todos os mais ossos estavam quebra-
dos, e Ião poucos eram, que não foi posssivel com elles constituir
um esqueleto.
Appareceu um fragmento de húmerus não perforado na cavi-
dade olecraneana, e um fémur mui intencionalmente cortado no
sentido transversal; o que não sei perceber. Na galeria achei
algumas phalanges de dedos e uns dentes dispersos, com as co-
roas muito arrazadas. Já se vê, pois, que nenhuma deducção an-
thropologica peide com segurança apurar-se de um tão incom-
pleto pecúlio osteologico. O monumento, nas invasões que soffreu,
deve ter perdido muitos ossos, além dos que ficaram reduzidos a
numerosíssimos fragmentos de minguadas dimensões.
Os utensílios funerários industriaes e artísticos corresponde-
ram um tanto melhor, embora faltem alguns objectos que neces-
sariamente alli existiram, como bem o deixa perceber uma tampa
de marfim com trabalho ornamental (estampa xiv, n.° 19), cuja
caixa não foi achada.
Começarei a indicar os artefactos de pedra lascada figurados
na estampa xm.
N.° 1 — Lasca de silex escuro de forma polygonal alongada,
com duas arestas lateraes, a da esquerda afilada e a outra um
tanto abatida, parecendo ser a parte superior de uma faca.
N.° 2 — Fragmento de faca de silex com uma face plana e a
outra dividida em duas facetas, produzindo arestas de gume aba-
tido e denteado, sendo prismática a sua secção transversal.
N.° 3 — Lasca de silex com duas arestas cortantes lateraes,
convergindo em extremidade pont'aguda.
N.° 4 — Silex lascado com duas arestas cortantes convergindo
em ponta. Poderia ter sido instrumento de cortar, e frecha cor-
tante, sendo firmada cm haste fendida pelo seu lado mais estreito.
N.° 5 — Fragmento que parece ter sido de faca de silex.
N.° 6 — Silex grosseiramente lascado, parecendo ter sido
ponta de frecha obliterada, de forma paleolithica.
N.° 7 — Lasca de quartzo opaco, de forma tirante a triangu-
lar, com duas arestas cortantes.
N.° 8 — Lasca de quartzo opaco, de secção transversal pri-
smática, com duas arestas cortantes.
N.° 9 — Lasca de quartzo cryslallino com gume cortante
abatido.
N.° 10 — Lasca de quartzite, numa face plana e na outra
convexa, rodeada de aresta cortante.
N.° 11 — Objecto pont'agudo de calcareo, sendo prismática
na base a secção transversal e de meia altura para o vértice um
tanto trapeziforme. Estava com os outros instrumentos, mas não
parece ter exercido trabalho.
N.° lá — Serra de silex plana e ligeiramente arqueada na
face anterior e dividida na posterior em quatro facetas dispo-
stas á feição de aduelas, com os gumes lateraes retocados e aba-
tidos, mostrando ter ficado inutilisada.
N.° 13 — Fragmento de uma nitida e perfeita faca de silex,
com uma face plana e a outra dividida em três facetas, conver-
gindo as lateraes em gume cortante afiladissimo.
N.° 14 — Fragmento superior de faca, ou lasca cortante,
tendo a extremidade estreita encurvada para o lado plano. N'uma
das arestas tem duas depressões e na outra gume afilado.
N.° 15 — Serra de silex obliterada e abatida por uma denti-
culação irregular nas suas primitivas arestas cortantes. Na dis-
posição em que se acha, forma na extremidade superior ligeira
curva para a face anterior, e na extremidade inferior termina em
ponta perforante. É singular este instrumento pela affinidade da
sua forma com muitos dos últimos tempos geológicos, existentes
nas collecções da escola polytechnica, pertencentes á secção de
mineralogia e de geologia.
N.° 16 — Famoso fragmento de perfeita faca de silex alva-
cento, um tanto recurvado na extremidade existente, plano e liso
TVORA
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253
na face anterior e dividido em três planos na posterior, tendo os
seus gumes laleraes muito afilados.
N.° 17 — Fragmento de estreita faca de silex, plano e liso
na face anterior e na posterior dividido em três planos. Tem
arestas cortantes.
N.° 18 — Base de uma faca de silex, que parece ser da do
n.° 16, faltando-lhe um fragmento intermédio de ligação.
N.° 19 — Serra obliterada de silex negro, com as arestas
denteadas já muito abatidas.
N.° 20 — Extremidade superior de faca de silex com dois gu-
mes cortantes.
A estampa xiv representa primeiramente dezeseis pontas de
frecha de silex, um tanto reduzidas pela photographia nas suas di-
mensões, assim como todos os mais objectos figurados nas outras
estampas.
Predomina a forma triangular nestas bellas armas de guerra
e de caça com diversas variantes nas linhas que determinam o
triangulo, sendo numas os lados maiores ligeiramente convexos e
n'outras quasi rectilíneos, com arestas acuminadas ou denteadas,
e as bases passando da convexidade á linha recta e d'esta a um
arqueado mais ou menos reintrante até o angulo agudo. D'estas
variantes resulta o typo mitrae forme (9, 10 e 11) e o de farpas
compridas (12). São de silex negro as de n.03 1, 12 e 15, de
côr albo-rosea as de n.09 2, 5, 10 e 11, de cor verdoenga as de
n.os 3, .4, 6, 8, 9, 13 e 16, e a de n.° 7 tirante a alvacento, sendo
de quartzo alabastrino a de n.° 14.
A mesma estampa xiv com o n.° 17 representa um núcleo de
crystal de rocha, d'ondc foram extrahidas muitas lascas cortan-
tes por choques de percussão; com este estava outro três vezes
maior, de que foram destacadas outras lascas mais espessas.
Este bello exemplar é assaz vistoso por se ter formado sobre uma
crystallisação de rútilo l. Não se pode affirmarse é oriundo do paiz.
1 0 rútilo, que parece ser o acido titânico crystallisado, é ordinariamente de còr
vermelho escuro, crystallisa no systema prismático com base quadrada; os seus crystaes
254
Com o n.° 18 figuro um fragmento de placa de schisto com
gravuras, abrangendo o orifício de suspensão, e com elle estavam
outros de menores dimensões. Todos estão no museu e poderiam
ser vistos, se o museu não estivesse escondido para todos sem
ninguém o poder ver !
Aqui pois se vae observando, que a placa de schisto gravada
tem ido acompanhando quasi todas as estações neolithicas do
Algarve, como padrão artístico mais typico do tardio renasci-
mento da arte de gravura, que surgiu e feneceu nas ultimas pha-
ses dos tempos quaternários; e não ficou isolada esta manifesta-
ção da arte neolithica, tendo-se em vista o seguinte famoso artefacto
de marfim, com gravura ornamental, representado na mesma
estampa.
O n.° 19 figura um artefacto sobremaneira admirável. Nos
tempos modernos, sem o auxilio do torno, não facilmente se
excederia. E uma tampa de caixa de marfim tão bem trabalhada,
que se tivesse sido vista n'uma sepultura do terceiro ou quarto
século, ninguém duvidaria julgada como produeto da arte ro-
mana. A tampa no seu lado anterior é concava e tem parallelo
ao bordo externo um filete saliente que deveria ajustar-se no diâ-
metro da caixa a que pertencia, mas que não foi possível achar-
se, e no lado posterior é convexa, tendo entre duas duplas linhas
parallelas e traçadas a buril, uma faxa ornamentada de triân-
gulos, mostrando o estylo dominante da gravura das placas de
schisto ardosiano.
A estampa saiu detestável; quasi que nada deixa ver. O
sr. Cartailhac representa porém este interessante artefacto em
duas nitidas gravuras no seu bellissimo livro Les ages préhistori-
ques, etc. Rara habilidade tinha pois o artista que levou, sem o
auxilio do torno, a tal acabamento um tão delicado objecto! O
facto de não se ter achado a caixa pertencente a esta notável
são geralmente prismáticos, formam ás vezes grupamentos mais ou menos análogos
aos do oxydo de estanho. Aclia-se nos terrenos graníticos, etc. — Beudant, Minéralogie
pag\ 1G4— 18G5.
C02HCTEJL.H0 »E TIIíLA RfclA JL
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i - ã - S _ Nora - Tírniulus (Colleeçio do Estado, )
Ltóiojraphia. Rua d« Moinho òe Vento -60
c25o
tampa, mostra haver o monumento soffrido grandes perdas no
seu pecúlio funerário.
O n.° 20 reproduz cm menores proporções um ornato pen-
dente de marfim de figura perilbrme, a que falta a extremidade
superior, cm que devia haver um orifício ou um sulco, que per-
mittisse fixar-lhe um cordão para ser suspenso. Está muito obli-
terado.
O n.° 21 representa uma bem trabalhada cabeça de alfinete
de osso ou de prego de prender o penteado. Tem um sulco bem
lançado em espiral, como se fosse enrolado por um cordão.
Falta o espigão a este objecto de toucador de uma dama da ul-
tima idade da pedra, a quem também pertenceria, talvez, o pen-
dente de marfim n.° 20, assim como a bella caixa, de que só es-
capou a tampa, onde seriam guardados alguns adornos mais
mimosos cTaquelles tempos, algum collarsinho de contas de schisto,
de calaite, de. aragonite, de vértebras de peixe, ou de conchi-
nhas da praia, se é que não era uma boceta privilegiada, ou co-
fresinho destinado ao cuidadoso resguardo de algum amuleto de
grandes virtudes.
A estampa xv representa, reduzidos pela photographia, três
instrumentos de pedra polida, duas enxós e um machado. Esta-
vam sobre o pavimento do dolmen.
A enxó n.° 1 é de schisto amphibolico, formada por dois pla-
nos parallelos, com alguma curvatura para o lado da faceta
que lhe produziu um gume cortante pouco arqueado. Re-
mata em extremidade estreita, sendo geralmente escabroso e
mais ainda nos planos laleraes. Mede de comprimento 0m,197,
de largura na boca 0m,0G2, de largura máxima 0m,067 e de es-
pessura 0m,014. E um perfeito instrumento de trabalho, com
signaes de uso.
A enxó n.° 3 esta incompleta; falta-lhe a extremidade infe-
rior. Parece ser de schisto metamorphico, um tanto micaceo.
Mede de comprimento 0m,073, de boca 0m,050, de espessura
0n\014.
O machado n.° 2 é de schisto amphibolico alterado. Achei-o
250
partido em três pedaços, como na estampa se mostra, e com o
gume cortante obliterado, formado por desengrossamento decre-
scente. É elliptica a sua secção transversal. Mede 0ru, 123 de com-
primento, na máxima largura 0m,073, e na maior espessura
0m,035. O instrumento já entrou partido; o que bem deixa
perceber a importância que merecia no conceito dos deposi-
tantes.
Colligi no interior do monumento cincoenta e três lascas de
schisto e calcareos de diversas formas e dimensões. Lá estão no
museu, mas não se podem ver, porque o museu continua es-
condido n'um plano inferior áquelle em que eram enterrados
os frades e os leigos de S. Francisco da Cidade. Entre essas
lascas de pedras algumas ha ponfagudas, que, ligadas a uma
haste, poderiam ser empregadas como armas de arremeço; mas
a grande maioria não permitte tal supposição, senão na única
hypothese de poderem ter sido apontadas ás pernas dos animaes
e assim feril-os ou contundil-os de modo que ficassem estropea-
dos e impedidos de escaparem pela fuga á perseguição do caça-
dor; pois para este fim especial qualquer pedra delgada poderia
servir.
A grande quantidade, porém, de pedras lascadas que em vá-
rios monumentos prehistoricos descobri como formando soleira
em que assentam os ossos, e os instrumentos que os rodeiam,
deixa também presumir, que, sendo as pedras lascadas uma das
mais antigas manifestações do trabalho com que os primeiros ho-
mens affirmaram a sua existência na terra, podessem ter consti-
tuído um culto de veneração em honra dos mortos e em memo-
ria do passado. Além das ditas cincoenta e três pedras lascadas,
colligi mais uma de schisto stratificado, de configuração quasi
rectangular, formada por dois planos parallelos e por dois lados
de ângulos rectos com um abatimento de curto fundo e de perí-
metro oval, tendo 0m,09 de comprimento, 0m,052 de largura
numa extremidade, 0m,045 na outra e 0m,015 de espessura.
Não me parece fácil interpretar-se a applicação que teria tido.
E para mim um enigma. . . de pedra.
257
Já me referi aos dentes de um squaloide terciário, o Carchar-
rodon Megalodon, Agass., que descobri em vários depósitos nco-
lithicos, considerando-os como instrumentos de trabalho. No
dolmen coberto da Nora encontrei mais dois, certamente os
maiores que lenho achado, os quaes sem duvida alguma confir-
mam terem as suas arestas 'exercido a acção de serragem até
desapparecerem os últimos vestígios da denticulação que lhes é
própria. Lá estão no museu.
O maior mede de comprimento 0m,118, de largura máxima
0m,G87 e de espessura 0m,033; o outro tem de comprimento
0m,10i, na maior largura 0mJ00 e de espessura 0m,Q30. Não
foram mui provavelmente achados longe do dolmen, sabendo-se
que os terrenos litoraes de Cacella pertencem geologicamente ao
terciário marino, onde já toem sido achados outros dentes d'aquelle
extincto monstro do immenso mar que nos tempos terciários co-
bria grande parte da Europa, abrangendo o sul da península
hispânica.
Pela grande porção de fragmentos de louças de varias espes-
suras e formas diversas, achados nos entulhos que enchiam o
dolmen, pode entender-se que foram alli depositadas muitas ur-
nas e outras louças acompanhando os sepultados, mas que tudo
ficou destruído quando áquelle deposito arrancaram as pedras
que faltam na sua construcção. Uma pedra tosca de forma circu-
lar estava entre as louças esmagadas, deixando presumir que ti-
vesse sido operculo de alguma urna de maiores dimensões. Nada
mais colligi, além de uns ossos e dentes fosseis de animaes, a
que não posso ligar importância, por terem sido achados nas
primeiras camadas do entulho.
Marcella. —Assim é denominado o sitio de uma proprie-
dade rural, na freguezia de Cacella, pertencente ao abastado la-
vrador António Madeira. A Marcella está situada a oes-noroeste
e distante quasi 2 kilomelros da igreja de Cacella; tem ao sul,
a 3 kilometros, o sitio da Nora, e ao nascente, quasi a 13 kilo-
melros, a margem direita do rio Guadiana.
17
258
O proprietário da quinta já tinha notado a existência de
umas pontas de pedra, dispostas em circulo, um tanto salientes,
no terreno lavrado; mas não sabia a significação d'aquelle cir-
cuito. Constando-lhe porém que eu andava fazendo excavações
em vários logares assignalados com vestígios de antigos edifícios,
teve a bizarra condescendência de conceder-me aquelle es-
paço para ser explorado, não obstante estar então semeado de
ervilhas, que logo mandou arrancar para m'o deixar desembara-
çado.
As pedras salientes eram os topos dos menMrs que formavam
o perímetro proximamente circular da crypta de um famoso mo-
numento, que já tinha perdido toda a sua cobertura megalithica
o o tumuhis ou outeiro que necessariamente rematou aquella con-
strucção.
A estampa xn, fig. 2, mostra a planta do edifício mortuário
no estado em que estava quando foi por mim explorado.
O monumento pertence á classe dos dolmens cobertos, e não
é uma galeria coberta, como erradamente já se lhe chamou. E um
monumento dolmenico-tumular, dividido em quatro corpos distin-
ctos, um átrio, de configuração trapeziforme, uma camará cen-
tral rectangular, e uma crypta circular, precedida de um curto
corredor aberto. Um eixo longitudinal, medindo internamente
10m,70 passa pelo centro de todos os compartimentos no rumo
de leste */♦ nordeste a oeste 4/4 noroeste, tomada a orientação
pelo norte magnético. O átrio, tendo já perdido a porta exter-
na, é calçado de pequenas lages irregulares de schisto e cal-
careo e foi flanqueado por duas fileiras de menhirs, de que só
resta a do norte. Mede de comprimento 3 metros, de largura, á
entrada, 0m,60 e junto aos dois batentes lateraes da porta que o
separa da galeria, lm,10. A letra B indica a porta que encostava
aos batentes, a qual achei tombada sobre o pavimento. A camará
central C, de que já faltam dois menhirs no flanco do sul e mui-
tos mais no do norte, tem de extensão 3m,30 e do largura, junto
aos batentes do corredor ou ante-camara que precede a crypta,
lm,80.
259
Esta larga entrada para a crypta, E, D, não teve porta, mas
Ires menhirs (faltando o do norte) que a fecharam. E o único dol-
mm coberto do Algarve que mostra uma ante-camara aberta para
o interior da crypta, e ligando com o d'ella o seu pavimento
igualmente calçado, ou antes recamado de pedras miúdas em-
bebidas no solo. À crypta é circumdada por treze menhirs ergui-
dos a pino e tocando-se pelos seus flancos lateraes. No centro a
letra G indica uma lage de calcareo proximamente circular: sobre
esta lage havia alguns ossos humanos, uma urna cheia de terra
com lascas de silex (veja-se a fig. 2 da estampa xxm), imitando
uma d'cllas a forma da faca de secção transversal prismática, e
havia também sobre a lage uns fragmentos de facas de silex,
acompanhadas de algumas pontas de frecha, sendo uma a que
represento na estampa xvn sob o n.° 6, que julgo ser um arte-
facto, ex voto, de forma inédita original, primoroso pela execu-
ção, e o mais delicado de todos os d'este género que conheço.
A crypta no quadrante de sueste manifestou três comparti-
mentos que indico com a letra I, formados por lages toscas cra-
vadas no solo, mas pouco elevadas, sendo os seus pavimentos
calçados de pedra miúda. No do lado do poente havia uma lage
tosca (H) sobre que assentavam alguns ossos humanos, havendo
em todo o espaço fechado uma urna quasi inteira (estampa xxu,
n.° 1), e fragmentos de outras, assim como pedaços de facas de
silex, uma ponta de frecha (estampa xvn, n.° 3), dois núcleos de
crystal de rocha, de que foram extrahidas algumas lascas cor-
tantes (Estampa xix, n.os 5 e 6), uma grande placa fracturada de
schisto com orifício e gravuras geométricas nos dois lados, uma
enxó de schisto amphibolico, a (estampa xviií) similhante á do
dolmen da Nora (estampa xv, n.° 1), porém maior, como adiante
mostrarei.
Com os fragmentos de espessos vasos cerâmicos, havia con-
chas de molluscos marítimos (Ostrca edulis L., Cardium eduleh.,
Pullastra decussata L., c Patella vulgata L.), mas em diminuta
quantidade, e dois grandes pedaços de cinabrio, ou sulfureto de
mercúrio, um pedaço de hematite vermelha, ou ferro oligisto, e
260
alguns operculos de pedras delgadas que cobriam as urnas,
sendo um d'elles de configuração cordiforme. A significação das
tintas mineraes em laes depósitos já ficou descripta, quando me
referi aos graes de pedra de Alçará. Tudo alli estava revolvido e
obliterado por antigas invasões e por isso não foi possível recom-
por um craneo ou achar os ossos correspondentes a um cadáver,
assim como não havia inteira uma única faca de silex.
Nos outros dois compartimentos estavam esmagados os cra-
neos e partidos todos os ossos longos, assim como todas as lou-
ças, com excepção do vaso figurado com o n.° 3 na estampa xxn
e os três que represento na estampa immediata. Outros muitos
objetos, todos em completa desordem, acompanhavam alli uma
placa partida de schisto com gravuras, de que não foi possível
achar-se um fragmento que devia completal-a, sendo esta de me-
nores dimensões de que a outra a que já me referi. Emfim, es-
parsos por todo o pavimento da crypta até ao átrio foram assaz
numerosos os ossos, e os fragmentos de louças e calhaus que
tiveram diversas applicações. Toda a cobertura do dolmen tinha
desapparecido sem ficar um único monolitho em seu logar ; o que
deixou perceber que as invasões antigas tinham sido praticadas
pelo tecto do monumento.
E um tanto extensa a lista dos arlefactos encontrados no in-
terior d'aquelle deposito mortuário. Comquanto, porém, pela
maior parte já ficassem enumerados, convém agora ordenal-os.
Ossos humanos. — Já indiquei o estado em que achei os nume-
rosos ossos, que mui cuidadosamente mandei separar. Tentei reor-
ganisar ao menos um craneo; para este fim reuni todos os fra-
gmentos; dividi-os depois em diversos grupos, tendo em attenção
as espessuras, e a côr, a fim de ver se era possível ajustarem-se
as peças pertencentes a cada um; mas não foi possível conseguir
o meu intento. As mandíbulas estavam todas partidas; apenas
um maxillar incompleto deixou observar alguns dentes incisivos,
caninos, e prémolares, estando n'estes as coroas ainda mui
EST. XVI
IffttyraBki* flua do Mchrfw deV«nro-60
C2GI
proeminentes, podendo por isso julgar- se que prelenceria a indi-
viduo que a morte surprehendêra em plena mocidade.
Mostram, porém, os incisivos c caninos ainda embebidos -nos
alvéolos um perfeito orthognatismo próprio das raças brancas.
Entre os ossos longos manifestou-se o mesmo caso que já notei
n'um fémur extraindo do monumento da Nora, isto é, uma fra-
ctura transversal tão lisa, que parece ter sido intencional. Fal-
tava, pois, uma notável quantidade de ossos, que certamente alli
deveria haver, se não tivessem sido expellidos por antigos inva-
sores, ou rebuscadores de thesouros escondidos. Do pouco que
achei, apenas fiquei presumindo que os soterrados pertenciam a
uma raça orthognata; o que igualmente verifiquei n'outras esta-
ções. Não permitte maiores conceitos o exame osteologico do mo-
numento da Marcella.
Vejamos agora qual era o pecúlio artístico e industrial d'aquel-
les orthognatas.
A estampa xvi reproduz com alguma redacção treze instru-
mentos lascados de silex: uma faca reduzida a serra (1), tendo
os seus gumes lateraes sido transformados num denteado irre-
gular; uma lamina cortante (2) com os gumes lateraes um tanto
ondulados á feição de serra; outras duas laminas cortantes 12
e 13), mas com um só gume afilado; e nove grandes fragmentos
de boas facas (3 a 11), em que só uma (5) mostra a face pos-
terior dividida em duas facetas, e todas as mais em três, cuja de-
scripção omitto, por já estar feita em relação a outras similhan-
tes.
Com estas ficaram depositados no museu mais vinte e cinco
fragmentos de facas e ' laminas cortantes, entre os quaes alguns
ha assaz interessantes, mas que não reproduzi para não au-
gmentar o já crescido numero de estampas. Já se vê, pois, que,
indicando cada fragmento um instrumento incompleto, a perda
dos complementos que faltam é muito grande.
Ha mais setenta e quatro pedras, de varias rochas, capricho-
samente lascadas com diversas formas, em que predominam os
schistos e calcareos. Gomo já disse, algumas podem ter sido utili-
262
sacias como armas de arremeço, comquanlo pela maior parle se-
riam simplesmente empregadas para recamarem os logares des-
tinados á deposição dos cadáveres. Estão todas no museu.
A estampa xvii mostra os restantes instrumentos lascados de
silex encontrados no dolmen da Marcella. São primeiramente nove
pontas de frecha, pela maior parte de arestas lateraes denteadas
e com a base mais ou menos profundamente aberta em arco,
sendo notabilissima a de n.° 6, a que já me referi, cuja nitidez
de trabalho é admirável. Com a fig. 10 indico um exemplar de
frecha cortante de forma triangular com uma larga faceta produ-
zindo o gume. E o mais perfeito exemplar que conheço neste
género.
A mesma estampa figura com os n.os 11 e 12 duas famosas
settas ou ponlas triangulares de lanças de silex, uma com as
arestas lateraes de fino denteado e a outra de arestas delicada-
mente retocadas, a ponto de parecerem afiladas em gume cor-
tante, sendo ambas de base rectilínea, também afilada. Já me
referi a estes dois bellos exemplares, um tanto reduzidos pela
photographia, como constituindo uma forma nova e muito espe-
cial nesta região. O sr. G. de Mortillet cita estes bellos instru-
mentos do Algarve no seu Musée préhistorique.
Agora, com a estampa do exemplar n.° 11 á vista, não dei-
xará de se comprehender que o denteado não é uma invenção
original, mas a mais perfeita imitação das arestas que guarne-
cem os poderosos dentes fosseis de Garcharodon megalodon
Agass., encontrados no deposito neolithico, na caverna da Sin-
ceira em Aljezur, e no dolmen-tumular da Nora, assim como
também, a meu ver, suscitaram a idéa de serem transformadas
em serras algumas lascas e facas de silex.
A estampa xvm mostra reduzida pela photographia uma ex-
cellente enxó de schisto amphibolico, formada por dois planos
parallelos com dois lados de ângulos rectos, sendo um tanto cur-
vada para o lado da estreita faceta que lhe produz o gume cor-
tante, já um pouco falhado. Tem de comprimento 0m,127, de
largura no gume 0m,063, na extremidade opposla 0"\027, e na
MAPI CE JL. LA
Js/XVII
concelho mm villa. real
M ARCE LLA
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LWioôraphia. Rua doMoinhc deVer.to-
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CONCELHO »JG VI]LX.A KJilAJL
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MarceHa.-Tuuiuius (Coilecçiio do Estado.)
Lrthoçr»ph»a Rua do Moinho t»Vôii*-8Q
263
facetado córle 0m,010, com a espessura de 0m,01G. E similhante
á da Nora e aos bellos exemplares de Aljezur.
Na estampa xix sob o n.° 2 é representado um pequena es-
copro do mesmo schisto amphibolico com a extremidade inferior
obliterada, talvez por ter sido este instrumento, de pouca força,
auxiliado, na acção de cortar, pelo choque do percutor, do mesmo
modo que os artífices carpinteiros empregam o formão e o mar-
tello. Tem de comprimento 0n\057, sendo de 0ra,Q20 a sua maior
espessura e de 0m,013 a menor.
Da mesma rocha é o duplo escopro n.° 1, todo polido e com
gume cortante em cada extremidade produzido por uma só fa-
ceta. Achéi-o diagonalmente partido e assim entrou naquelle
deposito, como bem o mostra a incrustação que lhe reveste os
planos fracturados. Mede de comprimento 0m,128, de largura
na faceta superior 0ra,0i6 e na inferior 0m,010, de largura má-
xima 0m,029 e de espessura maior 0ra,01i.
É também de schisto amphibolico o instrumento n.° 3, de
forma subpyramidal, formado por duas faces curvas e parallelas
e por dois lados chanfrados nos ângulos, que convergem na ex-
tremidade inferior terminada em corte. Está truncado na extremi-
dade larga, onde é provável ter tido gume cortante produzido por
uma faceta do lado da curvatura. Ficou portanto reduzido a es-
copro de corte estreito e arredondado. Tem 0^,107 de compri-
mento, 0m,025 na maior largura e 0m,011 de espessura.
O n.° 4 representa um excellente machado de schisto polido?
de secção transversal elliptica. Com um desengrossamento gra-
dual produzido pelo attrito nos dois lados mais largos, formou-
se-lhe o gume cortante sensivelmente arqueado. Num dos dois
lados largos e convexos é sulcado por uma cannelura transversal '
da largura de 0m,017 com a fundura de Gm,004, tendo as arestas
abatidas e lustradas pela fricção das ligaduras de encabamento.
No corte ha ligeiras falhas provenientes do trabalho. Da cannelura
1 O artista preferiu desenhal-o do lado opposto. talve^ por lhe parecer o mais per-
feito!
204
para a extremidade inferior ó um tanto escabroso e no lado op-
posto um pouco falhado. Tem de comprimento 0,n,118, de lar-
gura na boca 0,n,048, na extremidade inferior 0m,035 e de es-
pessura máxima 0m.Q34.
O n.° 5 é um núcleo de crystal de rocha, donde foram des-
tacadas cinco lascas cortantes por choques de percussão, cujos
bolbos são visíveis na aresta. Tem de altura 0m,052 e de espes-
sura máxima 0m,027.
O n.° 6 é outro núcleo de crystal de rocha, que forneceu
quatro lascas cortantes. E menor que o primeiro. Tem 0n\046
de altura e 0m,029 na maior grossura.
Não é possível representar em estampas todos os objectos
encontrados no monumento, mas é forçoso descrevemos, e por
isso não abandono ainda a secção dos instrumentos de pedra,
porque alguns ha que merecem especial menção.
Misturados nos entulhos e com os já referidos objectos, appa-
receram calhaus de varias rochas e de diversas formas, attestando
todos terem sido instrumentos de trabalho. Dividil-os-hei em Ires
grupos, denominando-os percutores, desengrossadores e brunidores.
Pode facilmente conceber-se, que os artefactos polidos de
qualquer pedra passaram mais geralmente por três diversas ope-
rações. Para poderem chegar a esse estado de perfeição, foram
primeiramente esboçados ou modelados por outras pedras, que
os desbastaram por bem applicados choques de percussão até
lhes darem a forma que deviam ter, e attingindo este resultado
pratico, o esboço ficou apenas configurado, mas grosseiro e abun-
dante de ângulos e depressões. Às pedras de que se serviam
para esta primeira operação, chamadas martellos ou percutores,
eram calhaus rolados e pedras angulosas de rija tenacidade, que
a natureza punha á disposição dos operadores.
Obtido o esboço do objecto que se pretendia fazer, era mis-
ter desengrossar e abater as rugosidades que lhe tinham ficado,
determinar-lhe e aperfeiçoar-lhe a forma até desapparecerem as
saliências e cavidades resultantes do anterior trabalho de per-
cussão. Para o conseguirem, procuravam aquelles artifices outras
265
pedras que facilmente gastassem pela fricção as escabrosidades
dos esboços. Eram geralmente de grés, de calcareos porosos,
conchiliferos, ou de outras rochas de granulação mais ou menos
resistente, conforme a natureza geológica da região em que se
faziam taes manufacturas, as pedras fixas em que os esboços pas-
savam a ser amolados com o auxilio da areia e da agua, como
bem mostram as suas estrias, até tomarem a forma e o aperfei-
çoamento que convinha aos fabricantes, e as que serviam de
instrumentos de mão para conseguirem estes e outros resultados
que as pedras fixas não podiam tão correctamente produzir. Em
diversos paizes, e principalmente em França, ha grande numero
d'essas rochas ou pedras in situ, cuja superfície conserva cavi-
dades, sulcos e fundas estrias, que lhes ficaram da fabricação
dos instrumentos neolithicos, assim como em quasi todas as es-
tações prehistoricas apparecem outras pedras de pequenas dimen-
sões, que reconhecidamente tiveram aturado uso nesses traba-
lhos.
Ha, finalmente, alguns artefactos de pedra, de osso, de âm-
bar, e ainda de outras substancias, com tão apurado acabamen-
to, que não podia ter sido somente produzido pela pedra de amo-
lar; pois n'elles não ha ver estrias resultantes da fricção sobre
areia molhada, ou da granulação própria das pedras que exer-
ceram a acção do trabalho; mas uma superfície extremamente
fina, polida e até luzente. Houve, portanto, além dos percutores e
desengrossadores, outros instrumentos, que levaram certos arte-
factos a esse estado de admirável perfeição, brunindo-os e polin-
do-os com apurado esmero, e taes instrumentos, bnmidores e po-
lidores, podem mui bem ser extremados de todos os outros, como
vou mostrar, descrevendo os que descobri no dolmen coberto da
Marcella.
Percutores. — O martello ou percutor do ultimo período neo-
lithico era a primeira pedra de rija consistência que o homem
achava solta na terra com uma certa forma adaptada ao traba-
lho. Se o artífice pretendia atacar um grande núcleo de silex, de
266
quartzo ou de qualquer outra rocha, para d'ellc destacar algu-
mas peças de avultadas dimensões, servia-se de um robusto ca-
lhau, com que podesse pôr por obra o seu intuito; se precisava
depois afeiçoar e esboçar a forma do instrumento que queria
fabricar, já então precisava ter um outro percutor, anguloso e
de fácil manejo.
O percutor não se confunde, pois, com qualquer instrumento
diverso; é elle mesmo que se denuncia; porquanto, assim como
pelos choques fazia lascar as pedras a que se applicava, sof-
fria elle também um effeito reversivo equivalente. Um car-
dume de pequenas falhas nas extremidades ou em quaesquer
outras partes de uma pedra é o seu mais significativo caracte-
risco.
Vou indicar o primeiro não figurado em estampa. É um
instrumento de schisto amphibolico, de forma cónica e de base
ellipsoidal, mostrando no bordo da base e no vértice ler exercido
a acção de percutir outras pedras. E todo polido e bem pode ter
sido primitivamente um famoso machado, que pelo trabalho
tivesse ficado obliterado. Tem de comprimento 0m,086, no eixo
maior da base 0m,056 e no menor. 0m,04i; no eixo maior da
extremidade menos larga Gm,025 e no menor 0m,19. Está no
museu.
Indico também uns espheroides de quartzo, que parece terem
sido percutores abandonados, como outros muitos que no campo
se acham com frequência. Acerca d'estes espheroides já indiquei
n'outro logar o conceito do sr. G. de Mortillet, que julga terem
sido primeiramente preparados com facetas angulosas, e que de-
pois de todas abatidas pelo trabalho, foram tomando a forma
arredondada, a ponto de não poderem mais ser utilisados. Os
eixos variam entre 0m,050 e 0m,063. Estão no museu. São nu-
merosos os percutores encontrados em diversas estações do Al-
garve e avulso nos campos.
Desengrossadores. — Calhau de calcareo poroso pardacento
da forma de polygono irregular, dando n'uma das suas secções
CONCELHO X>E VILLA ll^AL
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No original -eixo longitudinal 0m#«r> > transversal 0*, t$6 \Coi1erxSo do Estado)
UlflaiTajiba Rós d* *6cir.ho dctoío $
267
um pentágono de lados desiguaes c na extremidade do eixo per-
pendicular á secção horisontal do pentágono dois planos oblíquos
ligeiramente convexos. Todas as faces d'este solido foram produ-
zidas pelo atlrito exercido n'outras pedras. O seu maior eixo
mede 0n\075.
Ha mais três outros sólidos similhantes da mesma rocha e
uns espheroides cuja superfície mostra também ter-sc gasto e
alisado pelo attrito.
Polidores ou Brunidores. — Citarei três d'estes instrumentos:
i.° Calhau com duas faces lisas um pouco convexas, me-
dindo no eixo maior 0m,10 e no menor 0m,075.
2.° Calhau de quartzo, de forma elliptica, determinada por
dois planos convexos, oppostos, convergindo em angulo, e liga-
dos por uma faxa circumdante de bordos abatidos, de altura de
0m,023, sendo o seu eixo maior de 0m,069 e o menor de 0m,051,
com a máxima espessura de 0m,040. Mostra ter sido muito gasto
na extremidade mais estreita num e n'outro lado, sendo mui po-
lidas as duas facetas convergentes. Parece ter sido polidor. que
trabalhou com o auxilio da agua. E mui perfeito.
3.° Um pequeno calhau de schisto negro (?), ou talvez de
basalto de forma elliptica, achatado, de arestas abatidas, com
uma depressão na extremidade larga produzida pelo attrito. Mede
no eixo maior 0m,066 e na maior largura 0m,024.
Tendo mostrado que a estação neolithica da Marcella conti-
nha os principaes instrumentos de trabalho de que careciam os
artistas e artífices da ultima idade da pedra, é mister igualmente
mostrar osproduetos com que tão mal armadas mãos se deixa-
ram memoradas.
Placas de schisto com gravuras. — Duas d'essas placas de
schisto appareceram entre os ossos dos indivíduos sepultados no
dolmen-tumalm da Marcella: e mui bem podem essas laminas
haver sido preparadas na própria localidade; pois não faltava
nesta região do sul a maioria prima, nem faltavam no próprio
268
dolmen os instrumentos para a sua manipulação. Represento
uma só, um tanto reduzida pela photographia (estampa xx), cujo
eixo maior mede 0m,205, o transversal máximo 0m,126, sendo
de 0m,009 a espessura geral, assim como de 0m,004 o diâmetro
do orifício. Esta placa também tem gravura ornamental na face
opposta, o que é muito raro. A outra, apesar de ser diversa no
lavor, não vae estampada. Ahi fica no museu.
Plaga de marfim ornamentada. — A gente que nas estações
da Nora e da Marcella usava objectos de pedra com gravuras,
não se limitava a estes únicos adornos, porque também os tinha
de marfim mui bem trabalhados. A estampa xxi, fig. 2, repre-
senta uma ténue placa de marfim, lisa n'um lado e no outro or-
namentada de quadradinhos mui regulares, formados pelo en-
contro de sulcos diagonaes, cruzando-se perpendicularmente. Era
este ornato na parte superior pedunculado e foi o seu pedúnculo
talvez mais alto e atravessado por um orifício para poder ser en-
fiado por um cordão, ou sulcado para se poder atar, e rematava
na extremidade inferior em bordo, arqueado, finamente den-
teado.
Era sem duvida um enfeite pendente de grande apreço
naquelles tempos, em que a arte prehistorica parecia querer
renascer, podendo presumir-se que seria objecto de industria ar-
tística local, a ter-se em vista uma lamina delgada de marfim
com 0m,008 de espessura, 0m,180 de comprimento e Om,0(55 na
maior largura, perfeitamente cortada de um dente, que pode ter
sido de elephante, o que não seria impossível l ter-se achado
naquelle território, por isso que uma espécie de elephante, que
se diz ser o Elephas africanus, foi verificada em 1863 [por Ver-
1 Nada se pôde affirmar nem negar com referencia á paleontologia algarviense. Por
cmquanto não tem alli havido trabalhos geológicos fundamentaes, de que possam de-
duzir-se as faunas e floras fosseis daquelle território. Antes das explorações em Santo Izi-
dro; ninguém affi raiaria a própria possibilidade de se descobrir alli uma espécie de
Elephas, que só poderia finalmente procurar-se no continente africano.
MARCHLLA
jphxxt
269
neuil, Lartet e D. Gasiano de Prado nas alluviões quaternárias
do valle de Manzanares, em Santo Izidro, perlo de Madrid. Nem
se pode entender que aquella boa lamina de marfim, tendo sido
tão habilmente serrada, não estivesse de reserva para algum tra-
balho delicado. E como chegaria ella a ser serrada? Que instru-
mentos e que processos seriam empregados para ser vencida
uma tão enorme difíicuMade?
E mister entender que a serrilha fina e forte do dente fóssil
do sqnaloide terciário, que se tem achado nos dolmens-tumuli
e na caverna da Sinceira, assim como a da faca de silex trans-
formada em serra, assenta sobre uma aresta d'onde o instru-
mento começa logo a engrossar, e por isso, applicada uma tal
serra á pedra ou ao marfim, o seu corte não podia ir fundo, em-
bora rodeando o núcleo, para destacar laminas da largura de
0m,065, como é aquella a que me refiro. O núcleo, ao passo que
a serragem avançasse, seria necessariamente desbastado pelas
enxós, pelos escopros e facas, mas com perdimento de matéria.
De outro modo não posso julgar que a serra, simplesmente, po-
desse cortar espaçosas laminas de marfim.
Uma única hypothese poderia emittir-se com mais algum
viso de probabilidade, do que a presumpção de poderem ter sido
achados dentes de elephante no território do Algarve, como nas
alluviões quarlenarias do Manzanares, e de que os homens dos
tempos neolilhicos tivessem á sua disposição os meios práticos
de reduzil-os a folhas delgadas para fabricarem pingentes com
gravuras, e a grossos pedaços para fazerem caixas e tampas or-
namentadas, como aquella que se achou na estação da Nora; pois
assim como a civilisação neolithica se deixou affirmada com ar-
tefactos novos de substancias não conhecidas hoje em varias
regiões das que provadamente habitou, podéra também receber
manufacturas de marfim de uma outra plaga que já contasse
maior desenvolvimento e progresso, tanto mais dando-se o caso
de que as manufacturas de marfim e osso apparecem na Europa
em grande numero de estações synchronicas, o que não suecede
com as placas de schisto gravadas, que somente, sob o mesmo
27G
eslylo, toem sido achadas cm Portugal, deixando presumir que
haja sido uma industria artística d'esta zona geographica.
Gorjal. — Um artefacto de barro com mescla de grãos de
quartzite, e da forma de crescente, com uma cannelurà central
num lado e com um orifício próximo de cada extremidade, exi-
stia entre os objectos do deposito mortuário da Marcella. Foi, re-
conhecidamente, adorno, insígnia de auetoridade, ou amuleto,
que se traria pendente do pescoço, a que teria adherido um pin-
gente, cujo cordão de suspensão passaria pela dita cannelurà. Está
perfeitamente conservado, como se vê na referida estampa xxi,
sob o n.° 7.
A forma de crescente nos tempos prehisíoricos deixa ver uma
especial symbologia referente á lua. O sr. Gagliardini, director
da quinta regional de Cintra, descobriu no sitio da mesma quin-
ta, conhecido pelo nome das Barradas, um deposito neolithico
exeavado na rocha, onde, entre muitos característicos da ultima
idade da pedra, existia um objecto de calcareo da forma de pyra-
mide cónica truncada, o qual, entre outros ornatos, mostra no
centro uma meia lua com as pontas' para baixo, se porventura o
objecto era usado com o topo mais largo servindo de base. Este
bello artefacto pertence á secção geológica e é figurado na me-
moria de Carlos Ribeiro, intitulada Noticia de algumas estações e
monumentos prehistoricos, pag. 83 (1880). Estes symbolos pare-
cem reforçar o conceito, a que já alludi, da existência de um
culto consagrado á lua.
A mesma estampa xxi representa sob o n.° 4 um fragmento
de dente de javali com duas arestas afiladas; mostra ao mesmo
tempo sob os n.cs 1, 3, 5 e 6 uns fragmentos de ponteiros ou
espigões de osso polido; o que não seria difficil fazer-se com o
auxilio dos instrumentos que ficam descriptos.
Tintas mineraes. — Já me referi ao facto assaz significativo
da existência de substancias mineraes destinadas á fabricação de
tintas, attribuindo-as ao uso das tatuagens ainda mantido entre
271
algumas Iribus selvagens de varias regiões. No monumento da
Marcella descobri a hematite vermelha ou ferro oligisto, c duas
massas granulares crystallinas de cinabrio, ou sulphureto de mer-
cúrio.
Na America, na Africa e ainda n'outras regiões do globo, cm
que alguns povos barbaricos se adornam de tatuagens, as cores
mais usadas são a vermelha c a preta; e assim como já ficam
indicadas duas drogas que produzem a côr vermelho escuro, e
vermelho claro, os homens que habitavam esta zona do Algarve
nos tempos prehistoricos conheceriam também o manganez, que,
sendo pulverisado, dá uma tinta muito escura; pois este mine-
ral acha-se nas minas antigas do Murração, no concelho de Al-
jezur, nas de Valle de Pegas, no concelho de Albufeira, e fre-
guesia de Paderne, e n'outros logares assignalados por bons
característicos neolithicos. Póde-se pois afoitamente affirmar que
o manganez já então era tão conhecido e usado, que tem sido
descoberto n'algumas estações da ultima idade da pedra em
França, na Bélgica e n'outros paizes.
A limonite, ou peroxydo de ferro hydratado, achei eu no mo-
numento da Torre dos Frades, e no de Alcalá, onde havia graes
de pedra, já figurados e descriptos, em que as tintas seriam pre-
paradas.
Gomquanto não conste haver-se encontrado o cinabrio n'este
paiz, não posso affirmar que não fosse possível em tempos tão remo-
tos achar-se no Algarve, tanto mais tendo-se verificado em Olhão
uma mina de mercúrio quando se abriu o poço publico logo á
entrada da villa. É porém mais provável que ao Algarve podesse
chegar o cinabrio da celebre mina de Almaden. Fosse porém qual
fosse a proveniência do que achei no dolmen da Marcella, a sua
presença entre os ossos e instrumentos alli depositados seria
para se aproveitar na fabricação de tinta vermelha, que bem pode
também ter-se empregado em colorir alguns objectos de adorno,
embora não os houvesse naquelle deposito.
No mesmo dolmen-tamnhis achei inteiro e cheio de terra um
gargalo de vasilha de barro, envolvendo uns pequenos grumos,
272
que ainda se observam, de tinta vermelha finíssima, de côr mui
limpa, deixando-me presumir que fora aquelle vaso um deposito
de tinta já depurada para se poder levar ao gral e ser talvez
dissolvida com gordura ou medulla de alguns ossos longos de
animaes, que por vezes tenho encontrado partidos por choques
de percutor n'outros logares próximos de estações prehistoricas.
E não era somente alli usada aquella tinta vermelha, porque tam-
bém a descobri num gral de pedra, de que darei noticia no se-
gundo volume d'esta obra.
Tudo quanto a respeito de tintas tenho dito, parece poder
significar que um dos caprichos de maior luxo, uma das singula-
ridades de mais requintada galanteria, era a pintura da pelle,
acompanhada da compostura dos adornos, em que sobresaía um
collar de conchas da praia, ou de contas de pedra, e um amuleto
pendente, com que se afugentavam todos os males da vida; pois
quanto a vestuário, de pelles ou de algum tecido grosseiro e pe-
sado, até que o frio não apertasse, seria uma verdadeira extra-
vagância, uma affrontosa superfluidade.
La estavam também umas conchinhas, e duas perforadas,
como se podem ver no museu. Eram dos géneros Ostrea, Car-
dium, Conus e Nerita
Louças. — A baixella cerâmica da Marcella deve ter sido opu-
lenta. Os numerosos fragmentos que alli observei mostram que
havia profusão e variedade de vasilhame, embora da mais rude
fabricação. A gente d'aquelle tempo não inventou certamente o
testamento, porque, levando comsigo, quando ia a enterrar-se,
todas quantas alfaias possuía, não tinha que testar. O thesouro
cerâmico soffreu enormes avarias. Os que me precederam na
exploração, não sendo alli conduzidos por interesse scientifico,
não lhe deram a minima importância; o que não pisaram,
deixaram esmagado com o peso dos entulhos que desceram
da cúpula do tumulus em que numerosos indivíduos esperavam o
venturoso momento da resurreição. Para reconhecer a forma de
alguns daquelles vasos foi mister procurar pacientemente os fra-
273
gmentos e collal-os. Foi assim que consegui restaurar os que
figuro nas estampas xxn e xxm.
Na estampa xxn o 1.° é de barro escuro, pasta delgada e
fundo convexo, com uma depressão no centro, adherindo por um
bordo abatido ao gargalo, que tem a forma de cannelura muito
aberta, terminada por outro bordo virado para o lado externo.
São eslas as suas dimensões: altura total 0m,068, diâmetro do
bordo inferior 0m,128, do superior 0m,125, da linha central do
gargalo entre os dois bordos 0m,120, e altura do gargalo 0m,046.
O 2.° estava parcialmente destruído, mas cheio de terra endure-
cida, tendo superiormente incrustada na mesma terra um fra-
gmento de faca de silex, de secção transversal prismática, com
dois gumes cortantes.
O vaso tem o fundo convexo, mas um tanto achatado no cen-
tro e pega seu bordo saliente com o bojo, que é ligeiramente
convexo, rematado em bordo direito. Póde-se calcular o diâme-
tro do fundo em 0m,065, o da boca em 0m,090, e o da circum-
ferencia do bojo em 0m,097, sendo de 0m,073 a altura do eixo
vertical. O facto de se ter nelle achado, como ainda se observa,
um fragmento de faca de silex, permitte suppor que serviria para
receptáculo de taes objectos, ou que nelle fossem recolhidos os
mais miúdos dos que, durante a vida, estiveram em uso do indi-
viduo a quem o monumento da Marcella deu abrigo reservado e
honroso.
O 3.° vaso é assaz significativo : tem a forma hemispherica e
não melhor trabalho que os antecedentes. A altura do seu eixo é
de 0m,055, sendo o diâmetro do bordo superior de 0m,144. Disse
que era assaz siguiíicativo, porque veiu manifestar uma excepção
aos usos funerários do tempo, contendo cinzas e fragmentos de
ossos queimados, envoltos nos torrões que actualmente conserva;
o que bem claramente mostra haver-se recolhido naquelle de-
posito mortuário uma urna cineraria, quando o systema domi-
nante era a inhumação, mui provavelmente com os cadavares
dobrados pelas articulações dos fémures, por isso que os outros
ossos, não obstante já terem sido bastante revolvidos, ainda dei-
18
274
xavam perceber n'um ou n'outro logar o espaço que tinham oc-
cupado após a decomposição das suas ligações musculares. É
caso único em toda a região dolmenico-tumular da ultima idade
da pedra.
A estampa xxm reproduz em dimensões reduzidas pela pho-
tographia outros três vasos. O 1.°, comquanto incompleto, repre-
senta a primitiva configuração. E um vaso de tosco trabalho,
com o bojo e o fundo convexos, tendo o bordo superior inclinado
para o eixo vertical. A pasta cerâmica é delgada e compõe-se de
terra escura, argilla avermelhada e areia quartzosa em pequena
quantidade. Não parece ter sido cozido em forno, por se quebrar
facilmente com os dedos.
O n.° 2 é quasi espherico e de minguadas dimensões. Mede
de altura 0m,057, no maior diâmetro do bojo 0m,073, e no da
boca, que termina em bordo muito abatido, apenas 0m,033. E o
mais perfeito da collecção. Deve ter sido fabricado para usos
funerários ou para conter algum objecto delicado dos que esta-
vam em uso.
O n.° 3 é um vaso maior, quasi da mesma forma do antece-
dente, sendo porém mais abatido na -metade superior. Ficou todo
amolgado dos dedos do fabricante, que, ao que parece, tinha
mão pesada e avessa para não poder distinguir-se nos primores
da arte.
Saiu pois este aleijão com 0m,87 de altura, 0m,139 no maior
diâmetro do bojo e 0m,060 no da boca, um tanto levantada so-
bre um curto gargalo.
No museu existem muitos fragmentos, que mostram a diver-
sidade das louças que já então havia. Ha duas azas ou pegas, que
pertenceram a vasos de grandes dimensões e espessura corre-
spondente; ha também uns grossos fragmentos de espaçosas vasi-
lhas de pouca altura, atravessados de orifícios do diâmetro de
0m,009, assim como uma pedra com cavidade natural visivel-
mente aperfeiçoada para se poder utilisar. A cavidade estava
cheia de terra com lascas de pedra, talvez pertencentes ao pecúlio
deixado por um dos sepultados. O maior diâmetro interno mede
275
0m,102 e tem a fundura de 0m,05. A maior altura externa é
deOra,132.
Nada mais continha o dolmen-tumulus da Marcella, que o
sr. António Madeira me permititu explorar com a clausula de se-
rem applicados os objectos alli achados para o museu, já então
projectado, das antiguidades do Algarve, associando-se assim ao
pensamento com que os mais proprietários me fizeram igual con-
cessão.
Era esta a ultima estação neolithica, que na secção sub-
oriental da província havia sido descoberta na exploração geral
que me foi incumbida para o levantamento da carta archeologica,
não obstante já muito anteriormente haverem apparecido em vá-
rios logares d'aquella freguezia uns certos instrumentos de pedra
em trabalhos ruraes, que deixavam presumir a existência de
mais algumas estações até quasi á margem direita do rio Gua-
diana; e não ficou essa bem firmada presumpção sem ser confir-
mada, como vou mostrar.
Cacella. — Ao norte magnético e em distancia de 1:730 me-
tros da igreja de Cacella, no corte do novo ramal que em 1884
se estava fazendo, a partir da Ponte Nova, para se abrir o ca-
minho da igreja aos moradores mais apartados da sede parochial,
descobriram os trabalhadores umas grandes pedras, que arran-
caram, e junto d'ellas viram muitos pedaços compridos de peder-
neira, que foram mettendo nas algibeiras, chegando a partir os
maiores para melhor caberem, por serem muito boas pedras de
ferir lume para a isca de accender o cigarro. Com as pedernei-
ras, acharam também muitas pedras de raio, de diversas dimen-
sões, que mui provavelmente teriam o cuidado de levar á noite
para casa, a fim de porem o lar domestico em guarda contra
raios, centelhas e coriscos. Só lhes faltou acharem a pedra phi-
losophal, e algum amuleto, que os defendesse das bruxas, lobis-
homens e do pavoroso escrivão de fazenda.
Constando porem este caso ao intelligente e digno fiscal
d'aquelles trabalhos, o sr. Joaquim José Lima de Azevedo, meu
276
distincto consócio no instituto archeologico do Algarve, tomou
logo as providencias que julgou serem mais úteis para ter conhe-
cimento certo do logar do achado e chegar a obter os objectos que
ainda podesse salvar d'aquellas garras damninhas.
O sr. Lima de Azevedo desejou explorar o logar em que
tinham apparecido as facas de silex, os machados e enxós de
pedra, mas como aquella obra estava dada de arrematação por
empreitada, entendeu que não cabia em sua alçada compellir
os empreiteiros a consentirem trabalhos propriamente archeo-
logicos. Occorreu-lhe, porém, a feliz idéa de levantar uma
planta, que remetteu á secretaria do instituto, em que marcou
precisamente o ponto archeologico, assim como dois outros loga-
res com indicios de antigas sepulturas; e por este bom serviço,
que todos os engenheiros deveriam imitar, se poderá um dia
fazer-se alli uma exploração em devida regra.
A estampa xxm A mostra a situação do monumento e registra
ao mesmo tempo outras noticias.
O sr. Lima de Azevedo foi também informado de que com
os instrumentos de pedra estavam muitos ossos humanos e louças
partidas, o que bem mostra que um monumento prehistorico,
porventura um dolmen coberto, alli existia. Obteve finalmente um
grande machado de schisto amphibolico de 0m,31 de compri-
mento (estampa xxiv, 3) de 0m,31 de comprimento e uma excel-
lente enxó da mesma rocha com o comprimento de 0m,144 (es-
tampa xxv, 3), que logo enviou para o deposito do museu
archeologico de Faro. Por todos estes serviços cabem merecidos
louvores ao sr. Lima de Azevedo, sentindo não ter tido similhan-
tes occasiões de podel-os igualmente tributar aos engenheiros,
que, pelo contrario, tantos monumentos têem deixado estragar e
destruir n'esta província.
A noticia dos descobrimentos feitos no ramal da Ponte Nova
para a igreja de Gacella acudiu quasi ao mesmo tempo o sr. dr.
Joaquim do Nascimento Trindade, distincto medico residente em
Tavira e presidente da commissão filial do instituto no mesmo
concelho, e taes diligencias empregou, que ainda conseguiu obter
FstJY/f/A
Imante
demita irrui de. lemno ao norUda yreji* cie Cacei la cnd*
^erumleaeyzenala^tmasantt^ttdadesyue^riameeUreyue.' m>
Jfisfiiu&tJrc/teâZoerite de Farv
Estala Z.30C0
Sar? -_/e rirei ■ rc de JttSZ-
.Jcatfuiin Jhse Lima. de '^íze-ve-do
t^eés z><rrdíH vlclf eiartaes evidentes de serfultu.
tAG desvyrKxdc jaela le-ér-a. t Act lau.c*lmt?rtlt
atarias dé sez>i*llierr*.f e. /hi alu, oua
/cuzes de silea- e mevcAad.v Krr/i^ios de «w/r
X <d 17fC ae vi" de Ccce/Za,
//WJim<r«á».e c^rvtmtccs /*stfi /m+nctrw, e/c
T\*rrv%4l>$(f) duéruátUê fM& *cr& <& ramal ok-
277
as duas cxcellentcs facas de silex, que figuro na estampa xxiv
com os n.os 1 e 2, um fragmento de outra, uma grande enxó de
schisto amphibolico (n.° 1) de 0m,29 de comprimento, embora
infelizmente fracturada, e mais outra do comprimento de 0m,162,
muito perfeita, que na mesma estampa é indicada sob o n.° 2.
Todos estes instrumentos foram logo entregues pelo sr. dr. Trin-
dade ao distincto cónego vice-reitor do seminário episcopal, o
rev.d0 Joaquim Maria Pereira Botto, secretario geral do instituto
archeologico do Algarve.
Estes actos de dedicação pelas antiguidades nacionaes hon-
ram os homens que os praticam e abonam em subido grau a sua
intelligencia a patriotismo.
Nada mais por emquanto, que me conste, se tem colligido da
estação neolithica de Gacella. Alli chegarei um dia, e talvez sem
necessidade de recorrer ao auxilio de certas repartições, onde
ainda hoje o conceito em que são tidos taes descobrimentos, não
vae muito mais longe do que o d'aquelles, de ennevoados be-
stuntos, que quebraram famosas facas de silex para talharem pe-
dras de ferir lume para os cigarros! Estes últimos, emfim, não
sabem o que fazem, ao passo que os outros não fazem o que de-
viam saber.
Torre dos Frades. — A uma antiga torre octogonal, que
ainda ha poucos annos se via erguida como alterosa vigia, de con-
strucção mui provavelmente árabe, distando 3 kilometros a nor-
deste da igreja de Cacella e uns 1:800 metros da raia do ocea-
no, deu o povo a denominação de « Torre dos Frades » , por estar
em meio de um terreno que pertenceu aos frades de S. Paulo
de Tavira. Passando depois ao domínio particular, quando o di-
reito de associação foi neste paiz outorgado a todas as classes
sociaes com excepção das ordens religiosas, o proprietário, talvez
duplamente affrontado com aquella torre, por ter sido de frades
e de mouros, mandou arrazal-a e no mesmo logar edificou uma
habitação campestre, que ninguém vô de longe, seguindo assim o
exemplo dos conquistadores do Algarve, que não quizeram dei-
278
xar-nos de pé um único monumento da sumptuosa architectura
civil e religiosa, com que a opulenta civilisação mahometana se
tinha representado n'esta parte da península.
Desappareceu pois a Torre dos Frades, outr'ora dos mouros,
mas deixou vinculado o nome que o povo achou e lhe deu, em
todo aquelle sitio actualmente dividido em muitas propriedades
ruraes, comquanto deva entender-se não ser anterior ao século
xvii, por isso que d'esse tempo data a fundação do convento de
S. Paulo; e assim continuará a ser proclamado, emquanto a ca-
mará de Villa Real de Santo António não se lembrar de dedicar
aquelle sitio, que ainda pelo nome recende a frades, ao nome de
alguma celebridade da sua circumscripção, que mais se tenha
distinguido na travessia do Guadiana, depois de ter conseguido
confiscar ao padroeiro Santo António a consagração da villa,
substituindo o nome do santo pelo de algum outro santo de mais
recentes milagres, como tem feito a municipalidade metropoli-
tana do nosso continente branco, trocando designações locaes
com tradições históricas, que deviam estar escriptas com letras
de ouro, nos seus annaes, para que nunca se apagasse a memo-
ria dos que foram martyres da pátria e da fé, ou que com seus
feitos, já esquecidos, tinham por único monumento commemo-
rativo o rotulo epigraphico de uma rua corrente.
A habitação d'essa grande área de terra não é porém obra de
frades nem de mouros; mouros e frades edificaram sobre minas
wisigothicas e romanas e os próprios romanas já alli acharam restos
de outros predecessores antiquíssimos, e tantos d'esses restos havia
ainda então, que nem ás successivas invasões nem a passagem de
dezenas de séculos os poderam totalmente destruir, como vou mo-
strar com as estampas das construcções paleoethnologicas que des-
cobri e com as dos artefactos da sua synchronica industria; o que
não deixou de ser um tanto difficil, porque o lavor agrícola tem
arrazado todos os apparentes vestígios d'esses vetustos edifícios,
que só poderão achar-se talvez em apreciável estado de conser-
vação nos planos outr'ora inferiores, onde as inundações têem
deposto os detritos desaggregados dos pontos adjacentes mais
279
altos, formando depósitos alluviaes e camadas sedimentares de
varias espessuras, que tudo estão encobrindo.
Quando em 1877 fiz o reconhecimento geral para o levanta-
mento da carta archeologica, percorri o sitio da Torre dos Fra-
des, já meu conhecido, onde em 23 de outubro de 1865 tinha
achado isolada na terra lavrada uma conta de calaite ao abai-
xar-me a colher uma planta para o meu berbario. D'alli tinha eu
recebido por offerecimento do sr. António Marcellino Madeira três
instrumentos de pedra polida de fórma pyramidal, um espheroide
de pedra, crivado de orifícios, e dois vasos de barro quasi preto,
sendo um de suspensão; mas não vi indicio algum de obra pre-
histórica. Além d'estes objectos tinha obtido uns machados de
pedra, também achados n'aquelles terrenos em trabalhos ruraes,
o que me levou a presumir que deviam pertencer a um deposito
mortuário, cujo pavimento estaria intacto, porque tão fundo
nunca teriam chegado a enxada e o arado. Tendo porém em
vista as instrucções que me tinham sido dadas pelo governo,
de me limitar ao exame das antiguidades locaes assignaladas
por vestígios apparentes, não ousei emprehender pesquiza al-
guma.
Ficou-me todavia em lembrança aquelle sitio, e mais me
convenci de que não laborava numa simples preoccupação, sup-
pondo n'elle haver uma estação prehistorica, quando recebi de
Aljezur um vaso de suspensão, de menores dimensões, mas idên-
tico na fórma ao que fora achado em 1876 na Torre dos Frades;
e dei a estes vasos uma certa importância local, por não haver
ainda então noticia de terem apparecido em paiz algum da Eu-
ropa. Havia apenas mais um, que o perspicaz Emilio Gartailhac
me communicou ter descoberto na secção geológica de Lisboa.
Findas as sessões do congresso em 1880, fui especialmente pe-
dir informações ácêrca do dito vaso observado por Gartailhac;
mas Carlos Ribeiro affirmou-me nunca tal cousa ter visto, e com-
tudo já o tinha mandado estampar na memoria que naquelle
mesmo anno a academia das sciencias lhe publicou sob o titulo
de « Noticia de algumas estações e monumentos prehistoricos*,
280
saindo porém o desenho tâo imperfeito, que o original continuou
a ficar desconhecido.
Não desisti do intento. Passados cinco annos voltei em busca
do referido vaso, por ser de todo o ponto importante para a clas-
sificado dos dois do Algarve saber em que condições de epocha
tinha sido achado o da secção geológica. Tive emfim a fortuna
de descobril-o, andando alli a examinar outros diversos objectos,
acompanhado do distincto naturalista, o sr. Gotter, a quem logo
o indiquei.
O vaso de suspensão da secção geológica foi achado com ou-
tros muitos objectos e ossos humanos na serra de Cintra? dentro
de um dolmen coberto, de camará circular e corredor alongado, exi-
stente no sitio da Folha das Barradas, pertencente á quinta regio-
nal, e foi o sr. Gagliardini quem salvou da destruição aquelle
monumento, e offereceu a Carlos Ribeiro os objectos que conti-
nha, convidando-o a ir completar a exploração. O dito vaso en-
trou com todos os mais artefactos nas galerias da secção geoló-
gica, não sendo percebidos os quatro furos que atravessavam a
espessura da superfície convexa superior junto ao bordo da sua
abertura circular, e assim, sob o n.° 95, foi representado na dita
memoria, onde tudo é descripto desde a pagina 78 em diante,
dizendo Carlos Ribeiro: «Com estes depojos estavam também
objectos de cerâmica como tigellas e pequenos vasos dos quaes
dão idéa as quatro figuras 92 a 95 desenhadas nos dois terços
da grandeza natural. São de barro grosseiro e fabricados sem
auxilio da roda de oleiro. »
Do estudo que Carlos Ribeiro fez na quinta regional de Cin-
tra a convite do sr. Gagliardini, deduz-se que o monumento da
Folha das Barradas representa rigorosamente o período neolithi-
co, sendo notável a similhança da sua planta (fig. 82) com a de
quasi todos os dolmens cobertos do Algarve.
Já mostrei que o vaso de suspensão de Aljezur pertencia a
uma estação verdadeiramente neolithica : resta-me agora descre-
ver os monumentos que descobri na Torre dos Frades.
Tendo ficado observados os pontos que havia proposto para
281
a exploração complementar, entre aquclles que no meu trajecto
fui descobrindo e deixando sem estudo algum, por não terem sido
auctorisados, cheguei ao sitio da Torre dos Frades, onde logo
tratei de pedir informações com referencia aos terrenos em que
tinham apparccido artefactos prehistoricos. Relativamente ao vaso
de suspensão, sabia-se apenas ter sido achado em 1876 na cerca
de D. Maria dos Martyres e Silva.
Com a estampa xxvi á vista se perceberá facilmente o que
vou expender.
Observei minuciosamente todo o terreno e notando haver nas
proximidades do vallado que corre no alinhamento da azinhaga
uns fragmentos soltos de louça dolmenica, determinei um corte
com mais de 1 metro de largura no parallelo do vallado, e che-
gando a uns 0m,60 de profundidade, appareceram mais fragmen-
tos de louças. Logo pouco abaixo achei uma soleira de terra ba-
tida e muito apertada com 0m,80 de largura e mais adiante,
em distancia de 5m,20 no rumo de su-sudoeste, manifestou-se outra
soleira com a mesma largura de 0m,80, no mesmo eixo transver-
sal da primeira. Mandei abandonar o corte e encaminhar o tra-
balho pelo seguimento das soleiras, tanto para es-nordeste como
para oessudoeste, as quaes proseguiam perpendicularmente á
azinhaga e já iam chegando á linha externa do vallado da cerca,
quando começaram a manifestar maior amplitude e uma configu-
ração circular.
Emfim, tinha-se chegado a dois pavimentos que abrangiam
toda a largura da azinhaga, achando-se no centro cio pavimento
do primeiro, a nor-noroeste, um machado polido de schisto am-
phibolico, como eram quasi iodos os de Aljezur, fragmentos de
ossos e de louças, assim como algumas lascas dispersas de cal-
careo rijo e de schisto stratiíicado, entre as quaes appareceram
também pequenos restos de placas da mesma rocha com signaes
de gravura. A outra crypta circular, a su-sudoeste, continha
cinco craneos esmagados e mais dois inteiros, rigorosamente do-
lichocephalos, muitos ossos partidos, entre os quaes havia alguns
húmeros furados na cavidade olecraneana e libias tirante a pia-
282
ticnemicas, assim como muita louça feita pedaços, toda de rude
fabricação. Foi então que a proprietária da cerca e uns trabalha-
dores se recordaram de ter sido no logar em que descobri o de-
posito A, indicado na planta, que se tinham achado em 1876 os
mencionados objectos.
Os jazigos da azinhaga, figurados na estampa xxvi, foram
abertos e formados por excavação na rocha natural, como o havia
sido o famoso deposito de Aljezur, com a configuração geral de
quasi todos os dolmens cobertos da região, compondo-se simples-
mente de crypta ou camará circular, e de uma galeria ou corredor,
que também se abriu por excavação. O maior diâmetro da crypta
nos dois monumentos mediu lm,50 e ambas as galerias tinham
0m,80 de largura, não se podendo saber qual foi a extensão que
tiveram, por estarem destruídos os átrios, assim como não é pos-
sível avaliar- se a primitiva altura interna, por terem os monumen-
tos sido cortados e a terra emparelhada para a cultura desde
tempos antigos.
Os ditos depostos não soffreram somente os estragos produ-
zidos pela enxada do agricultor, mas os dos invasores que alli
foram procurar os thesouros pertencentes aos sepultados; pois
sobre esses pavimentos, aonde a enxada nunca chegou, tudo es-
tava reduzido a bocados, com excepção dos ditos craneos, que
mal se poderia explicar como ainda se conservavam inteiros, se
não estivessem cheios de terra endurecida.
Um facto assaz singular denuncia a invasão n'aquellas man-
sões mortuárias ; pois havendo sete craneos numa d'ellas, deve-
riam também achar-se os ossos correspondentes a igual numero
de indivíduos, e comtudo bem poucos alli jaziam.
O systema de enterramento em tão apertado espaço, tendo
sido o da inhumação, só pode conceber-se que tivesse podido
effeituar-se com os cadáveres dobrados pelas articulações dos
fémures e encostados em torno do espaço excavado, como parece
deprehender-se da situação figurada na planta, letra B, em que
achei os craneos, ou então, que os enterramentos se fizeram em
cistos, passando-se depois os ossos para aquelle deposito; mas
283
eram, como disse, tão poucos os ossos, que mais provavelmente
pode julgar-se que os invasores os expelliriam para melhor pro-
curarem os instrumentos que os acompanhavam, sendo porem
mui notável terem ficado os craneos, embora alguns invertidos,
numa disposição relativamente symetrica.
A estampa xxm, pertencente á collecção geral dos instru-
mentos de pedra isolados, representa com a figura 2 a forma dos
que foram achados numa parte da galeria do monumento A.
São três rijos picões periformes de quartzo, rematados em extre-
midade ponfaguda; nenhum d'elles denota sensível indicio de
trabalho, podendo assim presumir-se que fossem armas de mão,
como mui bem podiam igualmente ser encabados. O seu golpe,
dirigido por braço robusto e adestrado, seria terrível. Não rece-
beram ainda nomenclatura alguma estes instrumentos, de que
achei outros similhantes em vários pontos, e iaes são o do Serro
do Haver, no concelho de Lagos, figurado sob o n.° 1 na es-
tampa iv, e outro do Monte de Roma, concelho de Silves, repre-
sentado com o n.° 3 na estampa xm.
Foram aquelles três instrumentos totalmente preparados em
pedra de amolar, mas estão revestidos de um envolucro tão es-
pesso, que não é possível verificar a natureza mineralógica da
rocha a que pertencem senão por uma pequena falha, que um
d'elles tem. A photographia reduziu um tanto as suas dimen-
sões. E porém notável estarem todos reunidos e acompanhados
de um espheroide de pedra, figurado na mesma estampa com o
n.° 3, crivado de buracos assaz fundos, mas sem communicação
alguma entre si. Não ouso aventurar conjecturas acerca do ser-
viço a que poderia ter-se applicado uma tal pedra, cujos bura-
cos não foram certamente feitos com os ditos instrumentos
ponfagudos, poisque na sua extremidade aguçada não ha ver
estrias nem attrito produzido por acção de rotação.
Ha muitos outros instrumentos do sitio da Torre dos Frades,
taes como percutores, machados, pontas de frecha, facas, etc.
Tudo isso está reservado nas minhas ultimas collecções, espe-
rando a occasião de poder reorganisar o museu.
284
Já me referi ao descobrimento de uma porção de limonite,
que appareceu no logar que devia ter occupado a galeria ou cor-
redor do primeiro dolmen coberto da azinhaga, figurado na es-
tampa xxvi, e a respeito d'este achado expendi também as con-
jecturas que me occorreram, sabendo-se que a limonite é uma
das tintas mineraes que com frequência se teem encontrado em
muitas outras estações neolithicas.
Cerâmica. — Numerosos fragmentos de louça appareceram
nas excavações que dirigi quando foram descobertos os monu-
mentos tumulares representados na estampa xxvi. Vendo porém
que não era possivel reunil-os para deixarem representar a con-
figuração das urnas a que tinham pertencido, não os colligi.
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escala 1100
285
O vaso de suspensão, que sob n.° 1 vae figurado, mostra ser
de barro escuro; mas não se podem distinguir os elementos da
sua composição, por estar inteiro e coberto de lustrosa patina,
que parece repassada de uma substancia gordurosa. E formado
por dois corpos convexos de secção circular, ligados n'um bordo
commum, abatido e alisado, com o diâmetro de 0m,186, sendo
superiormente aberto em boca, também circular, cujo diâmetro
mede 0m,090. Junto do bordo da abertura é horisontalmente
atravessado na sua espessura por quatro furos dispostos em cruz,
por onde seriam enfiados os cordões para poder ser suspenso á
feição de lâmpada. Tem de altura 0m,070, e em geral o duplo
das dimensões do de Aljezur, sendo, como este, fabricado sem o
auxilio do torno: Acerca dos usos que teriam tido os vasos d'esla
forma, já expendi as arriscadas conjecturas que me occorreram,
e por isso escusado é repetil-as.
A urna n.° 2 achou-se partida; mas deixa conhecer a sua
forma e dimensões. E hemispherica desde a base até o bordo sa-
liente, cujo diâmetro mede 0m,122, onde assenta um gargalo
ligeiramente retrahido em cannelura muito aberta, com quatro
azas adherentes e dispostas em cruz. Tem 0m,98 de altura total.
Em toda esta província não descobri outra louça da mesma con-
figuração.
Além dos dois monumentos figurados na estampa xxvi,
appareceu mais um para reforçar os meus conceitos.
A estampa xxvn representa um terceiro monumento a pouca
distancia dos da azinhaga que dá passagem para o caminho pu-
blico. Está situado no logar do Arrife, em propriedade de Ma-
nuel Gil Cardeira, cuja casa de habitação se acha a noroeste em
distancia de 310m,70, ficando-lhe a oeste o moinho de vento de
José Pires Padinha.
Os construetores cortaram um outeiro e n'elle exeavaram
todo o âmbito do deposito que destinavam para abrigo dos seus
morlos mais dilectos, dando-lhe a configuração, que chega a ser
typica em toda a região, e que também prende pela forma com
a do deposito da Folha das Barradas, em Cintra, a que Carlos
286
Ribeiro, tendo visto alli numerosos enterramentos, deu o simples
nome de sepultura.
A planta mostra exactamente o que existia d'esse monumento
funerário por mim explorado em 29 de julho de 1882. Estava
quasi arrazado. O diâmetro longitudinal mediu 3m,70 e o trans-
versal 4m,18, não conservando a galeria de entrada senão a ex-
tensão apreciável de 2m,78 com a largura de lm,35. O compri-
mento total existente deu 6m,48, podendo presumir-se que não
teria tido menos de 10 metros de comprimento até o átrio.
O plano da excavação foi todo revestido de grandes lages de
schisto, de que só restavam na crypta, e já partidas, as bases de
seis, e na galeria somente quatro, afora as dos batentes a que
encostaria uma porta que ficava a 2 metros de distancia da
entrada da camará, cuja soleira era inteiramente calçada de
pedra miúda, emmoldurando para o lado de su-sueste uma
lage de schisto quadrilonga com 0m,90 de comprimento e 0m,60
de largura, sobre a qual havia alguns ossos reduzidos a fra-
gmentos, pedaços de louça, uma ponta de frecha de silex,
(estampa xxvm, fig. 1) e uma lasca de osso (n.° 7) atravessada
por um orifício e terminada em ponta, deixando perceber que
sobre aquella reservada superfície tinham sido depositadas algu-
mas relíquias humanas de maior veneração. Achei o eixo d'este
monumento na orientação de es-nordeste para oes-sudoeste, dia-
metralmente opposta á dos depósitos da azinhaga, cujo átrio
apontava para oes-sudoeste; o que bem mostra que n'aquelles tem-
pos ainda não existia preceito algum no rito funerário em rela-
ção a orientações, do mesmo modo que também ainda não tinha
observância na idade do bronze, como mostrarei no segundo vo-
lume d'esta obra.
Poucos artefactos havia já no mui destruído dolmen coberto
do Arrife: appareceram pedaços de ossos, uma mandíbula incom-
pleta de individuo orthognata com as coroas dos dentes arraza-
das, três pontas de frecha de silex (fig. 1 a 3), seis fragmentos
de facas (fig. 4 e 5), um perfeito machado de schisto amphibo-
lico junto ao batente do lado de nor-noroeste, pequenos pedaços
<5**iJl£a/-43Í4u/ M tytcid** -IWXXVI/
Est.xxvin
Zith.ogr-a.-ph.ict da Imprensa. Neuiona-l.
287
de laminas de schisto que parece terem tido gravura, e muitos
bocados de louças misturados com lascas de schistos e calca-
reos. As facas, as frechas, o machado e a lamina de osso repre-
sento na estampa xxvm. O machado compete a um dos grupos
dos de Aljezur, e é da mesma rocha a que pertence a maioria
dos instrumentos d'aquelle notável deposito.
Com este monumento surgiu mais uma confirmação, que attesta
a solução do problema que mui audaciosamente me propuz re-
solver, descobrindo monumentos neolithicos acompanhados de
critérios similhantes aos de Aljezur, onde d'elles não havia um
único indicio apparente. E não foram só estes os critérios locaes
da ultima idade da pedra; ha outros; mas darei aqui especial
cabimento a dois instrumentos, que mui presumptivamente per-
tencem a um diverso monumento, que deixo reservado para futu-
ros exploradores.
Appareceu avulso na terra lavrada um perfeitíssimo macha-
do, todo desengrossado pelo attrito, de schisto crysíallino, se como
julga o distincto naturalista o sr. A. Bensaude, não é de uma
rocha amphibolica. É achatado; a sua secção transversal dá
uma perfeita ellipse; o fabricante formou-lhe gume cortante um
tanto arqueado, mas não chegou a afilar-lhe o corte, porque tal-
vez não o destinasse a cortar cousa alguma, e sim para ser, em
usos funerários, o simulacro de consagração do famoso instru-
mento que desde as mais remotas tradições representava o tra-
balho humano, embora um tanto diversos na forma fossem os
das primeiras alvoradas da industria do homem. É pois um instru-
mento digno das mais apuradas collecções. Mede de compri-
mento 0m,146, de largura máxima 0m,046, e de espessura
0m,021. Appareceu num rego aberto pelo arado. Abençoada
lavoura !
Outro perfeitíssimo machado trouxe o dente do arado á flor
da terra, e veiu todo avermelhado, ou antes saturado das argil-
las vermelhas do logar, a ponto de encobrir com este envolucro
a natureza mineralógica da rocha a que pertence. Confesso que
não o entendi; o que não me admira, porque no conceito do
288 _
atilado mineralogisla o sr. Bensaude ainda ficou duvidoso, ape-
sar de ter ensaiado o reconhecimento da rocha por um processo
chimico, fazendo só uma pequena brecha por não ousar maltratar
um objecto de tão singular aspecto, que, a primera vista, parece
ser de madeira e não de pedra. O sr. Bensaude deduziu da ana-
lyse, a que era possível chegar, o seguinte conceito: «Rocha par-
dacenta, com indícios de schistosidade rocha crystallina meta-
morphica. » Julga emfim, que seja uma grammatite schisiosa. É o
único instrumento d'esta feição encontrado em todo o Algarve;
nem eu vi outro assim em alguma das collecções de instrumen-
tos neolithicos do território nacional.
Não levarei mais longe a enumeração dos artefactos da
Torre dos Frades; além d'estes ainda possuo outros, porém me-
nos recommendaveis, e por isso omitto a sua descripção. Ficam
reservados para a reorganisação do museu. Melhor será tel-os á
vista do que descriptos. E esta uma das principaes vantagens
que dão os museus que não são organisados á similhança de
armazém de adelo, ou de um salão elegante, em que só imperam
os dictames do bom gosto.
Abrirei aqui um parenthesis para incluir outro instrumento,
que foi achado avulso entre as estações de Gacella e da Torre
dos Frades, no sitio das Vendas Novas. Se não foi o arado, seria
a enxada que o pôz á luz do sol, de que esteve ausente durante
milhares de annos. E uma enxó de rara perfeição, que tendo
sido aperfeiçoada em pedra de grés, foi depois totalmente
brunida e lustrada. Com mais fino polimento não será fácil
achar-se outra. Todo o seu revestimento apresenta uma cor cin-
zento-clara, que não deixaria reconhecer a rocha a que pertence,
se não tivesse junto ao gume uma pequena falha de recente
data. O sr. Delgado, a quem mostrei este bello instrumento, jul-
gou ser de hjdite, rocha de que só achei um machado em Alje-
zur, sendo por isso notável, em vista da sua raridade, encon-
trar-se ao mesmo tempo representada nas duas extremidades do
Algarve. Mede pois a bellissima enxó de hjdite das Vendas No-
vas 0m,078 de comprimento, 0m,043, na maior largura e 0m,017
c289
de espessara. Yae figurada sob o n.° 1 na estampa xxiv perten-
cente á serie dos instrumentos avulso existentes no museu.
Nas proximidades de Cacella e da Torre dos Frades não é
só o sitio das Vendas Novas que deixou presumir a existência de
monumentos ncolithicos. No mesmo caso estão o Ribeiro da Mor-
tinha, Santa Rita, Alçarias de S. Bartholomeu c mais alguns
logarcs; o que deixa perceber ter havido muita habitação n'aquel-
les terrenos.
No segundo volume mostrarei os descobrimentos que fiz na
Torre dos Frades em relação á idade do bronze.
Estava portanto provado haver sido oceupado aquelle terri-
tório na ultima idade da pedra por um povo que, além de saber
construir monumentos dolmenicos sob tumidi, usava também
fazer depósitos por simples exeavação sem o emprego de mono-
lithos que os revestissem internamente, comquanto se deva en-
tender que a cobertura d'esses depósitos não podia prescindir de
grandes lages, embora já nenhuma alli existisse; o que não é de
admirar numa localidade em que tantas construcções de casas
e muros, como hoje tem, obrigariam os proprietários a procura-
rem o material mais próximo para as suas obras.
Ha de pois entender-se que toda aquella região era oceupada
por um povo da mesma origem ethnica, desde as raias da costa
occidental até o flanco oriental, limitado pela margem direita do
rio Guadiana; que usava construcções diversas para os seus de-
pósitos funerários, ora servindo-se de enormes monolithos para
architectar solemnissimos abrigos consagrados ao repouso e á
memoria dos mortos, ora limitando-se a excaval-os com as suas
poderosas enxós de schisto amphibolico nas localidades em que
a rocha permittia um tal trabalho, ou em que não havia possi-
bilidade de se recorrer ao auxilio do megalitho. Para assim se
julgar, bastará saber que os soterrados em Aljezur e na Torre
dos Frades eram dolichocephalos, usavam louças idênticas na
forma, serviam-se de instrumentos de pedra polida, ornavam- se
com placas de schisto gravadas, e também faziam uso de facas e
pontas de frecha de silex, como verifiquei no monumento do Arrife.
19
290
Pertenciam pois aquclles conslrucíores á velha raça synchro-
nica das faunas cxtinlas e parcialmente emigradas, á raça que
assistiu ás grandes convulsões cósmicas dos tempos post-plioce-
nos, raça que ainda não dava indicio da mescla brachycephala
que se diz ter invadido a Europa na ultima idade da pedra,
abandonando a Ásia menor, a Arménia e o Cáucaso, d'onde se
affirma ter trazido novas industrias e usos novos, que todavia se
manifestam nas próprias plagas em que o typo ethnico era pu-
ramente dolichocephalo !
Castro Marim. — A noroeste d'esta villa, proximamente a 1
kilometro de distancia, descobriu em 1870 o sr. António Men-
des, collector da secção geológica, uns megalithos, que lhe pare-
ceram pertencer a um dolmen destruído, por ter visto alguns
ainda erguidos a pino, embora não tão bem ordenados que dei-
xassem perceber qual havia sido a primitiva configuração do
monumento, cuja existência julga poder attestar, pois que, fa-
zendo alli uma excavação, extrahiu alguns ossos humanos, que
trouxe para a secção geológica, e entre elles uma tibia de sec-
ção transversal tirante a platicnemica, assim como um grande
vaso de forma hemispherica e um percutor de grés fino com-
pacto, de forma circular, determinado por dois planos ligeira-
mente convexos, tendo cada um d'elles uma cavidade central,
que serviria para apoio dos dedos, ou talvez para a prepara-
ção de tintas; e achou também um fragmento de placa de
schisto com um sulco marginal em cada um dos lados, for-
mando angulo recto, mas sem indicio de gravura. Todos estes
objectos observei eu na secção geológica, no armário 51.°, es-
tante 3.a O dito percutor tem no seu maior diâmetro 0m,095,
sendo de 0m,088 o que o corta perpendicularmente e de 0m,026
o eixo da sua espessura entre as cavidades centraes.
Julgo portanto não poder duvidar de que alli tivesse existido
um dolmen coberto, cujo túmidas já destruído deixasse á vista
alguns esteios, como suecedeu no serro da Pedra, perto de Salir;
nem seria fácil ter-se illudido o sr. António Mendes, explorador
291
sisudo c atilado, a quem a secção geológica deve descobrimentos
importantíssimos de dolmens e cavernas, e farta colheita de pro-
duclos archeologicos por elle conquistados a esses recônditos
esconderijos durante o seu largo e proveitoso tirocínio de explo-
rador experimentado, não obstante o seu nome não ter sido
ainda citado cm memoria alguma daquellas em que os seus des-
cobrimentos e os lhesouros archeologicos, devidos ás explorações
que tem feito, são figurados e descriptos por mestres abalisados,
mas sem que a respeito do seu nome se haja proferido uma
única palavra de louvor, como eu neste livro tenho feito, citando
sempre os homens beneméritos que me têem auxiliado com os
seus descobrimentos e outros bons serviços; e porque não posso
deixar de obedecer a este preceito de probidade, cito aqui o
sr. António Mendes, a quem recorri para lhe pedir os esclareci-
mentos que ficam registrados, quando me constou, casualmente,
haver elle feito uma exploração nos arredores de Castro Marim.
Percorri eu em 1877 os escampados que circumdam o serro
em que se vê erguido o antigo e já um tanto desfigurado castrum
que deu nome á villa, ainda angulado no seu quadrilátero primi-
tivo por quatro torres de base circular, que D. Affonso III achou
quando, segundo a sua legenda cpigraphica, mandamt populare
Crasíi Marin; mas não encontrei vestígios apparentes de dolmens,
comquanlo toda a região abunde em machados e outros instru-
mentos de pedra, como se verá quando descrever os que obtive
no Sobral, em Alçarias, em S. Bartholomeu, na Espargosa, em
Piza Barro, na Zambujeira, e até dentro da própria vilia, onde
o rev.d0 prior Lúcio Floro Martins me offereceu um machado que
fora extraindo do poço publico, e outro encontrado na demolição
de uma casa, o' qual, em vista do seu corte inteiramente abatido
e polido, pode dizer-se que passou á classe dos brunidores. Este
perfeito instrumento, inteiramente polido, é de rocha quartzosa
com manchas de um mineral decomposto que se deixa riscar
pelo ponteiro de aço. Mede de comprimento 0m,071, de largura
0,n,036 e na maior espessura 0m,24.
Na carta prehistorica não foi indicada a estação neolithica a
292
noroeste de Castro Marim, porque já estava impressa quando re-
cebi a noticia de ter sido descoberta em 1870 pelo sr. António
Mendes, cujo nome, por isso mesmo que ninguém o tem querido
citar, registro aqui com particular satisfação, porque ás suas mui
acertadas pesquizas deve a sciencia valiosas manifestações.
Serro do Castello. — É um dos serros de Almada do Ouro,
pertencente á freguezia do Azinhal, dos mais desviados da mar-
gem direita do rio Guadiana. Está situado ao sul da ribeira de
Beliche e ao norte da ribeira do Tanoeiro. Na sua maior altura
acha-se um dolmen, que foi coberto, com a crypta ainda reve-
stida de grandes e toscas lages de schisto, medindo de compri-
mento lm,40 e de largura lm,10. O corredor ainda conserva
algumas lages formando-lhe os flancos, mas perdeu uma parte
da sua extensão primitiva.
Actualmente o comprimento total interno é de 2m,20. Estava
completamente despejado. Os pastores de gado arranjam alli seu
abrigo contra as chuvas e sol e lá dentro accendem lume para
aquecer as comidas. Mandei tirar as' pedras soltas que lhe co-
briam o pavimento e junto d'elle e nas terras que enchiam as
aberturas resultantes dos monolithos não se ajustarem nos seus
planos de contacto, achei alguns fragmentos de ossos humanos,
um pedaço de faca de silex e vários restos de louça igual á de
todos os dolmens neolithicos, entre os quaes vieram alguns que
certamente soffreram a acção das fogueiras que os pastores lá
costumam fazer, por mostrarem haver sido queimados e serem
achados no cinzeiro, não porque se tivesse empregado a crema-
ção naquelle deposito mortuário, pois que os ossos extrahidos
das fendas a que me referi não tinham o mini mo indicio de
fogo.
Com alguns fragmentos de louça está aquelle monunento re-
presentado no museu, faltando porém o bocado de faca de silex,
ou porque se perdeu, ou mais provavelmente por se ter misturado
com outros fragmentos da Marcella.
293
O dolmen coberto do serro de Caslello, como facilmente se
notará, tem uma configuração similhante ao do sitio da Nora.
Por emquanto são os únicos de tal forma verificados no Al-
garve. O de serro de Caslello differe pois de todas as constru-
cções sepulcraes que nos outros cabeços de Almada do Ouro até
quasi á ribeira do Vascão fui achando isoladas ou formando pe-
quenas necrópoles já pertencentes á idade do bronze, como se
verá no segundo volume d'esta obra. Não pertence pois ao género
cisto, que caracterisa aquellas sepulturas quasi quadradas, tirante
a quadrilongo, cuja maior extensão interna medeia entre 0m,85
e lm,20.
Foi sem duvida alguma um dolmen sob tumulus, embora de
minguadas dimensões, e pode julgar-se pertencente á ultima
idade da pedra, em vista dos seus fragmentos de louça, por con-
star terem naquelle serro apparecido alguns machados de pedra,
o que não havia nos cistos dos serros de Almada do Ouro mais
próximos da corrente do rio, e porque finalmente o trajecto dos
monumentos neolithicos íVesta parte oriental da província mo-
stra ler corrido no rumo de noroeste, partindo de Castro Marim
pelo serro de Castello em direcção a Vaqueiros, de que em se-
guida vou dar algumas noticias.
Já eu tinha notado que os cistos isolados e as pequenas ne-
crópoles da idade do bronze pertencem a uma linha que se appro-
xima da margem direita do Guadiana, partindo dos montes da
Zambujeira pelo corte do Guadiana para Almada do Ouro e
d'alli para Alcoutim até o Valle de Nossa Senhora, onde achei
a ultima necrópole da epocha do bronze, como se verá no imme-
diato volume d'esta obra.
A planta do dolmen do serro de Castello foi, por lapso, reu-
nida á de dois serros de Almada do Ouro, e por isso tem de
passar para o segundo volume. Ficando porém já descripto o mo-
numento, cuja orientação corre de su-sueste a nor-noroeste, não
faz aqui falta.
294
Vaqueiros. — O rev.do prior da freguezia de Vaqueiros en-
viou-me noticia de varias antiguidades na área da sua circum-
scripção, e mais especialmente de haver uns cabeços de montes,
perto da igreja, em que estão cravadas no chão e erguidas a
prumo, muitas pedras altas formando circuito.
Quando estive no concelho de Alcoutim, pedi esclarecimentos
concernentes ás antiguidades locaes de cada freguezia, mas ne-
nhuns obtive então da de Vaqueiros, Foi ha pouco tempo que
tive noticia d'aquellas pedras, que bem parece, a ser exacta, re-
presentarem construcções do género cromlech. Advirlo, finalmente,
que em razão das informações que em 1877 me deram de Va-
queiros, entendi ser inútil ir alli fazer um reconhecimento no
terreno.
Não posso affirmar se aquellas pedras constituem um monu-
mento prehistorico, ou se foram postas mais ou menos moderna-
mente para algum fim particular. Entretanto, scp levado a julgar,
que nas proximidades da igreja, quer seja nos cabeços dos mon-
tes circumvizmhos, ou n'outros logares, ha com effeito sufficientes
provas de occupação prehistorica; pois o sr. António de Paula
Serpa, empregado na direcção das obras publicas do districtode
Faro, obteve da aldeia de Vaqueiros mui interessantes artefactos
de pedra polida, taes como enxós de dois typos, machados, e um
fragmento de placa de schisto com orifício junto ao bordo supe-
rior.
O conjuncto d'estes três característicos já se viu ser con-
stante nas estações neolithicas a que me tenho referido, e por
isso, comquanto ainda não possa dizer que ha por alli dolmem
cobertos, cromlech, ou quaesquer outros monumentos, em vista
dos artefactos de pedra, assim como de outros mais que só agora
consta terem apparecido, forçoso ó presumir, que nas proximida-
des da igreja de Vaqueiros deve existir uma estação prehistorica.
Procurem-n'a os futuros exploradores, que mais de um monu-
mento mui provavelmente hão de achar.
Por emquanto limito-me a figurar nas duas seguintes estam-
pas os objectos que o sr. Serpa confiou ao meu estudo,
Ik _ZÍZF
Concelho dd/c^uéirri
Ccll. c& & <J P&erfxt
Eu XXX
295
Na estampa xxix mostro o perímetro de Ires machados de
schisto amphibolico, parcialmente polidos com as suas secções
longitudinaes correspondentes. Já ficou descripto este typo, que
forma um plano oval no corte transversal. Todos devem ter sido
encabados, mas mui principalmente o terceiro, cujo sulco hori-
sontalmente aberto cm canncllura está visivelmente polido do
attrito exercido pela ligadura que o prendeu a um cabo. Os
instrumentos de pedra com este característico são já conhecidos
em Portugal e alguns descobri no Algarve, mas não são vul-
gares.
Parece ser a America a grande região em que elles predo-
minam. A este respeito refere o sr. Florentino Ameghino na sua
memoria intitulada Uhomme préhistorique dans la Plata {, que
no interior da republica argentina, a partir de San Luis, Córdova
e Mendoza até ás fronteiras da Bolívia, se acham machados de
pedra polida diversos dos da Europa e doUruguay, por terem
um sulco na face superior que servia para se poderem ligar nos
cabos, sulco que também circumda inteiramente alguns instru-
mentos ou occupa apenas três quartas partes da sua circumfe-
rencia, approximando-se este typo do que é frequente no Mé-
xico.
Na estampa xxx a fig. 1 representa parte de uma enxó po-
lida do mesmo schisto amphibolico e das mesma forma das de
toda a região algarviense, com faceta obliqua e estreita formando
o corte; o instrumento n.° 2 é de fibrolite, todo polido, e per-
tence ao grupo das enxós, mas as suas minguadas dimensões só
permittem suppôr-se haver sido destinado a serviços delicados,
ou com preferencia a symbolisar aquelle poderoso instrumento
de trabalho só em usos funerários, se o gume cortante não desse
indícios de ter tido algum uso. Numa gruta da Cesareda des-
cobriu o sr. Delgado uma outra pequena enxó de fibrolite, pouco
maior que a de Vaqueiros, a qual pôde ver-se na secção mine-
Revue cTanlhropologic, deuxième série, tomo n, pag. 210 a 249. (1879)
296
rálogica da escola polytechnica de Lisboa, acompanhando outros
instrumentos achados na Casa da Moura.
Os n.os 3 e 4 representam o segundo grupo das enxós de
pedra, cujo corte não tem faceta determinada, por ser produzido
por dcsengrossamento decrescente. O n.° 5 indica um fragmento
de placa de schisto com orifício, mas sem gravuras, parecendo
estar em via de preparação. Este esboço tem estrias nas duas
faces, provenientes do attrito da pedra em que foi desengrossado;
faltava-lhe pois ser brunido para a gravura. Este facto, já obser-
vado em algumas estações neolithicas, vem talvez mostrar, que
estes objectos, de que não ha noticia em paiz algum da Europa,
eram obra artística de um povo que vivia nesta região geogra-
phica na ultima idade da pedra.
Nada mais tenho colligido ácêrca da freguezia de Vaqueiros,
onde o apparecimento de tão bons característicos neolithicos pro-
mettc importantes descobrimentos, quando se possa alli fazer
um reconhecimento archeologico. Em meu entender julgo mui
provável haver naquelles terrenos algumas construcções fune-
rárias de feição similhante áquellas que descobri em varias loca-
lidades d'esta província.
Junto da aldeia também ha noticia de sepulturas e constru-
cções romanas. O sr. Serpa obteve d'alli uma urna das chamadas
de Sagunto com lavor de relevo ornamental, uns medianos bron-
zes de Cláudio I e um denario da familia Porcia (C. CAT0),
assim como dinheiros árabes dos Al-Mohades e outros de ante-
rior data; o que bem persuade que toda aquella accidentada re-
gião, situada entre as grandes ribeiras de Odeleite e da Foupa-
na, fora occupada por nacionalidades distinctas desde tempos
remotíssimos.
São dezoito as estações neolithicas que consegui descobrir
em todo o território do Algarve. Nenhuma era conhecida ante-
riormente ao levantamento da carta archéologica, de que fui incum-
bido pelo governo. Outras muitas podéra ter descoberto; três vezes
mais, pelo menos. Lá ficaram condemnadas á destruição, por não
me haver sido permittido dispor de mais tempo e dos precisos
297
recursos exigidos por um trabalho de sua natureza moroso c obri-
gado a grandes despendios. Fiz, porém, o que eslava ao alcance
dos meus esforços. Oulros virão que, mais c melhor, saibam e
possam chegar até onde eu pretendi parar.
Com as plantas e perfis dos monumentos á vista, notam-se
dois typos de consírucção com algumas variantes c duas estações
mortuárias simplesmente exeavadas na rocha natural sem reve-
stimento megalilhico interno. O typo predominante é porém o mo-
numento de crypta polygonal tirante a circular, com galeria
rectangular de accesso, começada por um átrio, sendo dividida
até á entrada da crypta por uma até três portas. E proximamente
esta a configuração de alguns outros dolmemjk explorados nou-
tras zonas do reino.
Os sepultados n'estes monumentos, até onde foi possível
apreciarem-se, manifestaram pertencer á velha raça dolichoce-
phala.
As armas de guerra, os instrumentos de trabalho, os utensí-
lios de uso e as alfaias de ornamento, se pela maior parte não
divergem mui sensivelmente dos typos mais geraes em outras
estações synchronicas da Europa, carecem nos seus respectivos
grupos de vários artefactos já enumerados no cadastro neolithico;
mas em compensação apresentam outros que, ou não estão ainda
verificados no território europeu, ou são verdadeiramente raros.
E no continente americano, caso notável, que se acha a mais
approximada similhança, e até inteira paridade, com o typo ethnico
mais antigo na Europa e com os produetos da industria d'esta
extremidade sul-occidental nos tempos neolithicos!
Veja-se o que refere o celebre sábio de Buenos Ayres, o
sr. Florentino Ameghino, na sua mui substanciosa resenha das
antiguidades paleoethnologicas da America, sob o titulo de Anti-
quité de lliomme dans la Plata, publicada na Revue tfanthropo-
logie, segunda serie, tomo n (1879).
Os factos, que vou referir, são sobremaneira assombrosos,
tendo-se diante dos olhos o atlas do velho e novo continentes ;
constituem um problema elhnographico, que, geographieamente,
298
com relação á cpocha a que se referem, não sei explicar, e por
isso invoco a interpretação dos sábios.
O sr. Àmeghino, inventariando o pecúlio industrial argentino,
situado na região americana mais meridional enlre a emboca-
dura do Rio da Prata e o Estreito de Magalhães, accusa como
typos vulgares n'essa quasi extremidade da terra no hemisphe-
rio opposto:
1.° Pontas triangulares de lança de silex. Estes instrumentos
são indicados pelo sr. de Mortillet como tendo uma forma espe-
cial, que só se encontra em Portugal. O sr. de Mortillet viu no
museu archeologico do Algarve os exemplares por mim colli-
gidos, e cita-os no seu Musée préhistoriaue.
2.° Machados de pedra com sulco transversal O sr. Àmeghino
refere-se a estes machados com sulco na face superior, tomando
3/4 do perímetro, ou rodeando todo o instrumento, e diz ser um
typo dominante, que do centro da republica argentina se vae
encontrando, a partir de San Luis, Córdova e Mendoza, até ás
fronteiras da Bolívia, differindo assini dos da região dos Pam-
pas, dos do Uruguay e da Europa, e accrescenta que o mesmo
typo de machados sulcados é frequente no México.
3.° Placas de schisto com gravuras. O sr. Àmeghino relata
haver numa collecção de artefactos prehistoricos do Rio Negro
placas de schisto com gravuras, umas similhantes e outras idên-
ticas ás que lhe foram mostradas em Lisboa por Carlos Ribeiro.
Não ha noticia d'estes mysteriosos artefactos senão em Portugal
e na America do Sul.
4.° Vasos cerâmicos de suspensão. As louças neolithicas da
região meridional da America do Sul, existentes no opulento
museu de Buenos Ayres, de que é distincto director o sr. F.
P. Moreno, segundo as descreve o sr. Àmeghino, parecem
ser assaz similhantes ás de Portugal. «La plupart de ces pote-
29!)
ries, diz o sr. Ameghino, semblent appartenir à des marmites
hémisphériques, avec ou sans goulot, de dimensions fort diffé-
rentes. On trouve encore des marmites de Irois formes diffé-
rcntcs et des pots à eau. La plupart ont des trous pour
lcs suspendre, dautres étaient pourvues d'anses de formes
excessivement varióes.»
Todas essas formas appareceram nos dolmens cobertos do Al-
garve, incluindo os vasos de suspensão atravessados de orifícios,
entre os quaes figuram os fragmentos de outro do mesmo género,
mas de calcareo branco muito fino, achados no dolmen dcAlcalá.
Na secção geológica ha também alguns excellentes vasos de sus-
pensão.
5.° Ossos intencionalmente partidos para a extracção da medulla.
Alguns ossos achei em varias estações do Algarve longitudinal-
mente partidos, que me pareceu poderem ter sido assim prepara-
dos, tanto para o aproveitamento da medulla como das esquirolas,
sendo notável que em maior quantidade apparecessem em Alcalá,
onde havia graes de pedra para tintas, pregos de osso para o
penteado, e fragmentos de ponções. Podiam pois ter fornecido
uma substancia gordurosa para a preparação das tintas e maté-
ria prima para os artefactos acima indicados.
6.° Ocre vermelho. Diz o sr. Ameghino que o ocre vermelho
(limonite) se acha entre o pecúlio neolithico do grande museu de
Buenos Ayres, devido ás explorações que o sr. Moreno fez na
Patagonia1.
No Algarve a limonite appareceu na estação da Torre dos
1 0 sr. Moreno descreve os seus preciosos trabalhos no volume m da 2.a serie da
Reme d'anlhropologie. É um verdadeiro benemérito da sciqncia! O sr. Ameghino honra
a sciencia moderna com o seu nome, que ficará sendo uma das glorias mais assignala-
das de toda a America! Deste ultimo cantinho do mundo envio a esses dois athletas da
sciencia moderna, e a todos os seus confrades nas duas florescentes Américas, um en-
thusiastico preito de homenagem.
300
Frades c a hematite vermelha na de Alcalá, assim como o cina-
brio, ou sulphurelo de mercúrio, na da Marcella.
7.° Typos ethnicos. As collecções anlhropologicas que o sr. Mo-
reno reuniu no museu de Buenos Ayres representam o dolicho-
ccphalo no periodo neolithico. A este respeito refere o sr. Ame-
ghino, que a exploração feita nos cemitérios indigenas manifestou
os cadáveres dobrados, assim como grande numero de craneos
de dois typos, o bracbycephalo, que é alli o mais moderno e re-
presentado pelos indigenas, e o dolichocephalo, inteiramente ex-
tincto.
Já mostrei que o typo dominante das estações neolithicas do
Algarve é o dolichocephalo.
São, portanto, muitas e mui notáveis as analogias existentes
nas estações synchronicas do sul de Portugal e do sul da Ame-
rica Austral. Esta circumstancia, se não fosse um facto compro-
vado, não poderia mesmo imaginar-se!
Explica-se de um modo comprchensivel e satisfactorio a exi-
stência do elephante africano em meio das mais antigas alluviões
quaternárias do Manzanares, sabendo-se que na primeira epocha
quaternária a fauna e a flora tinham uma tal feição de identidade
nas duas fronteiras margens da grande bacia mediterrânica, que
bem persuade terem ellas estado em pleno contacto, como cer-
tamente estavam antes da juneção dos dois mares, posterior-
mente operada. Estava pois franqueada a passagem entre o flanco
sul-oriental da Hispanha e o do norte-occidental da Africa.
0 torrão peninsular podia portanto receber e alimentar os
indivíduos da fauna africana. Quando porém essa passagem se
abateu e houve a juneção do Mediterrâneo com o Atlântico, o
Elephas africanas, achando-se clausurado e em condições clima-
téricas já fatalmente adversas, extinguiu-se. A epocha da sua ex-
tineção está geologicamente definida na estação de Santo Izidro,
perto clc Madrid.
0 continente europeu e a America do Norte, havendo grandes
analogias entre as suas faunas e floras, estiveram em mutuo con-
301
taclo, como propõem distinctos naturalistas, entre os quaes
alguns consideram a possibilidade d'cssa ligação por meio. de
uma ponte de gelo que se houvesse formado durante a epocha
glaciaria. Outros preferem marcar o trajecto de juneção, como é
indicado pelo sr. G. de Moi tillet: «Elle a eu lieu à 1'cpocjuc cliel-
léennc. II suffit de jeter les yeux sur un globe terrestre pour voir
quellc a dú s'opérer par les Iles-Britanniques, les iles Féroc,
1'Islande et le Groenland».
Quanto a mim, preferiria aclmittil-a na região polar entre a
Sibéria occidental e o flanco oriental da iVmerica, pelo Estreito
de Bering. O famoso Atlas do sr. Stieler's indica o Estreito de
Bering com uma largura entre 75 e 100 kilometros e profundi-
dade de umas 30 braças. Quem observar com alguma attenção
o Cabo Príncipe de Galles no continente norte-oriental americano,
e na Ásia septentrional o fronteiro Cabo Ost, não pode deixar de
ver n'essas duas pontas de terra os restos de uma ligação entre
os dois continentes, um tanto similhante ao extenso isthmo
de Panamá, que liga as duas Américas. E qual seria a causa da
destruição d'essa ponte natural de 15 a 20 léguas? Seria ella
derivada de uma acção plutonica, da erosão das aguas, ou do
suecessivo embate de grandes massas de gelo, actuando sobre
aquella estreita garganta que ligava as altivas frontes d'esses
dois gigantes coroados de gelos?
O grande Cervus Canadensis, que na Europa central ainda
existia na segunda epocha quaternária, passou a viver, como
actualmente vive, nas frigidas regiões da America do norte. Mas
pouco importa, com referencia ao assumpto que suggere estas
considerações, indagar-sea causa de tal separação. Tenha-se ape-
nas em vista que, ainda actualmente, surgem conjuncturas em
que os gelos chegam a deter as grandes correntes, formando en-
tre os dois cabos uma crystallina e alterosa montanha! Se, pois,
este phenomeno glaciario acompanha os tempos que vão corren-
do, porque não poderá admittir-se, que no período neolithico,
quando os topos d'esses dois cabos estariam ainda porventura
menos retrahidos, igualmente se manifestasse?
302
Se assim foi, como hoje é, haveria então essa immensa ponte
de gelo, que poria em communicação, embora arriscada e diffi-
cil, os dois soberbos continentes do novo e velho mundo.
Admittida esta hypoíhese, que favorece a concepção da pas-
sagem do norte da Ásia pela região siberiana, para o norte da
America, e bem assim a do transito entre a Europa e a Africa
pelo litoral da grande bacia do Mediterrâneo, postas de parte
todas as questões referentes ás difficuldades praticas e ao
tempo, a communicação entre os três continentes não seria im-
possível.
Prefiro, portanto, como parecendo-me mais praticável, este
meio de communicação ao da naveta ou piroga excavada num
madeiro, julgando que um tão perigoso vehiculo não podia vencer
as duas impetuosas correntes que em sentidos oppostos passam
pelo Estreito de Bering, e muito menos ganhar, em pleno ocea-
no, as longínquas distancias que se contam do archipelago bri-
tannico ás ilhas Feroé, d'estas á Islândia, e da Islândia ao Groèn-
land.
Emíim, no que todos mais ou menos concordam é que, com
effeito, houve no começo dos tempos quaternários uma ligação
entre os dois continentes. Não ha pois que admirar, que na Ame-
rica do Norte e na Europa appareça o typico instrumento de silex
chelleano em condições idênticas e em períodos synchronicos.
Mas todas essas pontes de passagem, se comprovadamente
existiram e foram utilisadas, terminaram com os tempos geológi-
cos, ou já não existiam quando o globo terrestre assumiu, appro-
ximadamente, a sua configuração actual.
Portanto, nos tempos neolithicos, em que se dá a identidade
de muitos factos concernentes á etimologia e á ethnographia,
tanto no sul da America austral como no sul de Portugal, é for-
çoso entender-se que tantas cousas do mesmo género e lavor não
foram casualmente ideadas ao mesmo tempo, e por isso, ou uma
das regiões foi a inventora e achou meio de transmittir á outra
as suas invenções, ou ambas, tão distantes entre si, a ponto de
existirem em diversos hemispherios, receberam de um centro
303
commum os mesmos prodactos industriaes, ou o ensinamento
para a sua fabricação.
E pois o que parece mais plausível e racional; mas ainda
assim é indispensável que um d'esses focos de irradiação ellino-
graphica tivesse meio de dar passagem aos portadores dos seus
produetos, porque de outro modo não podiam apparecer na ultima
extremidade occidental da Europa e na zona meridional das duas
Américas, visto que alguns também são frequentes no México.
Parece pois não poder ser contestado o facto da communica-
ção que os homens neolithicos acharam e utilisaram entre os
continentes europeu, africano e americano, não obstante já esta-
rem physicamente separados.
Affirma-se não se ter achado nas estações geológicas da Eu-
ropa e da America senão o typo da raça dolichocephala, e diz-se
que o typo brachycephalo nos ditos continentes só se tem mani-
festado nas estações neolithicas1.
Registra-se, emfim, como facto de grande complexidade nos
tempos neolithicos : a introducção da agricultura com o trigo e a
cevada, que distinctos naturalistas referem ao Oriente, especiali-
sando o Cáucaso e a Pérsia; o conjuncto de varias espécies de ani-
maes domesticados que se acham em estado selvagem na Ásia Me-
nor, na Arménia c nas vertentes do Cáucaso ; o sentimento reli-
gioso manifestado por diversas superstições ; o enterramento dos
cadáveres, até então não usado; o rito funerário; a architectura
megalithica, as habitações terrestres e lacustres; as armas de
guerra e de caça de typos inteiramente originaes ; instrumentos
de trabalho de formas novas, parcial ou totalmente polidos e
de cortes afilados, taes como enxós, machados, escopros, goivas,
assim como outros muitos de differentes géneros ; a introducção
da cerâmica; a invenção do pão, do queijo e das bebidas alcooli-
1 Não concordo. Ao ultimo capitulo mostrarei a anterior antiguidade do typo bra-
chycephalo puro no território portuguez. As classificações, algumas vezes um tanto pre-
cipitadas, já não poucos erros gravissimos tècm causado, guiando os assumptos a con-
clusões absurdas. Esporo pois levar a eíteito a minha demonstração.
304
cas; a galanteria dos adornos; cmfim, um ajunctamenlo de gran-
diosas novidades, manifestando uma civilisação adiantada e des-
envolvida, que apenas parecia conservar raros usos e costumes
dos tempos anteriores, e que de todo os teria desconhecido, se a
raça aborígene dolichoccphala não tivesse sobrevivido a todas as
grandes convulsões cósmicas de que foi paciente testemunha pre-
sencial, e que ainda existia, qual hoje existe, mas protestando
contra tantas theorias de evoluções e de atavismos, com que a
levaram até o ponto de lhe darem por míseros ascendentes o pa-
voroso gorilla, o bruto chimpanzé, e ainda outro animal, já menos
bruto (por effeito da evolução!), não ainda encontrado na natu-
reza, é verdade, mas mui engenhosamente e somente na imagi-
nação de quem o quiz crear e até baptisar com a crepitante
antonomásia de anthropopitheco, animal, que nos seus momentos
de ócio se entretinha em lascar os instrumentos de silex que
Carlos Ribeiro descobriu nos bordos da grande bacia lacustre
que refrescava as raizes do Monte Redondo.
Pretende-se, portanto, que dos asiáticos viveiros da procreação
humana, onde as leis da evolução (!) tinham completamente trans-
formado os anthropoides em anthropopithecos, estes primeiros
artistas em homens dolicocephalos, e estes ainda imperfeitos vi-
ventes em apurados brachycephalos, saíram em grupos compa-
ctos os novos povoadores do mundo, tomando orientações diver-
sas, e não parando senão onde a própria terra tinha por limite a
grandeza dos mares.
Os transfugas chegaram até á ultima raia de terra firme; o
viveiro era inexgotavel; deu para tudo! Saíram com o espirito
já dominado de superstições; mas no coração d'esses desertores
é que ainda não tinha raiado o sentimento saudoso da pátria ;
pois não ha provas de torna viagem. A pátria ... era o mundo!
O grupo que sabia talhar, polir e gravar pedaços de schisto,
lascar pontas triangulares de silex e fabricar vasos de suspensão,
dividiu-se em dois bandos; um d'elles não saiu do seu hemi-
spherio e veiu parar nesta zona occidental da Europa, e o outro,
mais audacioso e temerário, passou ao hemispherio opposto e
305
chegou até á extremidade meridional da America austral. Mais
para o sul só havia a Terra do Fogo.
Será este o modo de explicar a identidade d'esses produCtos
industriaes, que ao mesmo tempo apparecem no Algarve e na
America do Sul? Reservo algumas duvidas.
O Algarve não manifestou ainda, talvez, os seus mais im-
portantes característicos, tendo ficado por explorar as numero-
sas cavernas do litoral marítimo e de toda a região central.
Muito se deve esperar d'essas explorações, se um dia houver
quem possa e saiba fazel-as. Reservem-se para então as conclu-
sões. Por emquanto apenas é licito descrever o que está desco-
berto e esperar pelo que não se conhece.
FIM DO VOLUME I
20
«*!!*
■*>*♦
WJíOlíTHNOLOWA
E
TEMPOS PREHISTORICOS
SEBASTIÃO PHILIPPES MARTINS ESTACIO DA VEIGA
Sócio correspondente da academia real das sciencias
da sociedade de geographia de Lisboa, do instituto e da sociedade broteriana de Coimlir.
do imperial instituto archeólogico germânico de Roma, da sociedade franceza
de archcologia, da real academia da historia de Madrid, da sociedade económica
de Málaga, da academia de archeologia da Bélgica,
do instituto archeólogico e geographico pernambucano, colleclor
e fundador do museu archeólogico do Algarve
VOLUME I
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
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GN
836
v.l
Sstacio da Veiga, Sebastião
Philippes Martins
Paleoethnologia